Há poucos meses foi noticiado que o “medo da pandemia” fez com que um milhão de pessoas voltasse a adquirir planos de saúde, mas essa expansão do mercado neste setor representou apenas a recuperação de uma contração prévia. O total de pessoas atendidas pelos planos de saúde no Brasil retornou ao número de alguns anos antes da pandemia: 47,6 milhões, ou 22% da população (o patamar mais alto, de 50,4 milhões, foi em 2014)1. Os salários muito baixos, o desemprego e a grande proporção de trabalho informal, determinam que esse mercado tenha limites muito estreitos nos países capitalistas atrasados.
A letra da Constituição de 1988 determina que o SUS deve fornecer a assistência à saúde de modo universal e gratuito. Mas essa determinação vem junto com a sua negação, a previsão de uma “saúde suplementar” privada, que faz da saúde uma mercadoria com preços que variam conforme o “nível” do plano de cada “beneficiário”. E os governos, inclusive de Lula e Dilma, têm realizado essa negação, incentivando a expansão do setor privado na saúde (inclusive por meio de renúncias fiscais) e cortando as verbas do SUS.
Essa negação agravou-se com a aprovação da Emenda Constitucional 95, em 2016, que fixou um teto para a despesa primária da União, e congelou os gastos públicos por 20 anos. A precarização cada vez maior do SUS, e dos serviços públicos em geral, está legalmente assegurada. Não é por outra razão que, há vários anos, sucessivas pesquisas de opinião da Vox Populi mostram que, depois da casa própria e da educação, o acesso a um plano de saúde é o terceiro objetivo mais desejado pela população.
Mas a precarização do SUS pode ser compensada pela expansão das operadoras privadas, de maneira que a população como um todo tenha acesso a uma assistência à saúde de qualidade?
Os acontecimentos que vieram à público envolvendo particularmente a operadora de saúde Prevent Senior (e, quanto à coação dos médicos para prescreverem o Kit-Covid, também a Hapvida), são apresentados na mídia como aberrações decorrentes do “alinhamento ideológico” dessas empresas ao negacionismo do governo Bolsonaro. Mas a gravidade e a natureza das denúncias, no caso da Prevent Senior, estão forçando os comentaristas a reconhecer que há também motivações de ordem financeira.
Embora a pandemia tenha intensificado o conflito interno entre a direção da empresa e os médicos, e tenha provocado a exposição pública desse conflito, os depoimentos de médicos, pacientes e seus familiares, mostram que as “aberrações” mais graves não surgiram por causa da pandemia. Ao contrário, já vinham acontecendo há muito tempo.
As denúncias apontam que nos hospitais da Prevent Senior, mesmo antes da pandemia já existia uma prática sistemática, implementada pela direção da empresa, que consistia em indicar o tratamento paliativo (normalmente indicado somente em pacientes com quadro irreversível e terminal) sem que os critérios para tomar essa decisão fossem cuidadosamente verificados. Para reduzir os custos da operadora, o tratamento paliativo foi falsificado e transformado em uma sentença de morte para os pacientes. Somente uma investigação séria e detalhada poderia demonstrar em que proporção isso aconteceu, mas já está claro que aconteceu em muitos casos e foi intencional.
Além disso, o médico que depôs na CPI da Covid relatou outros casos não relacionados com o tratamento paliativo, em que exames ou outros procedimentos deixaram de ser realizados, resultando na morte de pacientes. Casos semelhantes, em que a motivação também era a “gestão de recursos”, envolvendo as outras operadoras de saúde, e que são levados à justiça quando a família percebe o que ocorreu, são numerosos. Mas com frequência é difícil provar ou até mesmo perceber o crime se os médicos envolvidos são cúmplices ou dobram-se à pressão para acobertá-lo. E as operadoras contam com a cumplicidade, que também ficou mais visível no contexto da pandemia, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e do Conselho Federal de Medicina (CFM).
As outras denúncias, como o fraudulento estudo “observacional” para “verificar” a eficácia do chamado tratamento precoce da Covid-19, a coação de médicos para prescrever esse tratamento, e a sua distribuição domiciliar para qualquer paciente que “desse um espirro”, assim como a falsificação de atestados de óbitos para omitir a Covid-19 como causa da morte, etc., são as “aberrações” mais diretamente relacionadas com a pandemia.
No entanto, todos esses acontecimentos, por mais escandalosos que sejam, poderiam ser considerados apenas “aberrações”, anomalias isoladas e sem relação com o principal argumento daqueles que defendem a privatização da saúde: a suposta maior eficiência do setor privado em contraste com a suposta ineficiência intrínseca do setor público na gestão dos recursos. Mas o nexo entre o geral e o particular em cada situação concreta, que é sempre um nexo histórico, permite compreender o que esses acontecimentos significam.
Os dados da própria ANS – o órgão legalmente encarregado de fiscalizar as operadoras – mostram que o lucro líquido dessas empresas cresceu, em 2020, 49,5% em comparação com o ano anterior, um salto de 12 para 17,5 bilhões de reais2. Esse aumento ocorreu no ano em que a pandemia causou 300 mil óbitos no Brasil, e parece surpreendente se considerarmos que durante vários meses desse mesmo ano fomos informados que as UTIs e enfermarias dos hospitais estavam lotadas.
Se esse crescimento das despesas hospitalares, relacionadas com a Covid-19, deveria implicar num aumento dos custos para as operadoras, como podemos entender a relação entre a pandemia e o salto nos lucros dessas empresas?
A explicação desse fenômeno é relativamente simples. O medo do contágio somou-se à sabotagem oficial, velada ou explícita, das medidas para controlá-lo, de tal maneira que deixaram de ser realizadas muitas despesas em consultas e exames e foram canceladas muitas cirurgias eletivas (não urgentes) que representam uma parte importante das despesas hospitalares. O resultado global imediato foi uma grande queda nos custos, e o salto nos lucros neste setor. Pelo menos em 2020, a pandemia foi um negócio muito lucrativo para essas empresas.
Na linguagem técnica das operadoras, isso foi contabilizado como redução da “taxa de sinistralidade”, um conceito que originalmente surgiu em outro setor da economia, nas companhias de seguros (seguros para acidentes ou roubos de automóveis, seguros contra incêndios etc.). Tanto nas operadoras de saúde quanto nas companhias de seguros, as estatísticas sobre a taxa de sinistralidade são essenciais para a previsão dos riscos financeiros dessas empresas e, em consequência, para a formação dos preços.
Mas há uma diferença específica no caso das operadoras de saúde. O capitalista que investe o seu dinheiro nessas empresas sabe perfeitamente que, ao contrário das companhias de seguros, no caso das operadoras de saúde não se trata apenas de uma gestão de riscos baseada nas estatísticas sobre a taxa de sinistralidade. Além dessa gestão de riscos, esse capitalista sabe que o lucro das operadoras depende, de modo crucial, da gestão de recursos no atendimento dos “sinistros”.
Nesse ponto reside o principal nexo histórico: as condições para essa gestão de recursos nos países capitalistas atrasados não são as mesmas dos países avançados. No site brasileiro MoneyTimes, especializado em dar conselhos aos investidores, há um artigo recente (17/09/21) e nele podemos ler: “No Brasil, apenas 22,5% da população possui algum tipo de plano de saúde, enquanto em países desenvolvidos esse número é significativamente maior, sendo que nos EUA, esse número passa de 90%.”
O artigo continua:
“Isso significa dizer que quase 80% da população brasileira depende dos cuidados do SUS, que sabemos que, infelizmente, está longe do ideal. Dessa forma, a demanda latente por um plano de saúde é enorme, mas o seu alto custo em relação a renda média, impede uma penetração maior sobre a população. Nesse contexto, vimos que as empresas chamadas de verticalizadas conseguiram encaixar uma forma de atender uma boa parte dessa população e iniciaram uma trajetória de crescimento muito forte.”
Infelizmente o SUS está longe do ideal! Quanto cinismo! Mas o artigo expressa uma contradição real. A Prevent Senior é uma empresa verticalizada, ou seja, ela atende os seus beneficiários em hospitais e clínicas próprias, o que facilita a gestão de recursos, ao contrário das não verticalizadas cujos beneficiários são atendidos por prestadores credenciados. Neste último caso, tende a acontecer um conflito entre a operadora e seus prestadores, pois estes faturam mais se indicam mais procedimentos e cirurgias. No primeiro caso o paciente corre o risco da economia potencialmente fatal dos recursos terapêuticos, o risco inverso ocorrendo no segundo caso. Pode-se morrer por falta tanto quanto por excesso de medicina.
O artigo indica que a verticalização da gestão de recursos é “uma forma de atender uma boa parte dessa população”. Ele está se referindo à necessidade de uma forma específica de gerir os recursos para atender a população com “renda média” mais baixa, que seria uma forma de expandir o mercado das operadoras no Brasil. A Prevent Senior tem sido até agora, precisamente neste sentido, festejada como um caso de sucesso, embora a renda média dos seus 540 mil “beneficiários” esteja bem acima da renda média dos 78% da população que hoje dependem do SUS.
O “nicho de mercado” da Prevent Senior são os idosos que não podem pagar as mensalidades mais altas que as outras operadoras cobram deles. Os idosos, evidentemente, apresentam uma “taxa de sinistralidade” mais alta do que os jovens, e foram atraídos pelas mensalidades mais baixas dessa empresa. Segundo dados da ANS, 76% dos seus “beneficiários” são idosos, enquanto a média do setor é 14,2%3. As “aberrações” mais graves que acontecem há muito tempo na Prevent Senior (a empresa foi fundada em 1997) são apenas a consequência lógica da gestão de recursos necessária para lucrar nessas condições.
Na verdade, o sucesso da Prevent Senior não representou uma expansão do mercado das operadoras no Brasil, e foi apenas uma manobra do capital para contrapor-se à tendência atual para a retração desse mercado. Uma manobra que demonstra o quanto é ilusória a esperança de que expansão das operadoras privadas possa oferecer, para a população como um todo, uma assistência à saúde de qualidade. Essa expansão teria que multiplicar e agravar as aberrações denunciadas, e o resultado só poderia ser uma caricatura sinistra do que já existe: o horror capitalista na saúde.
Referências:
1https://www.gov.br/ans/pt-br/arquivos/acesso-a-informacao/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setor/informacoes-gerais/total-cad-info-jun-2019.pdf
2https://valorinveste.globo.com/mercados/rendavariavel/empresas/noticia/2021/05/26/lucro-das-operadoras-de-planos-de-saude-tem-alta-de-495percent-em-2020.ghtml
3https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58714986