Os dirigentes das organizações políticas da esquerda brasileira com influência de massas (PT, PCdoB e PSOL) estão longe de possuírem a consciência de classe dos revolucionários do início do século 20. Apresentarei alguns elementos dos debates do passado que envolveram ideias como democracia, luta de classes e revolução para em seguida mostrar como a esquerda hoje apresenta um imenso atraso em sua consciência de classe, o que tem como consequência sua utilização pela burguesia como instrumento para manter a estabilidade do capitalismo no Brasil.
Está na hora de pensarmos como derrubar o capitalismo? No início do século 20, nos países atrasados, conhecidos, pela nomenclatura da ONU, por “emergentes” ou “em desenvolvimento”, um grande debate se construiu nos movimentos e partidos da classe trabalhadora: quem seria o ator principal da transformação de países que tinham seu desenvolvimento amarrado por relações sociais feudais e semifeudais? A classe burguesa ou a classe trabalhadora?
Os primeiros marxistas construíram acaloradas discussões.
“Os primeiros discípulos russos de Marx consideravam que a tarefa revolucionária imediata na Rússia era a derrota da autocracia czarista e a consequente transformação da sociedade sob uma ótica burguesa e capitalista com a instauração de uma democracia política.”[1]
Estas ideias atravessaram a própria tomada do poder pelos trabalhadores em 1917 na Rússia. Muitos classificaram os bolcheviques como aventureiros, putschistas. Ainda “não seria a hora” de tomar o poder. A confusão era tanta que havia membros da “esquerda social-democrata e socialista” – vou tomar a liberdade de chamar assim os bolcheviques, mencheviques e socialistas revolucionários – que pediram intervenção estrangeira para reestabelecer a ordem democrática. Mesmo com imensas divergências, o debate na esquerda social-democrata e socialista fincava seus pés na realidade concreta, tentando extrair dela uma interpretação científica dos acontecimentos.
Se a classe trabalhadora se mostrava pujante por greves e movimentos de massa que aconteciam em diversos países, um partido da classe trabalhadora deveria respeitar a “etapa histórica” democrático-burguesa da revolução ou ajudar a classe trabalhadora a tomar o poder imediatamente para construir o socialismo? Aqui entra a própria ideia de “democracia” que Lenin criticou em abril de 1917, portanto, antes da tomada do poder.
“É preciso olhar para a frente, para a nova democracia nascente, que deixa já de ser uma democracia, pois democracia significa dominação do povo, e o próprio povo armado não pode exercer uma dominação sobre si próprio. A palavra democracia, aplicada ao partido comunista, não é só cientificamente inexata. Agora, depois de março de 1917, significa uns antolhos postos nos olhos do povo revolucionário, e que o impedem de construir livremente, corajosamente e por sua própria iniciativa o novo: os sovietes de deputados operários, camponeses e outros como único poder dentro do ‘Estado’, como precursor da ‘extinção’ de qualquer Estado.”[2]
A participação popular nas revoluções de 1905 e 1917 na Rússia, principalmente de operários, criou os sovietes, abrindo portas para um novo tipo de democracia. Mas a palavra “democracia”, segundo Lenin, era usada pelos líderes da classe para limitar a visão do povo revolucionário. O único elemento que poderia garantir que essa nova democracia abrisse caminho para a construção de algo verdadeiramente “novo” seriam os sovietes, isto é, o poder paralelo ao da burguesia, surgido no calor das lutas, capaz de implodir o Estado burguês e combater a reação dessa burguesia, construindo, para esse combate, um semiestado, ou Estado operário[3].
Quinze anos antes, em 1902, Lenin tinha polemizado no interior do Partido Operário Social Democrata Russo sobre qual seria o papel de um partido político da classe trabalhadora na luta de classes. Para Lenin, esse partido se prepararia para o futuro, para as explosões revolucionárias vindouras e para tomar o poder, trazendo para isso a vanguarda da classe para seu lado: a classe operária. Seus adversários já pensavam que esse partido deveria ter como centralidade o apoio aos movimentos espontâneos da classe de maneira geral, participando dos movimentos de oposição da burguesia liberal, dos parlamentos e dos governos de transição ao capitalismo. Lenin, entretanto, queria mais, pois olhava mais longe, queria criar consciência socialista na vanguarda operária e prepará-la para o combate.
“(…) a mera ação espontânea dos operários, limitada unicamente às reivindicações econômicas, não pode levá-los automaticamente à consciência socialista e que as teorias ‘economicistas’ só servem para fazer do nascente movimento operário refém da burguesia. Segundo ele, é preciso – e é precisamente esta a tarefa que se coloca o Iskra – introduzir na classe operária as ideias socialistas mediante a construção de um partido operário que haverá de se converter no grande defensor de seus interesses, na sua direção revolucionária.”[4]
Apesar deste ser um debate que remonta a mais de 100 anos de história, a consciência de classe dos dirigentes dos principais partidos que chamamos anteriormente de partidos de esquerda com influência de massas (PT, PCdoB e PSOL) está em épocas ainda mais remotas. O atraso impera nas resoluções e notas políticas destes partidos. Estamos agora, mesmo com partidos operários com influência de massas, reféns da burguesia e do seu Estado, como Lenin previu que aconteceria na ausência de consciência socialista.
Na Rússia de 1917, a necessidade de uma revolução democrática tinha como questão central quem a conduziria, a burguesia ou o proletariado, e até onde iria, até a república democrático-burguesa ou ininterruptamente até o socialismo. Ao contrário da burguesia russa do início do século 20, a burguesia atual brasileira dá constantes provas de que está impossibilitada pela história de levar adiante qualquer tarefa democrática, a mínima que seja. Também no Brasil de 2020 não há um Estado feudal ou semifeudal.
Se o proletariado já é a maioria da população, se os sindicatos estão em sua maioria sob controle do PT e do PCdoB – repito, partidos operários, mesmo que degenerados – e se as relações capitalistas já eliminaram a maior parte dos resquícios feudais no Brasil, o que justificaria uma política de alianças com a burguesia no século 21, de sustentação do “Estado Democrático de Direito” como bastião da “democracia”? As condições para a tomada do poder pela classe trabalhadora estão dadas, o que falta é um partido com influência de massas que trabalhe nesse sentido, o que não temos. O PSOL, que por certo período ocupou a possibilidade de ser esse partido, decidiu ser um satélite do PT e do PCdoB, levando um vigor jovem e pintura socialista a velhas e atrasadas ideias.
“Para o PCdoB, nestas eleições, as forças progressistas estão desafiadas a derrotar as candidaturas associadas a Bolsonaro e a conquistarem vitórias nas disputas às prefeituras e Câmaras Municipais, resultando em governos municipais que efetivem uma melhora substancial na vida do povo e fortaleçam a frente ampla democrática. Tais vitórias irão robustecer essa frente, fortalecendo a jornada da oposição e abrindo caminho para o Brasil se ver livre do pesadelo e da ameaça que se chama Bolsonaro e se reencontrar com a democracia e o desenvolvimento soberano.” [5]
Segundo a resolução da Comissão Política Nacional do PCdoB, o povo poderia melhorar substancialmente de vida ao apostar nas “forças progressistas” presentes na “frente ampla e democrática” – que, por sinal, tem a burguesia presente[6][7].
A tradição revolucionária de dirigentes operários que pensavam a história humana pela luta de classes foi soterrada por partidos que se esforçam para limitar os movimentos espontâneos dos trabalhadores e suas reivindicações democráticas[8] ao ambiente político das instituições de uma república burguesa, que convenhamos, pouco tem de “democrática”. A república, se bem administrada pelos “progressistas”, dizem, poderia fazer o país “se reencontrar com a democracia”. O povo gostaria de saber quando foi o último encontro com essa tal democracia.
Em nota política divulgada pela direção nacional do PT, é realizado um balanço sobre as eleições de 2020, da qual destacamos o seguinte trecho:
“Foi nessas condições extremamente adversas que o PT resistiu politicamente ao movimento de queda que marcou a grave derrota eleitoral de 2016, na esteira de uma série de revezes políticos sofridos pelo partido desde 2013.”[9]
Sob o pretexto, sempre justo e sensato, da “conjuntura política extremamente difícil”[10] que sopra ventos contra a esquerda, dicide-se navegar, na verdade, contra a corrente da história: ao invés de ajudar a classe trabalhadora a ganhar consciência de classe e independência política, aproveitando a crise econômica e preparando setores cada vez maiores para um combate decisivo pelo poder, tentam convencer a classe, pelo exemplo prático dos dirigentes e exibindo suas pequenas conquistas cosméticas no parlamento, que ainda há vantagens que podem ser obtidas dessa burguesia e do velho Estado.
No documento de 210 páginas chamado “Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil”, divulgado em setembro desse ano, a direção do PT mostra não pensar muito diferente da do PCdoB:
“O Estado deve ser essencialmente democrático, republicano, ter o tamanho necessário para promover a justa regulação da economia e para a prestação de serviços públicos eficientes e de qualidade para o povo, de modo a alterar estruturas burocráticas que, embora aparentemente neutras, atuam no sentido de preservar e reforçar as profundas desigualdades sociais.”
Para o PT, caberia ao Estado a “justa regulação da economia” privada, leia-se “regular a exploração do trabalho assalariado pelo capital” e combater melhor “profundas desigualdades sociais” através da “prestação de serviços públicos eficientes”, leia-se “transformar o Estado em um bom gestor da miséria coletiva e da qualidade média da força de trabalho”. Um programa mínimo dos mais vergonhosos e uma grande utopia de um mundo onde trabalhadores e patrões dão as mãos e dançam a grande ciranda da fraternidade. Thomas Moore escreveria ótimos livros inspirados nesse plano.
A luta histórica do movimento operário por direitos, voltada a arrancar melhores condições de vida da burguesia e serviços sociais do Estado, ou a participação dos revolucionários no parlamento nada têm a ver com negociar com empresários uma austeridade menos dolorosa ou se integrar organicamente aos parlamentos e executivos das instituições burguesas. O que os programas políticos acima mostram é que PT e PCdoB se afastaram do movimento de massas para se integrar quase integralmente ao aparelho do Estado. O PSOL segue este caminho, aceitando acriticamente tais programas enquanto amplia sua bancada de parlamentares, planeja ganhar mais prefeituras e balança a bandeira da frente democrática de aliança de classes como sua principal ferramenta de luta.
A burguesia só apoia partidos de trabalhadores ou frentes de conciliação de maneira tática, nunca estratégica. Se apoia campanhas da esquerda ou assina manifestos de frente democrática, é para que ela funcione como cabresto a estes partidos. Se um dia os trabalhadores assumirem algum protagonismo político, a fantasia que essa burguesia sustenta de companheiros lutando e confraternizando em uma trincheira comum pela justiça social será substituída pelo pesadelo da chuva de fogo que destruiu Sodoma e Gomorra. O ideário estratégico burguês é a construção de um partido puro sangue, com seus representantes diretos no Estado, assim como uma classe trabalhadora atomizada, desorganizada, onde o trabalhador negocie individualmente com as empresas como vendedor “livre” da sua força de trabalho.
Nesse sentido, a esquerda, nas últimas décadas, vem prestando ótimos serviços à burguesia. Se não age deliberadamente para destruir sindicatos, porque precisam deles para exercer sua influência sob a classe, o cotidiano de negociatas pelo alto e de controle dos aparelhos sindicais pela força, seja pelo dinheiro em campanhas ou do porrete quando se sentem ameaçados[11][12], levou a um número recorde de desfiliações. Só em 2019 foram 1 milhão[13] de filiados perdidos. A diferença da atomização dos trabalhadores gerada nas últimas décadas pela esquerda e aquela gerada pelos militares após o golpe de 1964 é que a esquerda conseguiu alcançá-la sem pau de arara e tanques de guerra nas ruas, ou seja, com muito menos barulho e custando uma ninharia para a burguesia.
O que impediria hoje a classe trabalhadora tomar o poder? O FMI teme calotes generalizados dos países “em desenvolvimento” e prevê uma recuperação econômica “longa, desigual, incerta”[14]. O sistema está apodrecendo e impondo pela austeridade, regulada ou não pelo Estado, degradação no modo de vida trabalhadores. Sem o auxílio emergencial, que retirou da extrema pobreza 72% dos domicílios que o receberam[15], o futuro se torna aterrorizante para aqueles que não conseguiram rendimentos próximos à média da subsistência. Levemos em conta que vivemos em um país onde um em cada cinco trabalhadores, ou 20% dos trabalhadores, tem renda média de R$ 471 por mês[16].
Diante das consequências do apodrecimento do modo de produção, e trazendo para o exemplo prático do fim do auxílio emergencial, no que setores progressistas da burguesia poderiam contribuir para as famílias das 13 milhões de pessoas que saíram da extrema pobreza com o auxílio durante a pandemia[17]? A burguesia, seja qual for sua fração, jamais concordaria com o prolongamento do auxílio emergencial se ele significar continuar elevando a dívida pública[18], elevação essa que afastaria investimentos estrangeiros pelo risco de um calote no pagamento dos juros. Muito menos aceitaria uma taxação da sua própria riqueza, que se ocorresse elevaria seus gastos com evasão fiscal e com a corrupção.
O trabalho político de fazer avançar a consciência de classe dos trabalhadores brasileiros pode ser, sim, um processo demorado. Mas não há atalhos para construir uma direção revolucionária. Ele se faz em protestos, em adesivos, em panfletos, em jornais, revistas, em textos como esse, em programas de televisão, vídeos em redes sociais, em greves, em ocupações, em milhares de reuniões e grupos de estudos. Entretanto, o trabalho de conscientização socialista só pode ser realizado quando aqueles indivíduos e organizações políticas que se dispõem a estar à frente do movimento não estão agarradas ao velho mundo com todas as suas forças.
A política de conciliação de classes e de frentes com a burguesia pode ainda representar, personificada nos velhos dirigentes partidários, uma consciência de classe mais avançada que a presente atualmente na massa trabalhadora. Espremida em ônibus e trens, arriscando sua vida diariamente em meio à pandemia, a classe operária ainda não encontrou uma válvula de escape ou uma organização política para expressar sua insatisfação contra o sistema. A esquerda pode se orgulhar: está fazendo um ótimo trabalho em conduzir parte significativa dessa indignação para dentro dos marcos da república burguesa, do velho Estado, da velha democracia ou mesmo, na falta disso tudo, para dentro da vida privada e de seus pequenos prazeres cotidianos.
Contudo, a massa trabalhadora está à esquerda destes dirigentes da esquerda. Não porque compreendeu de maneira consciente as relações sociais de produção capitalista e decidiu se colocar contra os traidores, ainda. Mas porque tem sua consciência chacoalhada diariamente pela situação objetiva de decadência, reconhecem um clima pré-revolucionário que ganha expressão nas reivindicações democráticas recentes, imediatas ou não, contra o racismo, contra a violência policial e agora, quem sabe, pelo direito à vacina contra a Covid-19. Os ventos são contra o sistema e os únicos que fingem não saber disso são as lideranças da esquerda com influência de massas.
Quando os trabalhadores encontrarem a reivindicação que vai colocá-los em movimento nas ruas, aos milhões, nenhum aparelho policial, sindical, parlamentar ou partidário poderá pôr freio a sua fúria. Estará geminando os primeiros ramos da nova democracia, assim como ocorreu em 2020 em diversos países da América Latina. A história vingará os trabalhadores, jogando na lata de lixo todos aqueles que tentaram matar no ventre o futuro prestes a nascer, cobrando dobrado cada lágrima rolada nesse longo e doloroso penar.
Referências:
[1] Broué, P. O partido bolchevique. São Paulo: Sundermann, 2014, p. 69, GRIFOS NOSSOS
[2] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/23.htm
[3] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estado-e-a-revolucao.pdf
[4] Broué, P. O partido bolchevique. São Paulo: Sundermann, 2014, p. 33, GRIFOS NOSSOS
[5] https://pcdob.org.br/documentos/votar-65-em-defesa-da-vida-da-democracia-dos-direitos-e-do-emprego/
[6] https://www.marxismo.org.br/as-frentes-de-conciliacao-e-a-hipocrisia-das-direcoes-reformistas/
[7] https://www.marxismo.org.br/frente-democratica-de-fhc-a-boulos/
[8] Estas reivindicações podem ser das mais diversas, como aumento de salário, direito ao aborto, emprego, acesso à universidade, fim do feminicídio, lgbtcidio, derrotar governos autoritários, asfalto na porta de casa, água encanada, entre muitas outras. São democráticas porque representam conquistas que trariam poder e governo ao povo.
[9] https://pt.org.br/eleicoes-2020-declaracao-politica-do-partido-dos-trabalhadores/
[10] https://pt.org.br/eleicoes-2020-declaracao-politica-do-partido-dos-trabalhadores/
[11] http://www.esquerdadiario.com.br/spip.php?page=movil-nota&id_article=5832
[12] https://esquerdadiario.com.br/Com-agressoes-fisicas-bate-paus-da-CTB-PC-do-B-tentam-impedir-realizacao-de-eleicao
[13] https://oglobo.globo.com/economia/sindicatos-perdem-quase-1-milhao-de-filiados-em-2019-24605604
[14] https://www.marxismo.org.br/havera-um-boom/
[15] https://www1.folha.uol.com.br/podcasts/2020/11/o-fim-do-auxilio-emergencial-e-seu-impacto-nas-periferias-e-na-economia-ouca-podcast.shtml
[16] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/05/06/um-em-cada-cinco-trabalhadores-tem-renda-media-de-r-471-diz-ibge.htm
[17] https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/08/26/auxilio-emergencial-tira-13-milhoes-de-pessoas-da-pobreza-extrema-aponta-fgv
[18] https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2020/04/09/auxilio-emergencial-de-onde-vem-os-r-600-que-o-governo-ira-distribuir.ghtml