Quando a lança é adornada: A aurora da criação artística sob uma perspectiva marxista

 
Desenho rupestre. Caverna de Altamira, Espanha
 

 

Vemos, pois, que a mão não é apenas o órgão do trabalho; é também produto dele. Unicamente pelo trabalho, pela adaptação a novas e novas funções, pela transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos músculos e ligamentos e, num período mais amplo, também pelos ossos; unicamente pela aplicação sempre renovada dessas habilidades transmitidas a funções novas e cada vez mais complexas foi que a mão do homem atingiu esse grau de perfeição que pôde dar vida, como por artes de magia, aos quadros de Rafael, às estátuas de Thorwaldsen e à música de Paganini. 
 
Mas a mão não era algo com existência própria e independente. Era unicamente um membro de um organismo íntegro e sumamente complexo. E o que beneficiava a mão beneficiava também a todo o corpo servido por ela; e o beneficiava em dois aspectos.” 

(Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Friedrich Engels. 1876)

Vemos nesse trecho de um texto inacabado de Engels que o desenvolvimento do homem está intrinsecamente atrelado ao desenvolvimento de seu trabalho, e o seu trabalho também consequentemente se desenvolve na medida em que o seu produtor está em constante processo de desenvolvimento. Sendo assim, há entre o homem e seu produto, uma relação de cointerferência, que tornará ambos mais complexos e refinados.
Este é um ponto relevante na discussão sobre a diferença entre o homem e os animais, inclusive entre o homem primitivo e os primatas de sua época. Tendo em vista que o desenvolvimento fisiológico e mental do homem estava em outro nível evolutivo comparado com o dos outros animais, e principalmente, que o homem era capaz de se identificar como ser que interfere de forma ativa na natureza, e de se reconhecer nessa interferência.
Usaremos aqui a teoria marxista para propor uma possível origem da obra de arte, localizando-a  na Idade da Pedra Lascada (ou Paleolítico Superior). Período que vai de cerca de 30 mil a 8 mil antes de Cristo. Esse ensaio utilizará um estilo de explicação ilustrativo, para abarcar o que poderia ter sido a aurora do trabalho artístico, ou seja, o surgimento da produção criativa com fins artísticos.
 Desenho Rupestre. Caverna de Lascaux, França
Quando o homem primitivo (e suas habilidades técnicas) se desenvolve a ponto de ser capaz de satisfazer suas necessidades físicas primárias, usando das ferramentas criadas por ele mesmo para “manipular” essa realidade em seu favor; então, a partir desse momento lhe é possível produzir (criar) sem o fim único da “utilidade” prática.
Assim, um pedaço de madeira que recebe uma pedra pontiaguda na ponta, torna-se uma lança:  isso se dá através do que chamaremos de trabalho. Esse instrumento pode agora ser usado para matar o javali e saciar a fome desse caçador. Essa já é uma forma do homem interferir na natureza, é na realidade um prolongamento da atividade humana na natureza, pois seus limites de atuação agora se expandem para além de seus braços, de seu corpo. Esse nosso caçador, cria várias outras forma de expansão de sua atividade no mundo, através dos utensílios que ele cria e onde cada um possui uma função específica.
Em um segundo momento com as forças produtivas mais desenvolvidas, o homem, não tendo mais necessidade de criar apenas para sobreviver, é capaz de criar para satisfazer seus prazeres estéticos.  Então, ele começa a dedicar tempo a ornamentar essa lança, ainda que essa ação não tenha nenhuma “utilidade prática”, como por exemplo, tornar a lança mais afiada. Porém, esse gesto expressa a capacidade humana de se manifestar, de se externar, ou seja, de sair de si e deixar sua marca nesses objetos que o cercam.
Esse externar-se pode ser observado, por exemplo, quando o homem paleolítico desenha as feras que lhe causam medo sendo mortas pelas lanças produzidas e decoradas por ele mesmo. Desenhar a fera sendo morta não a mata de verdade, porém esse desenho no fundo da caverna serve, entre outros motivos, para expressar os medos e os desejos humanos. Por isso ele deve ser o mais realista possível, pois serve como motivação para que o homem faça da mesma maneira, quando este estiver enfrentando a realidade. Ou seja, o homem interfere na realidade criada por ele (a arte realista na caverna), pois assim ganha “forças” para interferir na realidade que não foi criada por ele (o meio natural), mas, que agora ele já se sente capaz de modificar, pois teve as forças essenciais potencializadas pelo caráter “mágico” que sua criação proporciona.
Desse modo, poderíamos dizer que o trabalho teria por finalidade satisfazer as necessidades humanas materiais, primordialmente; enquanto que a arte as necessidades espirituais.
O trabalho está ligado à produção de valores de uso ou objetos úteis; já a arte produz objetos úteis não no sentido prático-utilitarista, mas no sentido espiritual (estético, emocional, etc), e com isso a produção artística é uma criação mais livre, pois cria para além das necessidades físicas. Nesse sentido, ambas as modalidades; trabalho e arte  têm em comum o objetivo de humanizar a natureza, ou seja, visam a materialização das forças essências humanas, a plasmação da essência humana em um objeto concreto-sensível no qual o homem possa se exteriorizar e se reconhecer nele.
Vale ressaltar que essa cisão entre trabalho e arte é apenas para fins didáticos, para uma compreensão mais clara de suas particularidades, pois não é possível fazer esse divórcio entre trabalho e arte, uma vez que o trabalho possui também uma atuação estética, uma vez que pode responder às demandas espirituais humanas (seus medos, desejos, pulsões) e a arte tem o caráter de utilidade resgatado quando a ação artística faz o homem crer que a lança ficou mais afiada, ou que desenhar a caça sendo abatida, faz com que ela de fato seja abatida.
E por fim, não desejamos colocar um ponto final sobre como se deu a origem da obra de arte, mas gostaríamos de propor uma hipótese consistente, que se baseia nos estudos que o materialismo dialético nos oferece, e com isso entendermos a importância que o homem e suas manifestações têm para o marxismo.

3 comentários

  1. Fabiano Leite

    A cisão entre o trabalho e a arte não é apenas para "fins didáticos"; é uma realidade que atravessa quase toda a história da humanidade e que começa com as sociedades de classe (escravagismo, feudalismo, capitalismo). Pode haver um trabalhador artista, mas, se observarmos este fenômeno singular mais de perto, poderemos ter a surpresa de descobrir que este trabalhador já não é mais o trabalhador de antes, que já se diferenciou social e psicologicamente de sua classe de origem. O seu novo discurso – no caso, seu discurso estético – pode representar seu desvínculo total de sua classe de origem. E, o que é pior, através da porta do esteticismo mal digerido, pode dar entrada ao ar viciado e venenoso da estética da classe dominante. No fundo, isto pode provocar a deserção do trabalhador e a morte do poeta.

  2. Fabiano Leite, sua opinião é intrigante. Sempre que se pensa conjuntamente trabalho e arte, sempre se aponta a arte servindo ao interesse financeiro. A industria cultural, em suma. Claro que a sua ótica também cobre esse fenômeno, mas há algo, ao meu singelo ver, mais profundo nisso.

    Fato é que sempre há uma classe, ideologia, comportamento, prática espiritual e ética dominante em qualquer povo e época da humanidade. Quando há alguma migração ou fluxo de indivíduos entre essas camadas da sociedade, naturalmente esse indivíduo não é mais o mesmo, como você disse acima. Porém ele não é pertencente, afim, identificável ou qualquer outro termo que exprima a mesma ideia, ele não pertence unicamente nem a uma, nem a outra. na verdade, ele é uma combinação exótica de ambos. Grosseiramente exemplificando, um cara rico que se viu obrigado a morar na periferia e conviver com a população dessa localidade. Sua cultura e memória é de um outro parâmetro social, porém sua história e formação individual é distinta a de sua família. Mesmo que ele tente, ele não será inteiramente rotulado como "rico" ou "pobre", se olharmos seu sistema ideológico e comportamento. Creio estar falando de identidade, agora. Então não vou adentrar por mais essa questão não, pois ela merece um artigo a mais para ser bem trabalhada.

    Agora ao Felipe Araújo, que é o autor do texto. Cara, parabéns pela ideia apresentada no texto. Sim, ele não é pretensiosamente determinante para uma "teoria do início da estética" e tal, mas aponta para um caminho interessante. Desta forma, parabéns pela sensibilidade para observar esse viés, imagino, pouco explorado, ainda.

    Se me permite uma crítica a mais, gostaria de lhe salientar a constante presença de períodos longos, alguns paragráficos. Sei que a ideia deve ser bem elaborada e esclarecida adequadamente. Mas atente para o possível cansaço que o leitor desacostumado com escritas mais técnicas e estilísticas. Mesmo no meio filosófico há os que assim são. Não que a qualidade deva diminuir, mas a forma da escrita. É um exercício que eu compartilho. Também gosto de períodos longos e ricos em imagens, metáforas, informação e estilo. Mas é importante pensar, também, no conforto de quem lê. E isso aprendi com o mestre Schopenhauer no seu livro "A Arte de Escrever".

    Até mais, meu caro! Bons estudos, desde já!

    Douglas Ramalho