“Bento tinha muito mais consciência da situação política que muitos outros escritores, analistas e jornalistas. E identificava de forma clara o que tinha que combater. O seu problema, de então e de hoje, é que ao invés de uma igreja combatente, a exemplo de Inácio de Loiola, ele tinha nas mãos uma igreja que sobrevivia do lucro e do “fashion”, onde seus bispos e cardeais se preocupam mais com seus negócios terrenos do que com seu combate concreto para o reino dos céus”. (Luiz Bicalho, https://www.marxismo.org.br/a-renuncia-de-bento-xvi-verdades-e-mentiras/)
Se os marxistas enxergavam este problema, o colégio de cardeais, o Conclave que elegeu Francisco, também o enxergava. Eles sabem que é preciso fazer algo com este paquiderme que sua por todos os poros lama, mentiras, imoralidades, riquezas, métodos e ações de fazer inveja à Cosa Nostra italiana.
O problema é que toda tentativa de mudança no sentido de recuperar a Igreja Católica como igreja militante, se choca com a realidade do que é hoje o Vaticano e sua estrutura internacional. Assim o Conclave tentou um recurso inédito: elegeu um Jesuíta para Papa, o primeiro desta ordem a chegar nesta posição. Sim, Francisco pode ser criticado de muitas formas, assim como Bento XVI. Inclusive pelo seu comportamento frente à ditadura argentina. Mas os jesuítas são um adversário muito mais perigoso que outros religiosos, e esta nota quer lembrar isto.
A origem dos Jesuítas
A Idade Média, o tempo dos senhores e servos, começa o seu ocaso no século XV, culminando na revolução inglesa de 1540 e na Revolução Francesa de 1789. Mas a burguesia detinha uma parte razoável do poder econômico nestes séculos e a invenção da imprensa, as grandes navegações que abriam o mundo ao comércio e a um novo poder econômico, a ruína financeira da nobreza, as cidades que conseguiam suas cartas de libertação, tudo isso demonstrava um novo mundo que surgia.
No feudalismo, assim como na antiguidade, a regra era simples: a religião do povo é a religião do senhor feudal, do rei. E quem não concordasse era morto. A religião era parte da estrutura do estado, era um dos pilares da estrutura de dominação. A burguesia, ainda que inconscientemente, começa a lutar contra isso. E desta forma que padres como Lutero e Calvino que contestam os dogmas da Igreja Católica conseguem uma repercussão que outros anteriormente não tinham conseguido. A nova classe que emerge encontra seus porta-vozes em religiosos que contestam a igreja oficial.
A Igreja Católica, por sua vez, começa a se adaptar aos novos tempos. De um lado, assumindo posições mais “compatíveis” com o mundo moderno, adaptando-se aos novos tempos em que juros e comércio são permitidos e, de outro lado, constituindo um grupo especial de militantes, organizados, armados e que combatem pela supremacia da própria Igreja Católica, em todos os níveis, desde a educação, na pregação, na conversão de novos povos (o mundo crescia e se estendia, na visão dos europeus, havia um mundo inteiro a conquistar e converter) e também no choque frontal, inclusive armado. Ignácio de Loiola, primeiro superior geral dos jesuítas, ex-soldado ferido na guerra, é o homem que monta este aparato e cria a ordem dos jesuítas, ordem militar que tem na obediência o seu lema.
Criticada ferozmente por todos os seus adversários, Trotsky relembra brevemente o papel que tais homens cumpriram na manutenção da Igreja católica:
“A ordem dos jesuítas, fundada na primeira metade do século dezesseis para combater o protestantismo, nunca ensinou que qualquer meio, mesmo o mais delituoso, de acordo com a moral católica, seja admissível, contanto que leve ao “fim”, isto é, ao triunfo do catolicismo. Essa doutrina contraditória e psicologicamente inconcebível foi malignamente atribuída aos jesuítas pelos seus adversários protestantes – e às vezes católicos – que, por sua vez, pouco se preocupavam com escrúpulos na escolha dos meios para atingir seus próprios “fins”. Os teólogos jesuítas – preocupados como os de outras escolas, com o problema do livre arbítrio – ensinavam na realidade que o meio, considerado em si mesmo, pode ser insignificante, mas que a sua justificação ou condenação moral depende do que se procura alcançar. Assim, um tiro de arma de fogo é, em si, um fato sem importância: disparado sobre um cão raivoso que tenta morder uma criança é um ato louvável; disparado para matar ou praticar violência é um crime. Os teólogos da Companhia de Jesus não queriam dizer nada mais do que estes lugares comuns. Quanto à sua moral prática, os jesuítas não foram piores do que os padres e monges das outras ordens; aliás, foram mesmo superiores. De qualquer maneira, deram prova de maior tenacidade, de maior audácia e maior perspicácia. Os jesuítas constituíam uma organização militante, fechada, rigorosamente centralizada, agressiva, perigosa não só para os seus inimigos, mas também para os seus aliados. Pela sua psicologia e pelos seus métodos de ação, os jesuítas da época “heroica” distinguiram-se do padre comum, como os guerreiros da Igreja se distinguem dos que comerciam à sua sombra. Não temos motivos para focalizar um ou outro. Mas seria totalmente indigno considerar o guerreiro fanático com os olhos do comerciante estúpido e preguiçoso”.[i]
A ordem dos jesuítas conseguiu sucessos e fracassos e, como todo o catolicismo, converteu-se no fim do século XIX e no início do Século XX num grande combatente contra o comunismo. Mas o tempo dos padres guerreiros tinha, pelo menos para a maioria, passado. Ainda assim, cumpriram e cumprem um papel na luta de classes. Um grande número de padres que assumiu a Teologia da Libertação veio de seus quadros, e se um ou outro passou para o nosso lado, para o lado da revolução, a maioria seguiu como Francisco, crítico dos males do capitalismo (para melhor defender este sistema) e crente que a caridade e a oração a Deus vão resolver nossos problemas, senão na Terra, mas quiçá no céu.
Trotsky, fazendo um balanço da Igreja em geral e de seu corpo de combate, os jesuítas, termina assim sua curta análise:
“A comparação entre jesuítas e bolcheviques, ainda assim, fica de todo unilateral e superficial; pertence mais à literatura do que à história. Considerando os caracteres e os interesses das classes que os apoiavam, os jesuítas representavam a reação e os protestantes o progresso. Os limites desse “progresso” exprimiam-se, por sua vez, de forma imediata, na moral dos protestantes. A doutrina de Cristo “purificado” não impediu em nada o burguês citadino que era Lutero de pregar o extermínio dos camponeses rebeldes, “esses cães raivosos”. O doutor Martinho considerava evidentemente que “os fins justificam os meios”, muito antes que essa máxima fosse atribuída aos jesuítas. Por sua vez, os jesuítas, rivalizando com os protestantes, adaptaram-se cada vez mais ao espírito da sociedade burguesa e dos três votos – pobreza, castidade e obediência – conservaram apenas o último, ainda assim de forma bastante atenuada. Do ponto de vista do ideal cristão, a moral dos jesuítas caiu tanto mais baixo quanto mais eles cessaram de ser jesuítas. De guerrilheiros da Igreja passaram a ser burocratas e, como todos os burocratas, uns pilantras de primeira”.[ii]
Sim, isto é verdade para a maioria dos padres jesuítas, mas é preciso lembrar que eles continuam sendo a maior ordem católica hoje existente e que o nosso Bispo de Roma, Francisco, parece seguir com convicção os três votos. Não sabemos ainda até que ponto ele conseguirá que estes três votos se tornem majoritários na Igreja, mas sabemos que ele não é um simples “apoiador” de ditadores. Afinal, ele concorreu contra Bento XVI, perdeu a eleição no conclave passado e, ao contrário de outros perdedores, não se conformou e voltou a carga, sendo eleito neste, contra todos os prognósticos dos “entendidos” no Vaticano.
Um papa militante
Este militante de direita compenetrado e dedicado assim que eleito rompeu bruscamente com todos os signos da burocracia e tem feito da mídia o seu aliado. Despreza solenemente as acusações de colaboração com a ditadura e, como Bento XVI, também a discussão sobre temas tão importantes para a grande imprensa: legalização de drogas, homossexualidade. Mas vai direto ao ponto, apelando para a bondade dos governantes e dos poderosos do mundo:
“Queria pedir, por favor, a quantos ocupam cargos de responsabilidade em âmbito econômico, político ou social, a todos os homens e mulheres de boa vontade: sejamos «guardiões» da criação, do desígnio de Deus inscrito na natureza, guardiões do outro, do ambiente; não deixemos que sinais de destruição e morte acompanhem o caminho deste nosso mundo! Mas, para «guardar», devemos também cuidar de nós mesmos. Lembremo-nos de que o ódio, a inveja, o orgulho sujam a vida; então guardar quer dizer vigiar sobre os nossos sentimentos, o nosso coração, porque é dele que saem as boas intenções e as más: aquelas que edificam e as que destroem. Não devemos ter medo de bondade, ou mesmo de ternura”.[iii]
Sim, este é Francisco, o cardeal que foi amigo dos ditadores da Argentina e que combate de forma consequente pela sua posição. Tal qual os primeiros jesuítas, Francisco anda de ônibus, cozinha a sua comida, mora em um pequeno apartamento e não traz em si sinais de riqueza ou de abusos sexuais. Pelo contrário, é um militante aguerrido de sua causa e se Bento mantinha os sinais de riqueza, Francisco tenta aboli-los e, provavelmente, tal qual Bento, vai se chocar com a rotina burocrática do Vaticano, a Cúria Romana.
No Conclave passado, ficou em segundo lugar na disputa dos votos, contra Bento XVI. E aproveitou o tempo para militar. Ampliou seu círculo de amizades e um dos seus maiores eleitores e conselheiros foi Dom Cláudio Humes, ex-arcebispo de São Paulo, sucessor de D. Evaristo Arns. Se Arns era identificado com a esquerda católica e com a luta contra a ditadura, este não é exatamente o caso de Humes, um homem escolhido a dedo para mudar a face pretensamente esquerdista da Igreja de São Paulo. Dom Cláudio Humes, foi arcebispo de São Paulo, depois cardeal e na Cúria Romana foi prefeito da Congregação para o Clero, um homem de dentro do aparato. Na última Assembleia Anual da CNBB, em Aparecida, Brasil, foi ele que presidiu a Comissão que redigiu o documento final da Assembleia.
Mais ainda, Francisco parte diretamente dos Evangelhos e ao invés dos grandes estudos teológicos de Bento, apela diretamente aos primeiros escritos da Igreja, da Igreja militante, mas uma militância que prega a paz na terra, a Cesar o que é de Cesar, e a esperança dos céus como a forma de resolver os problemas sociais. Assim, é que Francisco prega a caridade e o perdão:
“Alguns não sabiam por que o Bispo de Roma se quis chamar Francisco. Alguns pensaram em Francisco Xavier, em Francisco de Sales, e também em Francisco de Assis. Deixai que vos conte como se passaram as coisas. Na eleição, tinha ao meu lado o Cardeal Cláudio Hummes, o arcebispo emérito de São Paulo e também prefeito emérito da Congregação para o Clero: um grande amigo, um grande amigo! Quando o caso começava a tornar-se um pouco «perigoso», ele animava-me. E quando os votos atingiram dois terços, surgiu o habitual aplauso, porque foi eleito o Papa. Ele abraçou-me, beijou-me e disse-me: «Não te esqueças dos pobres!» E aquela palavra gravou-se-me na cabeça: os pobres, os pobres. Logo depois, associando com os pobres, pensei em Francisco de Assis. Em seguida pensei nas guerras, enquanto continuava o escrutínio até contar todos os votos. E Francisco é o homem da paz. E assim surgiu o nome no meu coração: Francisco de Assis. Para mim, é o homem da pobreza, o homem da paz, o homem que ama e preserva a criação; neste tempo, também a nossa relação com a criação não é muito boa, pois não? [Francisco] é o homem que nos dá este espírito de paz, o homem pobre… Ah, como eu queria uma Igreja pobre e para os pobres”![iv]
Estas “confissões” de Francisco contrastam com a guerra sem quartel travada em muitos países por séculos entre franciscanos e jesuítas. Inclusive no Brasil, onde os franciscanos apoiavam a escravidão e os jesuítas a combatiam de armas na mão.
Francisco retoma o emblema militante dos jesuítas, a Cruz e a Espada, no interior do Sol, representando o universo inteiro. Em outras palavras, estamos na presença dos guerreiros de Jesus, da Cia de Jesus, os jesuítas. Cia, como um esquadrão de guerra. E é completado no brasão de Francisco pela estrela representando Maria e pela flor de nardo representando São José. A mãe de Jesus e seu protetor na infância, São José, marido de Maria. Um símbolo que é todo um programa, um programa de mudança da igreja, de sua renovação, de combate ao comunismo (como bem explicou Bento) e à revolução, de manter o capitalismo através da oração, do perdão e da caridade.
É todo um programa que retoma o que Bento XVI pregava (que também vinha de uma ordem muito militante, a Opus Dei), mas desta vez feito por um papa que anda de ônibus, que cozinha a sua própria comida, que pede que os fieis doem para a caridade ao invés de irem assistir sua posse. Sim, até algo velho e venerável como a Igreja Católica, pode passar por um sopro de ar fresco para novamente se constituir num grande bastião contra a revolução. A burguesia ensarilha suas armas.
Terá Francisco forças – forças que não são as dele pessoais, mas as da contrarrevolução que a burguesia arma e de todo o aparato posto a sua disposição pelo Vaticano ao nomeá-lo papa – para domar o monstro que é a Igreja Católica, para sacudir os burocratas de seus dosséis e luxos e constituir uma força combatente, tal qual desejava Bento ou também vai se estropiar frente à burocracia e o luxo do Vaticano?
Dificilmente vencerá Francisco, mesmo que seu desejo militante seja reacionário e anticomunista, como de poucos. Pois a maioria da igreja não é militante programática, mas responde pelo aparato interessado no Status Quo.
A Igreja Católica há muitos séculos deixou de ser militante e se integrou na vida das classes dominantes de forma irreversível. Desde que se transformou em religião de Estado na Roma do século 4 com a adesão do imperador Constantino. Segundo este imperador, antes de uma grande batalha sonhou com uma cruz e nela estava escrito: “In hoc signo vinces”, ou “Sob este símbolo vencerás”.
Assim, a igreja abandonou o cristianismo primitivo e entrou no caminho da manutenção das classes possuidoras e dos privilégios sobre a vida das massas. A sua modificação, adaptando-se ao capitalismo foi longa e árdua, levando à separação das igrejas ditas “protestantes” ou “evangélicas” e neste bojo nasceu a Cia. de Jesus como reação armada ao cisma. A adaptação da Igreja aos novos tempos só se completa no final do século XIX, quando ela assume o combate ao socialismo como o seu principal inimigo, de defensora do sistema feudal a defensora do sistema capitalista.[v]
A estrutura da Igreja está enfeudada com o capitalismo imperialista e podre (Bancos, empresas, maior proprietária de terras do mundo, tesouros, palácios, imóveis, em quantidades incalculáveis), que sua doutrina diz combater, mas na verdade alimenta tentando dar “face humana” à exploração do homem pelo homem e mantendo os “rebanhos” pacificados frente ao chicote dos exploradores.
Os próximos meses serão interessantes, afinal, a crise da Igreja Católica é parte da crise do capitalismo e o resultado desta crise é algo que interessa – e não de forma marginal – a revolução.
A luta pelo socialismo é incompatível com a doutrina social da igreja. E quem afirma isso não são apenas os marxistas. É o papa que estabeleceu as bases modernas desta doutrina na encíclica Rerum Novarum (em português quer dizer “Das coisas novas”), Leão XIII. No capitulo “Sobre a questão operária”, onde se debruça sobre os problemas resultantes da revolução industrial que suscitaram a luta de classes entre capital e trabalho a encíclica afirma:
“os erros que provocam o mal social, exclui o socialismo como remédio e expõe de modo preciso e atualizado a doutrina católica sobre o trabalho, o direito de propriedade, o princípio da colaboração em contraposição à luta de classes, sobre o direito dos mais fracos, sobre a dignidade dos pobres e as obrigações dos ricos, o direito de associação e o aperfeiçoamento da justiça pela caridade.” (Encíclica Rerum Novarum, Leão XIII, 15/05/1891)
Aos marxistas, cabe entender as razões da luta em curso, entender que deste combate, que num primeiro momento aglutina inclusive muitos católicos, que se definem como de esquerda, na defesa de Francisco, surgirão os choques brutais com a realidade, a luta de classes e as fissuras que não podem ser soldadas dentro do aparato do Vaticano. Isto vai liberar muitas forças na base popular da igreja assim como vai provocar muita desmoralização. O vento renovador vai se chocar contra a burocracia, o luxo e as propriedades da Igreja. Deste choque, muitos que hoje conservam sua fé e olham com esperança, vão se liberar na direção da revolução. Outros serão cooptados para a contrarrevolução. Entender este processo e ajudar os que querem honestamente ajudar a libertação dos pobres, ou seja, ajuda-los a entender o processo de luta de classes e a tornar-se combatentes decididos da revolução é uma das tarefas que se nos é imposta.
[i] Trotsky, A nossa moral e a deles.
[ii] Trotsky, obra citada.
[iii] http://www.vatican.va/holy_father/francesco/homilies/2013/documents/papa-francesco_20130319_omelia-inizio-pontificato_po.html
[iv] http://www.vatican.va/holy_father/francesco/speeches/2013/march/documents/papa-francesco_20130316_rappresentanti-media_po.html
[v] A Igreja mostrou uma imensa capacidade de adaptação aos novos tempos, ao contrário de outras instituições. Ela começou como a religião dos pobres, dos escravos e dos desvalidos que cresce a partir da derrota da revolta de Spartacus, simbolizando que o Império Romano não poderia ser derrotado na Terra, mas somente nos céus. Depois, é adotada pelo imperador Constantino como forma de manter unido o Império num momento de decadência frente às invasões bárbaras.
Posteriormente, adapta-se aos novos tempos e “evangeliza” os bárbaros conquistadores, fornecendo-lhes o aparato ideológico e de justiça a um funcionamento “regular” do sistema feudal. Isto custou o cisma do Oriente (Igreja Ortodoxa). A sua conversão ao capitalismo também foi lenta e custou o cisma dos “protestantes”.