O afastamento de Robert Mugabe na terça-feira, 21 de novembro, da presidência do Zimbábue após 37 anos no cargo reverberou por todo o sul da África. Em Uganda, fez emergir muitas tensões que se escondiam sob a superfície social.
Mugabe era odiado em toda a África, não só porque era um governante brutal, mas porque pertence a uma tendência de totalitarismo que oprimiu as massas africanas durante décadas. Sua queda foi recebida com júbilo por todo o continente, onde as massas estão cansadas dos velhos e apodrecidos regimes. No Zimbábue, Moçambique, Botswana e África do Sul houve cenas de celebrações selvagens nos grandes centros. Na África do Sul, que tem uma grande comunidade de zimbabuenses imigrantes, o subúrbio de Hillbrow, em Johanesburgo, se transformou em uma “mini Harare”, enquanto milhares de pessoas dançavam nas ruas.
Mugabe não foi removido pelas massas zimbabuanas. Sua remoção veio em razão das contradições no topo do regime, que se intensificaram ao longo dos anos e que, finalmente, irromperam em uma divisão aberta. As lutas por recursos, influência e poder se tornaram cada vez mais intensas até o final do reinado do homem de 93 anos de idade. Essas divisões no topo terminaram em um golpe. Mas, para dar legitimidade ao golpe, a camarilha militar se apoiou no movimento de massas de 18 de novembro para expulsar a facção adversária e camuflar sua evidente tomada do poder.
No entanto, uma vez chamadas às ruas, as massas estão agora expressando anos de frustração e raiva. Celebrando o fim de Mugabe, cedo exigirão uma reversão dos anos de corrupção e opressão. Na realidade, é claro, nada mudou de fundamental. O Zimbábue ainda se encontra sob o controle do velho regime, que agora continua sem Mugabe.
O novo presidente, Emmerson Mnangagwa, é o outro lado da moeda em relação a Mugabe. Ele foi um personagem fundamental na política zimbabuense durante todos os momentos dos últimos 40 anos. Conhecido como “o crocodilo”, ele não é nada mais que uma cópia ruim de Mugabe. Cedo as massas se darão conta disso e, à medida em que a euforia evaporar, será substituída pela desilusão e em seguida pela raiva. Os chefes do exército sabem disso e estão tratando de conduzir todo o processo por um canal “constitucional”. Esta é a base da farsa da renúncia de Mugabe. Mas nenhuma eleição ou processo constitucional pode encher os estômagos do povo do Zimbábue.
O novo regime não será capaz de estabilizar calmamente o seu domínio no curto prazo. As divisões no topo do regime, que culminaram na remoção de Mugabe, despertaram as massas desde baixo. No Zimbábue, e de fato em todo o sul da África, os trabalhadores da região, os camponeses e as pessoas chegaram de repente na vida política e agora estão acompanhando todos os acontecimentos. Isso está causando um grande nervosismo entre as elites da região.
Pânico
O exemplo mais claro nessa etapa é o vizinho da África Oriental do Zimbábue, Uganda. O regime de Yoweri Museveni está lançando claros sinais de pânico. Quando o golpe explodiu, Museveni revelou sua paranoia ao atacar a Força de Defesa do Zimbábue, chamando o golpe de “inconstitucional”. Naturalmente, isto é valioso vindo de uma pessoa que pisa a própria constituição de Uganda.
Museveni tem razão de se preocupar. A queda de Mugabe está influenciando acontecimentos em Uganda, onde as massas agora se sentem encorajadas. O regime está nervoso com os acontecimentos no Zimbábue nos últimos dias e está se movendo para acalmar o ambiente nas ruas.
Um dia depois da “renúncia” de Mugabe, Museveni prometeu moradia e aumentos de salários para professores, soldados, trabalhadores da saúde e funcionários públicos. Esse anúncio foi um grande choque para todos. Antes Museveni assegurava obstinadamente que isso era inviável devido à lentidão da economia. Agora, miraculosamente, a situação econômica melhorou a tal ponto que ele pode começar a fazer concessões! Claro, o que ele está tentando é fazer reformas a partir de cima para evitar uma revolução vinda de baixo. Mas com as massas se sentindo mais fortes a cada dia, as reformas somente vão encorajá-las ainda mais.
Encorajadas
Dentro de poucas horas deste anúncio, outras camadas de trabalhadores, como os condutores de táxi, saíram às ruas. Eles estiveram travando uma luta contra as autoridades municipais da capital Kampala sobre a imposição de impostos aos operadores de táxi na cidade. Eles bloquearam o caminho e interceptaram o comboio de Museveni, exigindo que se dirigisse a eles sobre o assunto.
Depois de um enfrentamento tenso com as forças especiais, e com medo de que as coisas pudessem escapar do controle, Museveni foi forçado a intervir e a fazer um curto discurso. De pé e através do teto solar do veículo presidencial, ele disse aos taxistas que não estava a favor da imposição de impostos e prometeu cuidar do assunto com urgência. Uma grande ovação explodiu. Satisfeitos com a resposta, os taxistas abriram o caminho e deixaram passar o comboio.
Isso não tem precedentes! A própria ideia de que as pessoas podem bloquear o comboio presidencial e fazer exigências ao “homem forte” de Uganda é inaudita. É uma indicação de que as massas estão agora perdendo o medo do regime e se sentem encorajadas pelos acontecimentos em seu país vizinho. Uma vez que as massas percebam o medo do regime e este comece a fazer concessões, tudo isto encorajará as pessoas a avançar com suas demandas.
Pendurados
O regime está claramente aterrorizado. Vários ministros e aliados-chave do círculo íntimo de Museveni advertiram ao homem de 73 anos de idade a abandonar as tentativas de emendar a constituição para abolir a idade limite de 75 anos que o impede de ampliar seus 31 anos de governo. Atualmente a limitação da idade impede Museveni de se apresentar nas eleições nacionais em 2021.
Este assunto esteve fervendo durante meses. É profundamente impopular e está causando uma resistência generalizada por parte dos ugandenses comuns e correntes. Uma sondagem do Afrobarometer descobriu que mais de 60% se opõem ao projeto de lei. Para levar esse assunto à frente, Museveni deu a cada membro do Parlamento 8 mil dólares ugandenses “para facilitar a consulta com seus eleitores” sobre o projeto de lei.
Isso provocou indignação entre muitos ugandenses da classe trabalhadora. Em um país onde 27% da população vivem com menos de US$ 1 por dia, essa corrupção aberta causou cenas furiosas recentemente. Houve vários confrontos com a polícia quando alguns deputados tentaram defender o projeto de lei em seus domicílios eleitorais.
Essas pressões foram sentidas no parlamento. Alguns deputados da oposição tentaram bloquear a apresentação do projeto de lei, mas foram removidos à força por uma unidade do exército. Embora o tema seja profundamente impopular, Museveni está ignorando seus conselheiros e está avançando obstinadamente, chamando de “parasitas” os deputados que se opõem ao projeto de lei. Claramente esses deputados estão com medo de provocar a ira das massas, mas retroceder deixará Museveni humilhado. Seria o fim da imagem de “homem forte” que ele cultivou durante os últimos 30 anos e isso dará mais confiança ao movimento nas ruas.
Queda de popularidade
Tudo isso está acontecendo em um momento em que todo o regime está manchado pelo crescimento da pobreza, da corrupção e pelo colapso dos serviços públicos. Enquanto os pobres ficam mais pobres, os ricos ficam mais ricos. Recentemente, Museveni abriu o país rico em petróleo ao saque sob o disfarce de “investimento estrangeiro”. Empresas petrolíferas francesas e chinesas ganharam contratos lucrativos para bombear 6,5 bilhões de barris de petróleo através de um oleoduto de US$ 3,5 bilhões.
Isso está causando profunda frustração em todo o país. Nas últimas celebrações do Dia da Independência, que Museveni realizou em sua região natal, somente um punhado de pessoas compareceu ao evento. De fato, seus guarda-costas pareciam superar em número a multidão! É um sinal de que sua popularidade míngua mesmo nas partes rurais do país, que tradicionalmente formaram a base de apoio de Museveni.
À medida que cai o seu apoio, ele confia cada vez mais nos militares: especialmente no Comando das Forças Especiais, que ele transformou em sua leal guarda pessoal. A unidade foi construída em linhas étnicas, composta majoritariamente pelo grupo étnico Hima, de Museveni. O objetivo é claramente o de semear divisões étnicas que ele pode utilizar para se manter no poder. A unidade é mais bem paga do que as outras unidades do exército, mais bem treinada e equipada. Ela foi anteriormente comandada pelo filho de Museveni, que é agora um conselheiro presidencial. Um aumento crescente da brutalidade perpetrada pelos serviços de segurança também é uma fonte de ressentimentos crescentes contra Museveni.
Como é o caso em outros lugares do continente, Museveni retirou as forças especiais da cadeia de comando comum e a pôs sob seu controle direto. Ao mesmo tempo, ele também expurgou a velha guarda do exército de guerrilha e cercou-se de generais mais jovens e menos competentes, em um movimento para eliminar a concorrência. Mas mesmo aqui a situação no Zimbábue alvoroçou as penas. Claramente influenciados pelo golpe zimbabuense, que foi liderado pelo alto comando do exército, Museveni abalou o seu próprio exército fazendo uma revisão completa do topo da estrutura de comando. Despediu seu próprio general comandante e fez 300 promoções à cadeia de comando um dia depois da queda formal de Mugabe em Harare. Isso revela seu nível de paranoia. Mas, ao mesmo tempo, de forma similar à do Zimbábue, o início de um expurgo poderia trazer tensões para o interior do regime e aprofundar a crise política.
A batalha iminente
Na década de 1980 Museveni escreveu hipocritamente: “Os problemas da África e de Uganda em particular são causados por líderes que se eternizam no poder, o que gera impunidade, promove a corrupção e o clientelismo”. Agora, depois de 30 anos no poder, está se movendo para mudar a constituição para se aferrar ao cargo!
Essa é uma situação que persiste por toda a África, onde as velhas lideranças dos movimentos de libertação se transformaram em podres regimes ditatoriais. O principal problema reside no fato de que todos terminaram sem derrubar o sistema capitalista depois da conquista da independência formal. Em vez de derrubar o sistema, eles se transformaram em seus gerentes em nome de seus amos imperialistas.
Hoje muitos países da região são mais dependentes das potências imperialistas do que quando estavam sob seu controle direto durante a era colonial. Em vez do domínio militar-burocrático direto, os imperialistas estão dominando a região através da dependência da dívida e dos mecanismos do comércio mundial, e através da criação de regimes totalitários para fazer o trabalho sujo de manter as massas em cheque.
Esses regimes se cristalizaram depois das derrotas e da desmoralização dos anos 1980 e se apoiaram nos frágeis auges econômicos dos anos 1990 e 2000. Enquanto isso, apodreciam completamente por dentro: sentados no poder como em uma crosta débil de um vulcão fumegante, próximo a uma explosão.
O parasitário regime de Museveni está completamente desligado da sociedade real. Uganda tem uma população extremamente jovem com uma idade média de 15 anos. A maioria dos ugandenses nem tinha nascido quando Museveni chegou ao poder e não tem vínculos diretos com a era da libertação.
Também há uma enorme diferença entre Museveni e seu partido, o NRM. Diferentemente do ZANU-PF no Zimbábue, o NRM não tem uma grande e tradicional base social. Mal existe como organização e basicamente não tem estruturas. É na realidade uma máquina que existe para manter Museveni e sua camarilha no poder. Os funcionários e os deputados são extremamente dependentes do clientelismo do próprio Museveni.
A ausência de vida política no “partido” resultou em uma situação em que ele não pode produzir um sucessor. Museveni agora enfrenta seu próprio problema sucessório. Ele necessita de tempo para promover seu filho. É por esta razão que ele está pressionando por uma emenda constitucional.
Mas Museveni está ficando sem tempo. Depois de 31 anos de corrupção, pilhagens e desmoronamentos da infraestrutura, a jovem população já teve o suficiente. A extrema centralização do poder em suas próprias mãos significa que ele está agora sendo o ponto focal de toda a ira acumulada na sociedade.
Uganda é agora um barril de pólvora prestes a explodir. Da mesma forma que o outro homem forte, Mugabe, Museveni e sua camarilha devem ser varridos mais cedo ou mais tarde. Mas enquanto o capitalismo continuar, não haverá soluções para os problemas da terra, da moradia, da saúde, educação e emprego. Somente na base da abolição do sistema capitalista e na propagação da revolução por todo o continente, esses problemas fundamentais podem começar a ser resolvidos.
Artigo publicado em 24 de novembro de 2017, no site da Corrente Marxista Internacional, sob o título “Zimbabwe crisis has revolutionary repercussions in Uganda“.
Tradução Fabiano Leite.