Réquiem para Regina Duarte (★1947 ✞2020)

Nero, retratado com um dos ditadores mais cruéis da humanidade, teria dito ao morrer “que grande artista o mundo está perdendo”. Regina (desculpe a intimidade, secretária) era, ao que parece, uma atriz muito maior do que eu jamais pude supor. Talvez seja por um pouco de preconceito com os atores que cresceram e se fizeram neste ambiente tóxico da telenovela brasileira, do qual a Globo é a maior expoente, mas nunca pensei que Regina fosse tão boa.

Para evitar ser confundido com Chacrinha (“eu vim para confundir”) é melhor eu explicar: a Sra. Duarte, que aceita ser a secretária de Bolsonaro e candidamente defende tortura e ditadura, dizendo que a tortura sempre existiu, que morte é algo natural, que governos sempre assassinaram (autodelação não premiada?) como Hitler e Stalin, tem muito pouco a ver com as personagens que a Regina atriz interpretava.

Afinal, na imagem de muitos que nasceram no final da década de 1950 e início da década de 1960 do século passado (uau, sempre me esqueço que sou um homem do século passado) a imagem que vem à cabeça é da “namoradinha do Brasil”: que fez um novela melosa que só um adolescente ou pré-adolescente daquela época, em que a censura era muito maior que se pode hoje imaginar, de uma menina pura e ingênua que só mudaria com “Malu mulher” e ouvindo Elis Regina (Ontem de manhã quando acordei – Olhei a vida e me espantei – Eu tenho mais de vinte anos)1.

Sim, quem diria. A atriz que representou tão bem este despertar do Brasil, de jovens ingênuos que só viam o mundo cor-de-rosa que passava na Globo para homens e mulheres que combatiam contra a ditadura, que saiu de ser a “namoradinha” para ser a mulher engajada, trabalhadora e combatente em Malu Mulher, que mandava em homens e mulheres na ficção quase realística de Roque Santeiro, esta atriz deixa cair sua máscara teatral e se revela não uma mulher que “perde as estribeiras”, “que perdeu a cabeça”, mas direitista e sanguinária Sra. Duarte, em todo a sua podridão de rica e mimada, que elogia torturadores e ditadores sanguinários.

Eu, aqui, tento fechar minha janela de frente pro crime (Aldir Blanc), mas os cadáveres que a Sra. Duarte reclama de serem lembrados são bem reais e se não tem churrasquinho de gato, tem discurso para vereador, seja da Sra. Duarte, seja de seu patrão, frente ao qual ela se ajoelha e se humilha num espetáculo onde a farsa e o grotesco só não são maiores que o mau gosto e a dor de todos que viram tantos amigos partirem em foguetes.

A Regina atriz morreu, lamentamos todos. Lamentamos a perda de tamanha atriz que escondeu a sordidez de sua mente e coração e tantas personagens bonitas e luminosas nos apresentou, seus retratos que sempre permanecerão enquanto qual Dorian Gray invertido sua dona sai de caixões apodrecidos empesteando o ar, ainda que não possamos senti-lo pela TV, mas os miasmas parecem voltear em torno do seu rosto envelhecido.

Nós, boias frias da arte e do teatro, lamentamos os Flavios e os Aldires que se vão, sonhando com goiabada cascão com muito queijo, e ajudando os jovens de hoje a superar a podridão destes semi-cadáveres, zumbis com medo dos cemitérios, que povoam os ministérios e os salões atapetados de Brasília.

Nota:

1 Composição de Sueli Costa e Vitor Martins.