A organização de jovens Liberdade e Luta publicou no dia 16/09/2016 em sua página um artigo de Alan Woods, dirigente da Corrente Marxista Internacional, intitulado “Marxismo e anarquismo” (ver aqui). O grupo anarquista Bandeira Negra escreveu um texto contrário ao artigo do camarada Alan, que, por sua vez, redigiu uma resposta às críticas recebidas, em defesa do ponto de vista marxista sobre a questão. Segue a segunda de quatro partes desta resposta.
Leia também a Parte 1.
O papel da direção
Bandeira Negra escreve:
“O argumento repetitivo de que a classe trabalhadora precisa de líderes não se difere de qualquer discurso da DIREITA que afirma que a igualdade é impossível, porque uns devem mandar e outros obedecer”.
Nosso amigo anarquista fala da classe trabalhadora de uma maneira muito abstrata e ignora completamente a realidade concreta. A classe trabalhadora não é uma massa homogênea, mas é composta de diferentes camadas. Alguns trabalhadores são mais atrasados; outros são mais avançados e com consciência de classe. Alguns são religiosos e se submetem à influência da igreja, enquanto outros se afastaram dos preconceitos religiosos. Alguns organizam sindicatos, outros não.
A realidade da luta de classes – algo que é um claramente um livro fechado para o nosso crítico anarquista – demonstra a completa falsidade da maneira como ele coloca a questão da direção. Em cada fábrica sempre há um grupo de trabalhadores – uma minoria, em circunstâncias normais – que mantém a organização sindical e se levanta contra os patrões. Esses são os “líderes naturais” da classe trabalhadora.
Mesmo em uma greve de meia hora encontraremos direção. E esta direção não é improvisada ao sabor do momento, mas preparada durante todo um período de trabalho e luta. Esses trabalhadores avançados podem ser marxistas, anarquistas, reformistas ou pessoas sem opiniões políticas definidas (embora isto raramente ocorra, na prática). Mas, invariavelmente, serão pessoas que ganharam o direito de dirigir.
Vemos isso em todas as greves. A questão é se a greve é ou não é debatida democraticamente em uma assembleia. Alguns trabalhadores estão a favor da ação de greve e outros, contra. E frequentemente ocorre que uma só intervenção feita por um militante operário pode decidir o assunto. O que é isso senão direção? O próximo passo é que alguém tem que ir e colocar o caso dos trabalhadores para a gerência. Quando chega o momento de se decidir sobre quem vai à porta do gerente, quem os trabalhadores escolhem? Eles não lançam uma moeda para cima para decidir nem elegem os elementos mais atrasados para defender seus interesses. Eles buscarão os elementos mais determinados e de mais consciência de classe que sejam capazes de representá-los – e, sim, também para dirigi-los. É unilateral interpretar a direção como apenas impedindo ou pacificando a base. Bons dirigentes, que existem, também podem inspirar a base para a ação.
Tudo isso é realmente o ABC para qualquer trabalhador com a mínima experiência na luta de classes. Somente pessoas completamente ignorantes do movimento dos trabalhadores ou cegos pelos preconceitos anarquistas podem ter a menor dúvida sobre a importância da direção ao nível do chão de fábrica.
Como a classe trabalhadora extrai conclusões revolucionárias
A classe trabalhadora não chega automaticamente e em massa a conclusões revolucionárias. Se fosse assim, a tarefa de construção do partido seria redundante. A tarefa de transformar a sociedade seria uma tarefa simples se o movimento da classe trabalhadora ocorresse em linha reta. Mas não é o caso. Durante um longo período histórico, a classe trabalhadora chega à compreensão da necessidade de organização. Através do estabelecimento de organizações, tanto de sindicatos e, em um nível mais elevado, de caráter político, a classe trabalhadora começa a se expressar como uma classe, com uma identidade independente. Na linguagem de Marx, ela passa de uma classe em si para uma classe para si. Esse desenvolvimento ocorre durante um longo período histórico através de todos os tipos de lutas, envolvendo a participação não apenas da minoria de ativistas mais ou menos conscientes, mas das “massas não politizadas” que, em geral, são despertadas à participação ativa na vida política (ou mesmo sindical) somente na base de grandes acontecimentos.
Como vimos, a classe trabalhadora em geral aprende da experiência prática, especialmente da experiência da luta de classes. Muitos trabalhadores passaram pela experiência das greves: conheceram vitórias e derrotas e extraíram certas lições de sua experiência. Consequentemente, os militantes trabalhadores mais experientes possuem o conhecimento necessário para organizar e dirigir uma greve. Eles não necessitam dos conselhos dos revolucionários – sejam marxistas ou anarquistas – para desempenhar esta função.
Contudo, quando se trata de situações revolucionárias, a questão é colocada de forma diferente. Quantos trabalhadores passaram pela experiência de uma greve geral? Não muitos. Mas a greve geral não é o mesmo que uma greve comum. Ela desafia a norma do capital de maneira direta. Quem dirige a sociedade, os patrões ou os trabalhadores? Em outras palavras, ela coloca a questão do poder. Uma greve geral não pode, portanto, ser abordada da mesma forma que uma greve normal. Regra geral, ela ou termina na classe trabalhadora tomando o poder ou em uma derrota decisiva.
No passado, os anarco-sindicalistas pensavam que uma greve geral por si mesma seria suficiente para realizar uma revolução. Mas esta ideia é profundamente equivocada. Os capitalistas podem esperar o tempo necessário para derrotar uma greve geral, mas a capacidade dos trabalhadores de sobreviver sem o pagamento, sem comida para suas famílias, tem limites definidos. Se a greve dura por muito tempo sem resolução, o ânimo dos trabalhadores começará a declinar e a greve será derrotada. Mesmo a greve mais tempestuosa não pode resolver a questão do poder. Vimos isto claramente na França em maio de 1968, onde a maior greve geral da história terminou em derrota. E esse foi precisamente um problema da natureza da direção. Uma coisa é atacar o sistema e, ao fazer isto, paralisá-lo temporariamente; outra coisa é organizar a completa e detalhada tarefa de dissolver o velho governo, concordando com a sua substituição e, em seguida, organizando a defesa sistemática deste novo regime social. Sem uma organização política distinta, visível à classe trabalhadora e propondo medidas concretas, as greves gerais revolucionárias se pulverizam e o velho regime recupera o seu controle.
As causas da burocracia
Apesar ou mesmo por causa da rejeição generalizada do anarquismo à autoridade e à hierarquia, a teoria anarquista ironicamente não tem qualquer teoria coerente sobre direção, autoridade ou poder. É assim porque os anarquistas tratam tais fenômenos de maneira abstrata e uniforme, quando na verdade não há tal coisa como “poder” como tal. Os marxistas, enquanto materialistas históricos, reconhecem que o poder emerge da desigualdade material acumulada e das contradições sociais resultantes. É uma ferramenta criada por seu portador – a classe econômica dominante – e é determinada por seus fins, que, em última análise, são fins materiais. A autoridade que os escravos impõem ao seu proprietário quando lutam por sua liberdade não é só diferente, mas também diametralmente oposta à autoridade do proprietário de escravos que os oprime.
O poder estatal surgiu à medida em que o desenvolvimento econômico criou as divisões de classe e serve a essas divisões. Ele é inseparável dos antagonismos sociais e existirá enquanto esses antagonismos existirem. Em vez de explicar isto, os anarquistas se concentram na denúncia do poder da classe dominante como “ilegítimo” e uma mentira, como se toda a história fosse um gigantesco truque miraculosamente imposto às massas por um feiticeiro sinistro. Ao fazer isto, eles mistificam a própria coisa que desprezam. Enquanto proclamam orgulhosamente platitudes tais como “nem deuses, nem amos” ou “somos ingovernáveis”, continuam condenados a serem governados porque não entendem as bases de sua opressão.
Como se explica o fenômeno da burocracia nas organizações dos trabalhadores? Nosso crítico pede ajuda ao reino nebuloso da psicologia:
“Diversas pesquisas na área da psicologia e pedagogia demonstram, por outro lado, que a autoridade e a hierarquia, longe de favorecer, atrapalham. A Experiência de Stanford é um belo exemplo de como a concentração de poder em um indivíduo pode causar problemas”
O Experimento Stanford foi realizado na Universidade de Stanford em agosto de 1971. Ele dividiu um grupo de estudantes voluntários em “guardas de prisão” e “prisioneiros”, para ver como eles reagiriam. Alguns dos “guardas” começaram a abusar dos “prisioneiros”. Muitos criticaram a validade do experimento, na medida em que seu organizador, o professor Philip Zimbardo, participava ativamente ao incentivar os participantes a se comportarem de certa maneira, isto é, ele estava longe de ser objetivo em sua abordagem. Verificou-se também que os traços prévios de caráter dos envolvidos influenciavam mais em seu comportamento que as condições do experimento. Houve tentativas de replicar o experimento que produziram resultados diferentes.
Lançou nosso sábio crítico anarquista essa referência passageira ao Experimento de Stanford para se atribuir uma aura de pessoa conhecedora de tais assuntos? Infelizmente, fez uma péssima escolha, pois tal experimento não tem nada a ver com a direção das organizações dos trabalhadores. Os trabalhadores que se juntam às organizações de massa não são prisioneiros e os dirigentes não são guardas de prisão onipotentes.
Nosso crítico anarquista continua:
“A principal reclamação nesse tema é que anarquistas se opuseram ao aparelhamento do Sindicato por um partido pretensamente revolucionário. Oras, basta olharmos para o que ocorre quando Partidos aparelham o Sindicato para perceber o resultado de sempre: estagnação, corrupção, traição de classe e, muitas vezes, sectarismo e autoritarismo. A CUT aqui no Brasil é o maior exemplo disso – central está ligada ao PT, de quem até ontem a Esquerda Marxista fazia parte, lembremos” (ênfase minha)
A insinuação de nosso amigo anarquista é que todas as organizações terminam se tornando uma hierarquia burocrática. É verdade que as organizações como os sindicatos, que são formados sob o capitalismo e inevitavelmente sofrem das pressões do capitalismo, podem degenerar. Os dirigentes podem se corromper, perder contato com a base e vendê-la. Isto já aconteceu muitas vezes, inclusive no caso da CUT brasileira. No entanto, é completamente falso tratar as coisas dessa maneira geral, como se a história de nosso movimento fosse apenas uma história de burocracia e “traição de classe”. É falso apresentar a relação entre a classe trabalhadora e seus dirigentes em termos de hierarquia e obediência cega (“uns devem mandar e outros obedecer”). O movimento dos trabalhadores é geralmente democrático. A decisão de ir ou não ir à greve é decidida em assembleias democráticas. Os dirigentes grevistas são democraticamente eleitos. Se não agem de acordo com a vontade dos trabalhadores, podem ser destituídos e substituídos por outros. “Mandar e obedecer” não entra aqui.
Em vez de apenas denunciar essa degeneração, devemos nos esforçar para entendê-la. Por que degeneram as organizações dos trabalhadores? Por causa do mau caráter dos dirigentes dos operários? Por que eles têm “desejo de poder”, como nosso crítico anarquista parece acreditar com suas referências à psicologia individual? Será que a degeneração é o resultado inevitável da criação de um partido político e da luta pelo poder político, e que todos os partidos operários sempre traem? Se for este o caso, então a perspectiva para a classe trabalhadora seria realmente desagradável. Nosso amigo anarquista não proporciona nenhuma explicação séria para o fenômeno que tanto deplora. Para se encontrar as razões desta degeneração é necessário buscar não nos domínios enevoados da psicanálise ou nas estruturas formais dos partidos, mas no funcionamento real da sociedade de classes.
As organizações dos trabalhadores não existem no vácuo. Existem na estrutura do capitalismo e sofrem a pressão do capitalismo. Em certas condições, mesmo a melhor organização pode degenerar sob essas pressões, que exercem seu efeito mais poderoso nos estratos dirigentes. A formação de uma crosta burocrática é um reflexo dessa pressão. Não é um produto da direção em si, mas de uma direção corrompida pelos capitalistas. Durante um longo período de tempo a classe dominante desenvolveu mecanismos altamente eficientes e sofisticados para subornar e controlar os dirigentes operários.
Toda organização – as anarquistas, inclusive – sempre contém a possibilidade de degeneração. Enquanto formos obrigados a trabalhar dentro da sociedade capitalista, não podemos escapar das pressões do capitalismo. Naturalmente, não há nenhuma garantia absoluta contra a degeneração de qualquer organização. A vida em geral, e a luta de classes em particular, não nos oferece nenhuma garantia.
A classe trabalhadora tem meios para combater a perniciosa influência da burguesia dentro do movimento dos trabalhadores. É necessário participar ativamente na luta contra a burocracia para expurgar os carreiristas e traidores do movimento e para manter os sindicatos sob o controle da classe trabalhadora. Deixar esta luta de lado não ajuda a causa da revolução socialista, mas serve objetivamente aos interesses da burguesia e de seus agentes dentro do movimento dos trabalhadores, pois deixa as organizações de massa nas mãos de burocratas que, na ausência de pressão vinda de baixo, não terão problemas em capitular à pressão burguesa vinda de cima.
Portanto, em vez de nos abstermos devemos conduzir uma luta sistemática dentro do movimento dos trabalhadores contra a burocracia e exigir que nossos representantes sejam colocados sob o controle da base. Devemos exigir que todos os dirigentes sindicais, vereadores ou membros do Parlamento devam ser eleitos em intervalos regulares e sujeitos à revogação a qualquer momento. Nenhum representante dos trabalhadores deve receber um salário mais alto do que o de um trabalhador qualificado, e todas as despesas devem estar abertas à inspeção das fileiras.
Estes princípios básicos servirão para expurgar os burocratas e carreiristas das organizações dos trabalhadores e para assegurar que nossos representantes reflitam genuinamente os interesses e aspirações da classe, não os seus próprios interesses e ambições.
Os marxistas e as organizações de massa
Para não ser pego de calças curtas, nosso crítico anarquista adiciona insultos à injúria. Ele tem a audácia de afirmar que a traição dos dirigentes da CNT espanhola durante a Guerra Civil Espanhola estava,
“… mais próxima do marxismo, como vimos na participação trotskista da CMI dentro dos regimes burgueses do PT e do Syriza”
Com relação à nossa participação nas organizações de massa da classe trabalhadora, nosso amigo acha que é um vencedor. Como um garotinho passeando para mostrar a todos os seus sapatos novos, ele repete este fato como se fosse uma maldição condenatória dos marxistas em geral e da CMI em particular. Ao recorrer a esta tática, ele simplesmente desfila a sua ignorância da classe trabalhadora e de suas organizações e sua própria arrogância sectária.
Como uma ranhura repetitiva em um disco de vinil, reitera a mesma e monótono melodia:
“Alan Woods tenta colocar a culpa do descrédito das lideranças nas alas reformistas e burocráticas. Vale ressaltar que a Esquerda Marxista, hoje no Psol, até início de 2015 compunha o Partido dos Trabalhadores (PT). Esses trotskistas não viram problemas em pedir votos para Lula e Dilma mesmo vendo no que o partido havia se transformado.
“A setorial da CMI da Grécia também deu total apoio à eleição de Tsipras, do Syriza, que se recusou a atender o apelo popular e resistir a austeridade exigida pela Troika.
De fato, de ‘burocratas e carreiristas’, Alan Woods entende muito bem”
Esta é uma completa distorção da realidade. Primeiramente, nenhum membro da CMI se juntou a qualquer regime burguês, seja do PT, do Syriza ou de qualquer outro governo. O que é verdade é que em diferentes momentos os marxistas participaram em partidos de massa da classe trabalhadora em diferentes países, lutando lado a lado com as fileiras destas organizações para combater a burocracia e avançar o programa do socialismo revolucionário. Exatamente da mesma forma, os Amigos de Durruti lutaram lado a lado com os trabalhadores anarquistas da CNT contra a política traiçoeira dos dirigentes anarquistas. Os dirigentes da CNT, por outro lado, se juntaram a um governo burguês como ministros.
A participação dos marxistas nas organizações de massa do proletariado, longe de ser uma debilidade, representa, junto à sua clareza teórica e intransigência revolucionária, nossa principal força. Nossa participação nessas organizações, longe de representar participação no “regime”, baseia-se na luta implacável contra a burocracia para conquistar os trabalhadores e a juventude. Somente se pode libertar as massas da influência do reformismo estando com elas, passo a passo, na luta viva destas organizações, assinalando a cada passo que os reformistas não podem resolver os seus problemas. A recusa dos anarquistas em sujar as mãos com as organizações de massa dos trabalhadores que pretendem representar é uma mera confissão de impotência: abstencionismo estéril disfarçado sob uma fina camada de demagogia pseudorrevolucionária.
As massas devem testar os partidos e dirigentes na prática, porque não há outro meio. A massa da classe trabalhadora aprende dessa experiência prática. Não aprende dos livros, não porque careça de inteligência, como imaginam os esnobes de classe média, mas porque carece de tempo; o acesso à cultura e ao hábito da leitura não é algo automático, mas adquirido. Este processo de aproximações sucessivas é, ao mesmo tempo, dispendioso e lento, mas é o único possível. Em cada revolução – não somente a da Rússia em 1917, como também a da França no século XVIII e a da Inglaterra no século XVII – vemos processo semelhante, no qual, através da experiência, as massas revolucionárias, através de um processo de aproximações sucessivas, encontram o seu caminho até a ala mais consistentemente revolucionária. A história de cada revolução é, portanto, caracterizada pela ascensão e queda de partidos e dirigentes políticos, um processo no qual as tendências mais extremas sempre substituem as mais moderadas até que o movimento percorra o seu curso. Mas só podem testar os partidos e tendências políticas que existem realmente sob uma forma considerável; portanto, se os revolucionários estão para ganhar a direção da classe trabalhadora no calor dos acontecimentos revolucionários, não há outro meio além da construção de tal organização como parte desta luta viva, que não é nada se não for política.
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