Imagem: Lauro Alves, Secom

Rio Grande do Sul debaixo d’água: os governos sabem o que estão fazendo?

O povo do Rio Grande do Sul se desespera e promove um esforço coletivo de auto-organização popular e solidário para sobreviver aos efeitos das chuvas frente a falência das instituições. Enquanto isso, um pesadelo paira sobre a nação: quando e onde ocorrerá o próximo evento climático de intensidade?

O aumento das chuvas no RS nos últimos anos escancara a urgência de adaptação a eventos extremos, cada vez mais frequentes. Mas os governos trabalham para nossa segurança? As análises ambientais e as previsões científicas são feitas em sua maioria pelas universidades. E muitos alertas de chuvas intensas foram lançados. O Estado deveria dar mais ouvidos aos cientistas e investir mais na capacidade de previsão. Até porque é mais barato se antecipar do que lidar com as consequências. Mas os governos estão estrangulando as universidades. A prova disso é que mesmo depois de meses em greve, o governo mantém cortes de verbas e se nega atender as reivindicações dos trabalhadores em educação.

As enchentes decorrentes das fortes chuvas já causaram 151 mortes em 44 cidades, 104 desaparecidos e 806 feridos. São 77.199 pessoas que tiveram suas casas destruídas e estão em abrigos improvisados e 540.192 pessoas desalojadas, que tiveram que abandonar suas habitações e ir para casas de parentes ou amigos. Houve ainda 76.620 pessoas resgatadas. A tragédia deixou 243 mil residências com o fornecimento de energia elétrica interrompido e 129.977 sem abastecimento de água. Os números1, impressionantes, são de quinta-feira, dia 16, e seguem aumentando. 

Esses governos fizeram uma opção: servir aos interesses do grande capital. E ao defenderem interesses privados não conseguem apresentar soluções duradouras para os problemas públicos e governam impondo políticas contrárias aos trabalhadores.

Exemplo disso são as “quatro cidades provisórias” a serem construídas nos municípios mais atingidos. Há grande risco de tudo isso se transformar num drama ainda maior para a população. Seria mais simples acomodar as famílias desabrigadas em hotéis, pensões e residências vazias. Mas são os interesses de classe que impedem esses governos fazer o que é mais simples. Até porque o capital precisa lucrar com a crise. Então, estão optando contratar empresas para montar esses abrigos juntamente com empresas de material de cozinha, lavanderias, banheiro, espaços para pets etc.

Essa situação é consequência de uma sequência de desmonte da legislação ambiental para atender a sana dos capitalistas do “agronegócio”, das mudanças climáticas causadas pelo funcionamento irracional do sistema capitalista e pela inoperância do Poder Executivo, que não utiliza os recursos para os serviços públicos. 

Em 2019, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), e a Assembleia Legislativa aprovaram um novo Código Ambiental que flexibilizou 480 pontos da lei estadual de proteção ambiental2

No mesmo período o Ministro bolsonarista Ricardo Salles atendia a bancada ruralista no Congresso Nacional “passando a boiada” na proteção ambiental do país. 

Entre as decisões no RS, estava o autolicenciamento ambiental, no qual o empresário obtém licenças ambientais na internet sem nenhuma verificação técnica; e a flexibilização da proteção ao Pampa, planícies que ocupam 63% do território gaúcho e regulam os ciclos de água. A contrarreforma ambiental ainda retirou a proibição do corte de árvores fundamentais para o bioma, como figueiras, corticeiras, algarrobos e inhanduvás, liberando o manejo de florestas nativas.

No início deste ano, o governador do RS emitiu um decreto liberando a construção de barragens e reservatórios de irrigação de lavoura em áreas de proteção ambiental. Centenas dessas construções já existiam há muito tempo e foram apenas legalizadas. Essas regiões, possuem vegetações em encostas e beira de rios essenciais para minimizar tragédias ambientais. A vegetação nas margens dos rios, mata ciliar, mantém o solo permeável como um sistema de esponja, sua retirada causa a compactação da terra, aumentando o escoamento e a velocidade da água.

A situação pode piorar: segundo levantamento de ambientalistas do Observatório do Clima, existem 25 Projetos de Lei (PL) e três propostas de Emendas à Constituição (EC) na Câmara dos Deputados e no Senado que ampliam a destruição ambiental.   

A burguesia rural e seus representantes no parlamento burguês veem a natureza apenas como uma fonte de lucro, sem pudor de destruí-la e sem medir as consequências.

Há pelo menos 10 anos o Governo Federal e o governo do estado tinham conhecimento de que as mudanças climáticas causariam fenômenos que aumentariam o nível de chuvas no extremo sul do país em mais de 15% e que eventos de chuvas intensas e concentradas seriam mais corriqueiros com potencial enorme de enchentes e inundações. 

Um estudo encomendado em 20143 pela Presidência da República ainda no governo Dilma Rousseff, chamado de Projeto Brasil 2040, já apontava o cenário que acontece no RS. 

Elaborado em colaboração com vários órgãos de pesquisa do país, com técnicos do Instituto Militar do Exército (IME), Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ao custo de R$ 3,5 milhões, o Projeto Brasil 2040 utilizou 42 relatórios de outros institutos e órgãos especializados e apontou cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima. Em 2016, foi  instituído o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, porém, o projeto foi engavetado ainda no governo Dilma, e ignorado nos governos Temer, Bolsonaro e Lula.

O relatório demonstrava o surgimento de ondas de calor em algumas regiões do país, piora das secas na região Norte e Nordeste e o aumento das chuvas no Sul. Prevendo colapso de hidrelétricas por falta de chuva na região Norte, falta d’água no Sudeste, impactos em infraestrutura, agricultura e energia e mortes por inundações e enchentes. Propunha a necessidade de adaptações para minimizar os impactos das mudanças climáticas. Evidentemente, essas adaptações custam muito dinheiro e os governos estavam empenhados em ajustes fiscais para garantir dinheiro para compromissos com a dívida pública. 

Em novembro de 2021, já no governo Bolsonaro, o Ministério do Meio Ambiente elaborou um relatório que admitia a falta de recursos para a implementação do plano de adaptação aos efeitos das mudanças climáticas4, mas nada foi implementado.

Para evitar novas catástrofes, é necessária a recuperação de matas ciliares, arborização e reurbanização com solos permeáveis, a construção de infraestrutura com galerias pluviais subterrâneas, diques de contenção, sistemas de bombeamento e drenagem. É urgente realocar residências que se se encontram em regiões de risco. 

Mas como executar essas ações, que necessitam de muito dinheiro, se os recursos estão limitados pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) nas prefeituras e estados; e pelo teto de gastos, agora arcabouço fiscal, na esfera federal. No capitalismo, a prioridade não é salvar vida, é garantir os compromissos com o capital. O Estado burguês é uma esteira de transferência de dinheiro público para os rentistas, por meio do sistema de pagamento da dívida pública, principalmente.

Somente no último ano foram quatro episódios de fortes chuvas na região. “Em junho, um ciclone extratropical deixou 16 mil pessoas desabrigadas e causou 16 mortes; em setembro, o desastre natural (com chuvas intensas) deixou 25 mil desabrigados e causou 54 mortes; e em novembro (temporais) deixaram cinco mortos e 25 mil desabrigados”5.

Todos sabem o caminho da água e as áreas de inundações, mesmo assim, o poder público não retirou as pessoas das zonas de risco e não tomou medidas eficazes de prevenção, deixou tudo se repetir. Centenas de pessoas tiveram suas casas destruídas há alguns meses, voltaram para o local de risco, reconstruíram e agora viram a água levar tudo de novo. 

É criminosa a omissão dos governos municipal, estadual e federal, juntamente com o Judiciário e o Legislativo. 

Se o Muro da Mauá e o sistema de enchente e inundação de Porto Alegre tivessem funcionado, a capital gaúcha não teria sido alagada! Os rios Guaíba, Jacuí e Gravataí não ultrapassaram a cota de 5,4 metros, mas o muro e o sistema de bombas foram projetados para suportar até 6 metros acima da cota de inundação. 

Com o processo de privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN) e do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), as casas de bombas, canais e comportas deixaram de receber as manutenções necessárias. Em meio às chuvas, a água infiltrava pelo muro, comportas se romperam e apenas algumas bombas funcionavam. Esse é um dos resultados da política de desmonte dos serviços públicos.  

A pouca preocupação com a adaptação às mudanças climáticas não é um fenômeno isolado. Tampouco um problema de governos de direita, ou de esquerda. É um problema sistêmico e generalizado! 

Após a tragédia e no contexto de queda de popularidade, o governo Lula anunciou uma série de pacotes bilionários para tentar amenizar a situação. Mas a catástrofe está feita e nada recuperará as vidas perdidas. 

São mais de R$ 50 bilhões confirmados pelo Governo Federal, mas uma boa parte do montante não possui impacto direto no orçamento, são antecipações do programa bolsa família, FGTS e restituição de imposto de renda. Ou linha de crédito e suspensão temporária de financiamentos, que serão cobrados juros depois, subsidiados com dinheiro público, mas absorvido pelas financeiras privadas. 

Porém, a catástrofe não atinge toda a sociedade por igual, são os trabalhadores os mais cometidos, porque eles residem nas piores habitações e nas regiões de risco. Um levantamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul6 identificou que as áreas mais pobres foram as mais atingidas. 

Portanto, não basta apenas destinar rios de dinheiro. É preciso garantir que a ajuda chegue aos trabalhadores, os mais afetados. 

Em 2005, duas catástrofes naturais atingiram os Estados Unidos: os furacões Katrina e Rita, que devastaram Nova Orleans e outras cidades. Para reconstrução das cidades, o governo americano destinou uma montanha de dinheiro, mais de US$ 19 bilhões do Departamento Federal de Desenvolvimento Urbano e US$ 23 bilhões em subsídios para famílias e empresas. Contudo, o “problema foi a falta de planejamento desses programas. O dinheiro não foi alocado de forma eficiente, muitas vezes indo para áreas pouco afetadas. A maior parte dos subsídios comerciais foi para as grandes empresas, as que precisavam menos de ajuda”7).

Uma fila de construtoras e financeiras já sobrevoam Porto Alegre, como urubus carnicentos de olho nos bilhões destinados à reconstrução. Com os serviços públicos de Porto Alegre privatizados ou em processo de liquidação (companhias de energia, de gás, de água e esgoto, de transportes e de obras públicas), não é difícil prever que parte do dinheiro desviará de seu objetivo inicial, pois a corrupção é a norma dos processos de terceirização. 

A estimativa é que a reconstrução custará de R$ 90 a R$ 200 bilhões. Valor maior do que seria necessário para as obras de infraestrutura e prevenção, que evitaria o que aconteceu. O sistema capitalista é irracional e não consegue agir sob um plano geral, justamente porque sua marca é a competição entre os monopólios e trustes que dominam a sociedade e se guiam exclusivamente pela busca da pilhagem. 

Os eventos extremos serão cada vez mais frequentes e novas tragédias estão desenhadas a acontecer, seja no próprio RS ou nos morros e encostas das grandes cidades brasileiras. Os governos no capitalismo, de direita ou de esquerda, são incapazes de realizarem qualquer ação efetiva contra essa força. 

Isso porque o caminho trilhado é o contrário. O capitalismo vive uma crise internacional e os serviços públicos estão sendo dizimados, com os Estados endividados e incapazes de agirem. 

A crise climática é um efeito global, e não pode ser combatida isoladamente em um país. É necessária uma ação internacional combinada e planificada, o que não é possível sob o capitalismo. 

É nesse sentido que comunistas de várias partes do mundo fazem um chamado para fundação da Internacional Comunista Revolucionária, um passo na direção da reconstrução de uma Internacional Comunista de massas. 

As alterações climáticas causaram as chuvas, mas a enchente e as mortes foram por conta do capitalismo. Mesmo porque essas alterações são aceleradas exatamente pela busca insaciável por lucro: desmatamento e queimadas desenfreadas, destruição de ecossistemas e emissão excessiva de gases de efeito estufa. 

É necessária uma revolução em escala internacional para enfim a humanidade construir uma relação de harmonia com a natureza, ou o futuro se resumirá em desastres e destruição.

Referências:

1 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/aumenta-para-151-o-numero-de-mortos-na-tragedia-no-rio-grande-do-sul.shtml

2 https://veja.abril.com.br/agenda-verde/eduardo-leite-alterou-mais-de-500-pontos-do-codigo-ambiental-do-rs-em-2019

3 https://www.intercept.com.br/2024/05/06/enchentes-no-rs-leia-o-relatorio-de-2015-que-projetou-o-desastre-e-os-governos-escolheram-engavetar/

4 https://www.marxismo.org.br/o-que-fazer-diante-das-chuvas-no-rio-grande-do-sul/

5 https://www.bbc.com/portuguese/articles/c90zxeqj342o

6 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/mapa-mostra-que-areas-mais-pobres-foram-as-mais-atingidas-pelas-enchentes-em-rs.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=wppcfolha

7 https://www1.folha.uol.com.br/colunas/rodrigo-zeidan/2024/05/tragedias-no-exterior-podem-ajudar-na-reconstrucao-do-rs.shtml#:~:text=De%20acordo%20com%20Kevin%20Gotham,apoiar%20a%20reconstru%C3%A7%C3%A3o%20de%20infraestrutura