A Suprema Corte dos Estados Unidos declarou, no dia 19 de junho, contra a legalidade das práticas de admissão de ações afirmativas em faculdades e universidades. Decidindo sobre dois casos distintos, o tribunal declarou ilegais as práticas de admissão em Harvard e na Universidade da Carolina do Norte.
Este movimento, uma grande mudança sem precedentes em 50 anos, levanta inúmeras questões relativas à natureza do racismo no capitalismo norte-americano, o sistema educacional e a guerra cultural. Os marxistas devem analisar essas questões e apontar o caminho a seguir para a luta contra o racismo e a desigualdade.
Ações afirmativas
A concepção moderna de ações afirmativas remonta a meio século, a uma decisão da Suprema Corte no caso Regents da University of California vs. Bakke. Allan Bakke, um candidato branco à faculdade de medicina da UC Davis, levou o caso ao tribunal depois de ser rejeitado pela escola, que na época havia reservado 16 vagas para minorias raciais.
A Suprema Corte decidiu contra o uso de cotas, mas mesmo assim permitiu a consideração da raça no processo de admissão. A motivação não se referia a reparações nem a compensações por acesso desigual à educação, mas sim à ideia de que a criação de um “ambiente de sala de aula diversificado” poderia melhorar a qualidade da experiência educacional.
Desde então, as práticas de ações afirmativas permaneceram um tema polarizador, com os liberais geralmente defendendo sua necessidade para diversificar os campi universitários e os locais de trabalho, e os conservadores argumentando que isso é contra o espírito da meritocracia. Nesse sentido, a decisão faz parte de uma guerra cultural mais ampla, na qual as instituições da classe dominante destacam as questões mais desarmoniosas da sociedade norte-americana como forma de dividir e confundir a classe trabalhadora em um momento de piora nos padrões de vida e de crise capitalista.
Capitalismo, racismo e escassez
Ao analisar esta questão, os marxistas devem afirmar, antes de mais nada, que a sociedade capitalista norte-americana realmente tem o racismo embutido em seus fundamentos. Nos EUA, o capitalismo moderno foi construído com base na escravização do povo africano, na anexação de grandes partes do México e em outros crimes históricos contra os explorados e oprimidos. Naturalmente, os efeitos dessa história continuam até hoje, com trabalhadores negros, trabalhadores latinos e outras minorias experimentando não apenas exploração como trabalhadores, mas também discriminação racial.
Por esta razão, a noção de “ações afirmativas” tornou-se difundida, particularmente entre os liberais, nas décadas a partir do movimento pelos direitos civis. Esta é a ideia ampla de que, devido a esse legado de discriminação racial, indivíduos de tais origens devem ter uma vantagem explícita quando se trata de acesso a empregos e educação, e/ou a necessidade de priorizar a diversidade nos campi e locais de trabalho, por exemplo, por meio da chamada estrutura DEI (diversidade, equidade e inclusão).
A decisão do tribunal imediatamente produziu uma enxurrada de artigos de opinião de liberais e conservadores, analisando alguns dos vários ângulos do debate sobre ações afirmativas, embora sempre dentro do estreito quadro da lógica e das limitações do capitalismo. Em outras palavras, eles dão por assegurada a existência de coisas como faculdades de elite, educação cara e espaços limitados para acesso a essas coisas. Como marxistas, devemos destacar o seguinte: sob o capitalismo, essas políticas estão focadas em dividir artificialmente empregos, recursos e oportunidades educacionais escassos entre a classe trabalhadora.
Em essência, a classe capitalista fica com nove décimos do pastel metafórico, depois distribui as migalhas para as massas trabalhadoras enquanto cria todo tipo de conflito sobre a melhor forma de dividir essas migalhas. Esta é a base econômica subjacente da continuação de todas as formas de discriminação e preconceito, que são ferramentas vitais para a classe capitalista manter seu domínio.
A quem esta decisão afeta?
No caso específico da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre admissões em faculdades, estamos olhando para uma fatia muito estreita do ensino superior – ou seja, para as práticas de admissão nas faculdades e universidades mais elitistas, já que a maioria das faculdades e universidades não exige ou usa critérios de “políticas raciais conscientes”. Como explicou um artigo do New York Times:
A decisão da Suprema Corte de derrubar as ações afirmativas provavelmente terá consequências poderosas para admissões em faculdades de elite, potencialmente limitando o grupo de estudantes negros e hispânicos nas universidades mais seletivas e afetando a diversidade de futuros líderes nos negócios, governo e além.
Mas o efeito das admissões com consciência racial sempre foi limitado a um número relativamente pequeno de alunos. Para a grande maioria, essas escolas não são uma opção – acadêmica ou financeiramente.
Muitos vão direto para o mercado de trabalho após o ensino médio ou frequentam universidades menos seletivas que não levam em consideração raça e etnia nas admissões. Pelo menos um terço de todos os alunos de graduação – incluindo metade dos hispânicos – frequenta faculdades comunitárias, que normalmente permitem matrículas abertas.
O artigo continua:
Acredita-se que menos de 200 universidades seletivas praticam admissões com consciência racial, conferindo diplomas a cerca de 10 a 15 mil alunos a cada ano que, de outra forma, não seriam aceitos, de acordo com uma estimativa aproximada de Sean Reardon, sociólogo da Universidade de Stanford. Isso representa cerca de 2% de todos os estudantes negros, hispânicos ou nativos americanos em faculdades de quatro anos.
Os liberais, é claro, argumentam que a questão da “representação” ainda importa. Alguns, como veremos abaixo, até mesmo reconhecem abertamente que esses campi de elite servem essencialmente como canal de entrada a indivíduos que mais tarde controlarão todas as principais instituições da sociedade americana – e é desejável, na opinião deles, que as minorias sejam incluídas de modo a ter um “assento à mesa”. Este é um exemplo clássico dos argumentos venenosos da política de identidade: mudar e “diversificar” alguns assentos no topo da sociedade, deixando o edifício capitalista racista e explorador inalterado como um todo.
No Journal Podcast, Doug Belkin, do Wall Street Journal, explicou sem rodeios o que realmente está em jogo neste caso específico:
As universidades, especialmente as seletivas, são uma espécie de chapéu seletor da cultura americana. Oito presidentes dos EUA frequentaram a Universidade de Harvard. Isso não é um acidente. As faculdades decidem quem são os melhores e os mais brilhantes. Elas são a portaria da meritocracia americana. Portanto, se você tiver Harvard ou Yale estampado em seu currículo, isso abrirá portas para o resto de sua vida. E isso significa abrir acesso à estrutura do poder do país, então há um grande foco no processo de admissão nas universidades.
Na realidade, enquanto o capitalismo permanecer, a “estrutura de poder do país” permanecerá fundamentalmente inalterada. De nossa parte, não defendemos ajustes insignificantes e simbólicos, mas a abolição total de tais “portarias da meritocracia americana”.
Outro ponto importante a ser observado é que as ações afirmativas não são um conceito particularmente popular fora dos conselhos editoriais liberais e da academia. No mês passado, uma pesquisa da Pew Research descobriu que mais americanos desaprovam do que aprovam faculdades que consideram raça ou etnia nas práticas de admissão. No geral, metade dos americanos desaprova, 33% aprovam e 16% não têm certeza. Entre negros e hispano-americanos, mais pessoas aprovam do que na população em geral, mas ainda não atinge nem 50% de aprovação total em nenhum desses grupos demográficos.
Falando ao Washington Post em outubro, uma enfermeira branca do Missouri expressou seus sentimentos um tanto conflitantes sobre o assunto.
“É importante ter uma abordagem neutra em termos de raça para entrar na faculdade … Não ajuda ao se dar às pessoas algo que elas não conquistaram com seu próprio trabalho árduo.” Mas Meeks disse que valoriza a diversidade racial e teme que os brancos muitas vezes recebam privilégios. Ela quer oportunidades de faculdade abertas a todos. “Quero que todas as crianças, não importa onde cresçam ou qual seja a cor de sua pele, quero que tenham a capacidade de entrar na faculdade se se esforçarem.”
Isso indica um instinto saudável de que deve haver uma alternativa à maneira de tudo ou nada com que essa questão é enquadrada na mídia, mostrando o potencial de um programa que defenda a educação pública e gratuita para todos de forma a reformular todo o debate.
Apesar da relativa falta de entusiasmo ativo pelas ações afirmativas entre sua base, os democratas estão se preparando para usá-la como parte de seu arsenal de argumentos cínicos em futuras eleições. Biden disse que discorda da decisão do tribunal e se posicionou ante a mídia sobre como este “não é um tribunal normal”. À medida que 2024 se aproxima, os democratas vão falar repetidamente sobre como o tribunal já é “tão conservador” que “não podemos nos dar ao luxo” de deixá-lo ir mais para a direita etc. Mas, após décadas de campanhas barulhentas e de várias promessas vazias, mais e mais trabalhadores estão percebendo que ambos os principais partidos representam seu inimigo de classe e que todos esses juízes são reacionários.
Também se deve mencionar que os socialistas liberais têm sido particularmente lamentáveis nessa questão. A revista Jacobin entrou em cena com alguns comentários modestos sobre o assunto, incluindo um artigo sobre como a decisão ainda permite “admissões com consciência racial” que poderiam melhor permitir “as razões fundamentais de esquerda para as ações afirmativas” e outro artigo que pede a Biden para barrar a Suprema Corte como solução.
Outros apontaram para a existência contínua das chamadas admissões herdadas, bem como a preferência por doadores, o que é um ponto bastante justo, mas apenas arranha a superfície do problema real. Em outras palavras, os reformistas estão invariavelmente expressando apenas os argumentos liberais de esquerda mais brandos sobre este assunto.
Pela democracia operária e pela superabundância socialista!
Nós, por outro lado, vemos o potencial para um mundo com empregos de qualidade, educação, moradia, saúde e muito mais para todos. Os recursos e a tecnologia para alcançar isso existem – mas será necessária uma revolução socialista para torná-la realidade. Um programa socialista revolucionário de empregos e educação para todos pode acabar com as divisões da guerra cultural que são incitadas por ambos os partidos burgueses. Além disso, tal programa é a única forma viável de obter reparações pela escravidão.
Um governo dos trabalhadores despejaria recursos na construção de um sistema educacional de última geração, gratuito para todos, em todos os níveis. A qualidade da educação em todas as universidades públicas seria elevada ao nível das atuais escolas de “elite” e além. Juntamente com um programa de empregos universais, moradia acessível e assistência médica gratuita e de alta qualidade, isso estabelecerá as bases para as gerações futuras livrarem a sociedade humana do racismo e da opressão e permitir o desenvolvimento cultural e intelectual irrestrito para todos.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.