Ted Grant – O Revolucionário Permanente (Capítulo 1: Os Primeiros Anos)

Capítulo 1: Os primeiros anos

Este é o primeiro capítulo da biografia de Ted Grant, escrita por seu amigo e colaborador por mais de cinquenta anos, Alan Woods.

Capítulo 1: Os primeiros anos

Este é o primeiro capítulo da biografia de Ted Grant, escrita por seu amigo e colaborador por mais de cinquenta anos, Alan Woods. Descreve a infância de Ted Grant e os primeiros anos de sua vida na África do Sul, como entrou em contato com os Trotskistas e os antecedentes de sua migração à Grã-Bretanha. O livro está disponível para venda em Wellred Books (no Reino Unido e nos EUA), bem como livro digital em Amazon e outros mercados. Vamos publicá-lo neste sítio durante as próximas semanas.

A infância revela o homem, como a manhã revela o dia (John Milton)

Antecedentes familiares

Embora tenha vivido a maior parte de sua vida na Grã-Bretanha, Ted Grant era Sul-Africano de nascimento, e nunca perdeu completamente seu sotaque nativo. Não falava muito sobre o seu passado e de sua família, mas às vezes podia-se apreender fragmentos de informação sobre seus anos de formação. Embora possamos acessar numerosos e relevantes registros, é lamentável que nenhum historiador familiar tenha focalizado especificamente os irmãos e os pais de Ted, apesar de haver certo número de descendentes de seus tios, tias e primos.

Nenhum destes descendentes parece ter correlacionado o nome Isaac Blank ao nome Ted Grant, que ele adotou mais tarde. Suas árvores genealógicas simplesmente afirmam que Isaac nasceu em Johanesburgo e que depois desapareceu dos registros. Provavelmente devido à ignorância, eles equivocadamente cancelaram Isaac Blank, como alguém de pouca importância. Como estavam enganados!

Até agora, sempre se pensou que Ted Grant não tinha nenhuma família de que se pudesse falar, mas as pesquisas de Lauren Naama Goldsberg sobre sua própria ascendência inclui os Blanks de Johanesburgo e fornece uma lista impressionante de nomes da família apoiada em dados [1].

Lamentavelmente, as fontes de Lauren resumem-se a poucos anos após o seu nascimento, por esta razão foi difícil estruturar todas as informações que ela acumulou de forma a mostrar os parentes em alguma linha de antiguidade. O pai de Ted, Max, possivelmente o mais velho de seus próprios irmãos, está no topo da lista.

Max Blank veio originalmente da Lituânia. Os registros revelam que ele nasceu em Tauragé, uma cidade industrial e sede do distrito de Tauragé (não confundir com a cidade ucraniana de Taganrog, onde nasceu Checov). Também é conhecida por seu nome alemão Tauroggen. Está situada às margens do Rio Jura, próxima à fronteira da região de Kaliningrado, não muito longe da costa do Mar Báltico.

Quando Max Blank nasceu, a Lituânia fazia parte da Rússia czarista, que Lênin descreveu como a penitenciária das nações. E nenhum outro grupo nacional foi tão oprimido como os Judeus. A Lituânia fazia parte do que era conhecido como a Zona de Residência – aquela parte do império Russo em que aos Judeus era permitido residir permanentemente, para além da qual eram geralmente impedidos, com exceção de um número limitado de categorias. Portanto, a Lituânia foi historicamente o lar de uma comunidade judaica grande e influente.

A comunidade judaica lituana foi quase inteiramente exterminada pelo Holocausto nazista. A árvore genealógica de fato mostra que um dos tios de Ted Grant morreu no Holocausto nas mãos nos nazistas, junto com sua esposa Hirsch Herman Srago e seus cinco filhos, Israel, Sonya, Moshe Lev, Rasha Raya e Yachel Samuel (todos primos em primeiro grau de Ted). Outros parentes mais distantes, como Abraham Reubon Goldin, um primo em segundo grau de Ted, também morreu no Holocausto. Mas, no período em análise, esses horrores eram a música de um pesadelo futuro.

Era natural que os elementos mais vigorosos e progressistas na comunidade Judaica se juntassem à luta contra a opressão czarista. No final do século XIX, havia um forte movimento dos trabalhadores Judeus na Lituânia, organizado pelo Bund, a União [Bund] Geral Judaica dos Trabalhadores na Lituânia, Polônia e Rússia, que foi fundado em Vilna, a capital, em sete de outubro de 1897. O objetivo do Bund era o de unir os trabalhadores Judeus no Império Russo em um partido socialista unificado.

Desnecessário dizer que nem todos estavam tão convencidos das perspectivas de revolução socialista na Rússia czarista. Outras pessoas, não menos enérgicas mas com menores inclinações políticas, que sentiam a necessidade de escapar da constante opressão e discriminação, encontraram outra saída: a da migração. O final do século XIX e os primeiros anos do século XX viram uma vaga enorme de emigração Judaica a partir do Império Russo.

Entre aqueles que fugiam da perseguição em busca de uma vida melhor estava Max Blank. Sua data de nascimento é desconhecida, mas deve ter sido em torno de 1869. Sabemos que seu pai se chamava Israel Blank e sua mãe Rosalia Shereshevsky. Ele deixou a Lituânia em algum momento no final do século XIX e o encontramos em Paris em 1900-01, mas pode ter chegado antes.

A esposa de Max, Adele Margolis, nasceu na França no Natal de 1885. Imagino que, como sua filha, Rachael (Rae), ela sempre mantivesse uma aparência elegante. A família viveu em Le Marais, que se encontra no centro de Paris, a oeste da Praça da Bastilha; que era e ainda é o centro da comunidade judaica na capital francesa. A família estava envolvida no comércio de peles. Max e Adele se conheceram em Paris através da avó de Ted e se casaram em 1901. Ela era muito mais jovem que seu marido. Embora falasse inglês fluentemente, ela reteve seu forte sotaque francês durante toda sua vida.

Por ocasião de seu casamento, Adele tinha somente 16 anos de idade, e Max, 32. Pode-se pensar que ele deve ter tido um charme considerável e que arrastou esta jovem mocinha sob seus pés. Não se sabe o que seus pais pensavam deste homem de uma terra distante, com incertas perspectivas de carreira e com forte sotaque russo. Há uma foto de Adele junto a Max, tirada em torno de 1901, em Paris, que nos foi dada por Rae. É uma foto de casamento e eles têm a aparência de um próspero casal Judeu de classe média. Ele está muito bem vestido, de terno e com uma flor na lapela.

Por que eles decidiram deixar Paris? Talvez Max já estivesse à procura de saídas mais promissoras para um homem de iniciativa. Mas podem existir outras razões, também. Tendo deixado a Lituânia para escapar da sufocante atmosfera antissemita que existia ali, Max primeiro foi para Paris, onde viveu no quarteirão judeu. Foi na época do caso Dreyfus. O capitão Alfred Dreyfus, um jovem oficial judeu do exército francês tinha sido sentenciado em 1894 à prisão perpétua depois de ser falsamente acusado de passar informações militares secretas francesas à Embaixada Alemã em Paris. Apesar das evidências que, mais tarde, comprovaram sua inocência, houve um encobrimento da parte dos oficiais franceses de alta patente. A célebre carta aberta de Émile Zola que apareceu em um jornal de Paris em janeiro de 1898 sob o título de “J’acuse”, causou clamor público e uma campanha de massa em favor de Dreyfus. Foi isto que, afinal, levou a que Dreyfus fosse declarado inocente em 1906.

O caso Dreyfus provocou uma séria crise que abalou o establishment francês em seus alicerces, mas revelou um difundido antissemitismo na França e isto deve ter sido uma das razões porque Max ficou muito decidido a ir para a África do Sul, junto com sua esposa, sogra e a recentemente nascida Rose (nascida em janeiro de 1902). Seu segundo filho, Israel, nasceu em solo sul-africano em 1903. A escolha da África do Sul se deveu provavelmente a alguma conexão com pessoas que eles conheciam e que tinham emigrado para lá e Max a via como uma terra da promissão. Deve ter sido ele um homem muito dinâmico e empreendedor – um pouco empreendedor demais, como as coisas confirmaram.

Tem havido judeus na África do Sul desde o século XVI, quando os primeiros colonizadores holandeses começaram a construir Cape Town [a Cidade do Cabo]. No final do século XIX, seu número tinha aumentado. Na Guerra dos Bôeres, quando os Africâneres [sul-africanos descendentes dos holandeses] lutaram contra os britânicos, havia combatentes judeus em ambos os lados, embora pareça que a maioria lutava do lado dos britânicos.

De fato, os lituanos dominam a comunidade judaica na África do Sul a um ponto nunca visto em outro país, mesmo na atual Lituânia. A árvore genealógica de Ted revela que outro parente mais distante também terminou por emigrar à África do Sul. Entre os sul-africanos de ascendência judaico-lituana estavam figuras como o falecido comunista Joe Slovo e a veterana ativista antiapartheid Helen Suzman (também de Germiston). A presença de Joe Slovo na lista não é nenhum acidente. Esta comunidade judaico-lituana no Rand tinha ligações com os movimentos revolucionários russos que remontam à década de 1880, e o Partido Comunista da África do Sul tinha uma forte base ali. Este fato desempenhou papel decisivo no desenvolvimento político inicial de Ted.

África do Sul

O pai de Ted não parece ter tido nenhuma filiação abertamente política. Como muitos judeus educados daquele tempo, ele provavelmente tinha pontos de vista vagamente liberais. Mas ele tinha vindo à África do Sul para assegurar o futuro de sua família, e não para derrubar a ordem existente. Dava continuidade ao seu trabalho e se deu muito bem. Ele se engajou nos negócios com minérios. Era este um comércio lucrativo na África do Sul e a família prosperava confortavelmente. Tiveram dois filhos, Israel (Isy), em homenagem ao seu avô, e Isaac, dez anos mais jovem do que seu irmão, e três filhas, Rose (a mais velha, nascida em janeiro de 1902) Rachael (nascida em 1912) e Zena, a mais jovem.

Isaac Blank, o futuro Ted Grant, nasceu em nove de julho de 1913, numa grande casa na Rua Spilsbury, Germiston, nos arredores de Johanesburgo. A cidade tinha sido estabelecida nos dias iniciais da corrida do ouro, quando dois garimpeiros, John Jack e August Simmer, encontraram ouro na fazenda de Elandsfontein. Ambos os homens fizeram fortuna e a cidade surgiu ao lado da mina nos dias iniciais da corrida do ouro. Germiston é hoje a sexta maior cidade na África do Sul, com 70% do ouro do mundo ocidental passando por suas refinarias de ouro. Possui também o maior entroncamento ferroviário e o mais movimentado aeroporto civil, o Aeroporto Rand.

A própria Johanesburgo cresceu acompanhando as novas descobertas de campos de ouro vizinhos nos anos 1880, que atraíram gente empreendedora de muitos países como um ímã. Em 1921, a maior refinaria de ouro do mundo, conhecida como a Refinaria Rand, foi construída em Germiston. Depois disto, Germiston experimentou crescimento e desenvolvimento fenomenal. O crescimento da indústria e da mineração a converteu em uma cidade próspera. Naturalmente, toda esta riqueza estava baseada na exploração da classe trabalhadora negra que vivia e trabalhava em condições deploráveis. Mas para os brancos era uma oportunidade para subir e, com um pouco de sorte, ficar rico.

Isaac Blank nasceu em uma família razoavelmente próspera. Parece que ele teve uma infância bastante feliz, livre da miséria e da pobreza que eram a sorte dos meninos negros que o cercavam. Excepcionalmente para alguém nascido e criado naquele país, Ted era alérgico ao sol. Mas ele me assegurou que nem sempre foi assim. Ele me disse: “Quando era jovem, gostava de ir ao rio e permanecer ali durante todo o dia, nadando e descansando sob o sol e costumava voltar para casa negro como carvão”. Mas ele disse que o sol mais tarde causou uma irritação na pele. Então, sempre se manteve à sombra e nos recomendava seguir seu exemplo, embora sem muito êxito.

Estas escassas recordações, estes fracos vislumbres de um passado remoto, não falam de uma infância infeliz. Falam de sol e alegria. O presente era despreocupado e o futuro parecia brilhante. Mas havia nuvens escuras no horizonte e a família mais tarde caiu em tempos difíceis.

Max tinha um problema: era demasiado aficionado aos jogos de azar e, com o passar do tempo, isto se tornou uma obsessão. Na minha experiência, os jogadores compulsivos são pessoas muitas vezes encantadoras, com uma perspectiva despreocupada e completamente irresponsável da vida. Quando penso em Max Blank, vejo Mr. Micawber, o colorido personagem da novela de Charles Dickens, David Copperfield, dando seu famoso conselho: “renda anual vinte libras, gasto anual dezenove libras e seis centavos, resultado felicidade. Renda anual vinte libras, gasto anual vinte libras e seis centavos, resultado miséria”.

Micawber sempre estava “esperando confiantemente que algo acontecerá”, embora nada acontecesse. Este personagem, como é bem sabido, era um retrato do pai de Charles Dickens, que terminou no cárcere de Marshalsea para devedores, em Bermondsey. Da mesma forma, o obsessão de Max Blank com o jogo terminou em ruína. Max, que ainda retinha um leve sotaque russo, continuou a apostar pesadamente nos cavalos todos os sábados, enquanto levava pouco dinheiro à Adele para a manutenção dos filhos. “Sua usina de minérios foi à falência, uma vez que estava demasiado ocupado com os cavalos”, afirmou Rae anos mais tarde. Ele gastou logo todo o dinheiro que tinham e ficou profundamente endividado. O resultado, como o velho Micawber previu, foi a miséria.

O livro de Tolstoy, Ana Karenina, começa com as palavras: “As famílias felizes são todas iguais; cada família infeliz é infeliz ao seu próprio modo”. Este foi o caso para a família Blank. É fácil imaginar as consequências da jogatina de Max. Censuras intermináveis sobre dinheiro, lágrimas, súplicas, promessas de se corrigir que eram imediatamente rompidas e, no final, o inevitável divórcio. Depois de um longo e aparentemente feliz casamento, isto deve ter sido uma experiência dolorosa para todos os envolvidos.

As relações entre Max e Adele, e entre Max e seus filhos tornaram-se tensas até o ponto de rompimento. Rae lembrou o momento em que ela, Rose e seu pai estavam indo para sua fazenda em uma carruagem puxada por cavalo. Ela percebeu que as rédeas tinham ferido o cavalo e que este sangrava. Ela exigiu que seu pai parasse o carro, e o repreendeu por sua crueldade. Depois de seu protesto, ele finalmente deteve a carruagem, e Rae, que estava completamente transtornada, correu para um campo próximo, soluçando.

Depois deste episódio, ela nunca mais voltou a se entender com seu pai.

Talvez seja significativo que a única lembrança que Rae tinha de seu pai fosse a de um homem cruel com um cavalo. Costuma-se dizer que as filhas são mais ligadas a seus pais enquanto os filhos são mais próximos a suas mães, mas ela não guardava recordações de afeto, abraços ou beijos, somente de brutalidade insensível. Contudo, não há absolutamente nada que possa sugerir que Max Blank era um homem cruel. Como podemos explicar este aparente paradoxo? A memória é altamente seletiva e pode pregar peças. Ela também é um filtro eficiente. Com o passar dos anos, algumas lembranças se apagam, enquanto outras se tornam mais vívidas. Este processo de seleção não é acidental.

Os biógrafos oficiais de Stalin puseram o seu pai fora da história. O esquecimento desta particular lembrança certamente não foi acidental. Há amplas evidências a partir de pessoas que conheceram a família que apontam que ele era um sapateiro borracho, que tinha traços de crueldade e que submetia seu filho a surras selvagens. Mas ninguém, inclusive Rae, nunca sugeriu que Max fosse cruel com sua esposa ou com seus filhos, exceto em uma coisa: que por seu comportamento irresponsável ele destruiu seu casamento e a família. Para uma adolescente, isto seria imperdoável e profundamente perturbador.

Quem sabe o que realmente aconteceu no dia que permaneceu tão vividamente em sua lembrança por toda sua vida? O casamento estava se desintegrando, e provavelmente também o caráter de seu pai. Quando uma pessoa irresponsável é forçada a ficar cara a cara com a realidade, tudo se despedaça. Naquele dia evidentemente Marx ou estava desabafando sua raiva e frustração sobre um pobre animal ou simplesmente estava demasiado absorvido em seus próprios problemas para se preocupar com qualquer outra coisa. A sensação de choque de Rae não foi somente uma reação ao sofrimento do cavalo. De fato, ela estava dizendo ao seu pai: “Como pode você ser tão cruel comigo, com minha mãe, com todos nós?”.

Seu sentimento de ressentimento com relação a ele foi tão longe ao ponto de se recusar a comparecer ao seu funeral, mas ela foi persuadida a comparecer relutantemente por sua sogra. De forma similar, Rose também ficou desgostosa com ele. Foi um relacionamento conturbado que obscureceu toda a família.

Neste ponto, o expressivo mas arruinado Max Blank desaparece da narrativa. Não tenho nenhuma ideia do que aconteceu com ele. Até que ponto seu pai influenciou o caráter de Isaac? Ted com certeza não era viciado em corridas, mas não era isento de um pouco de “vibração” com os cavalos e visitava frequentemente a casa de apostas. Em qualquer caso, Ted raramente falava sobre ele. Mas lembrava afetuosamente de sua mãe: “Ela era uma mulher muito amável e era muito condescendente comigo – um pouco demasiado condescendente”, Ted recordava com nostalgia.

Com o tempo, Adele se casou de novo e teve outra filha, Anita (conhecida na família como Nita). Quando cresceram, Nita deixou a África do Sul por uma nova vida na Califórnia, enquanto Rae se mudou para Paris e se casou. Somente Isy, Rose e Zena permaneceram em Johanesburgo. Foi Isy quem assumiu a loja da família com a ajuda de Rose, que morreu de um ataque do coração em 1968. A pobre Adele teve um fim trágico, como veremos.

Não sabemos que impacto esta crise familiar teve sobre o jovem Isaac, mas talvez seja significativo que ele tenha permanecido com seu pai durante um período de seis meses após o divórcio, depois dos quais ele foi viver permanentemente com sua mãe. Isto sugere que pode ter havido um conflito sobre a custódia dos filhos. De qualquer forma, estes acontecimentos podem deixar profundas cicatrizes na mente dos jovens. Rae era certamente uma crítica amarga de seu pai. Pode ser que esta desavença familiar tenha produzido o efeito de fazer o jovem Isaac pensar mais criticamente sobre a vida em geral. Mas, é somente uma hipótese.

A família, agora, se encontrava em situação precária. Mas a mãe de Ted deve ter sido uma mulher muito forte e determinada. A fim de ganhar a vida, ela estabeleceu e administrou uma pequena mercearia em Johannesburgo, onde os filhos também ajudavam de vez em quando. Enquanto isto, Ted foi enviado para um colégio interno e suas irmãs a um convento para continuar sua educação.

Ted foi um aluno brilhante, como suas irmãs, e tinha uma mente aguçada e curiosa. Ted me disse que tinha rejeitado a religião ainda muito jovem. Ele relatou uma conversa que teve com um professor na escola que estava explicando o primeiro Livro do Gênese, citando o famoso versículo de abertura da Bíblia: “E no princípio Deus criou o céu e a Terra”. Isaac lhe perguntou: “E quem criou Deus?” Seu interlocutor não sabia a resposta. Isto convenceu ao jovem de que talvez a Bíblia não tivesse resposta para tudo. Começou a buscar explicações em outro lugar. Esta busca da verdade depois o levou direto ao Marxismo.

Em sua juventude Ted podia falar Africâner, a língua dos africâneres, que era originalmente um dialeto do holandês. Infelizmente, ele esqueceu como falá-la, mas algumas vezes quando tínhamos reuniões na Holanda e na Bélgica ele podia entender as estranhas palavras ou frases do holandês. Mas de outras coisas ele se lembrava. Ele podia cantar a italiana Bandiera Rossa em Zulu. Muitas vezes, em eventos sociais, ele também podia cantar em Xhosa [língua Bantu, relacionada com a língua Zulu – Nota do Tradutor] Nkosi Sikeleli Afrika (O Senhor abençoe a África), a bela e assombrosa canção do Movimento de Liberação Africano, partes da qual foram agora integrados no Hino Nacional da África do Sul:

Nkosi Sikeleli Africa

Malup hakanyiswu phando Iwayo

Yiswa imithanda zo yethu

Nkosi Sikelela

Tudo isto mostra que a África do Sul sempre esteve presente nas profundezas de sua mente. Quando ele me visitou na Espanha para o primeiro congresso da recém-estabelecida seção espanhola do Comitê por uma Internacional dos trabalhadores, em 1976, disse que os pêssegos lhe recordavam a infância e se podia vê-lo bastante nostálgico. Afirmou mais de uma vez que gostaria de voltar, pelo menos uma vez antes de morrer. Mas nunca o fez.

Esta é a soma total de tudo o que pude colher de Ted sobre sua infância na África do Sul. Quando ele deixou de ser Isaac Blank e se converteu em Ted Grant, se tornou em um autêntico inglês. E, no entanto, no fundo, acredito que ele reteve um afeto especial pela terra onde nasceu. Quanto da África do Sul permaneceu em sua consciência é difícil de se dizer. Mas que um pequeno pedaço dela permaneceu alojado em seu coração até o fim, estou absolutamente seguro.

Os primeiros anos

Ainda jovem na África do Sul, Ted se tornou Marxista. Perguntei-lhe como se interessou pelo Marxismo. Ele me disse que foi estimulado inicialmente à vida política devido ao tratamento aos trabalhadores negros: “Você não tem ideia de como os trabalhadores negros eram tratados”, disse ele. “Eles eram chamados de ‘kaffirs’” [cafres; sul-africanos negros – termo ofensivo – Nota do Tradutor]. Ele descreveu como os negros pobres viviam em choças sem serviços básicos e viviam principalmente de espigas de milho, ou, como dizem na África do Sul, mealies [milho, palavra usada na África do Sul – Nota do Tradutor], (que ele pronunciava millies).

Uma visão interessante sobre o pensamento de Ted sobre este assunto foi uma conversação que uma vez tive com ele sobre a Guerra dos Bôeres. Apontei para ele que Trotsky tinha apoiado os Bôeres contra os britânicos. A isto ele simplesmente retrucou: “Isto foi porque ele não conhecia como eles tratavam os negros. Era realmente um tipo de escravidão”, continuou. “Na realidade os negros eram escravizados aos brancos coletivamente. Você não pode imaginar coisa pior que isto. Os brancos podiam até mesmo tratar um velho negro como “Boy” (ele pronunciou esta palavra imitando o forte sotaque Africânder que ele revestiu com uma espécie de rosnado ameaçador).

A lembrança desses primeiros sinais de consciência política ficou com Ted pelo resto de sua vida. Ele tinha um sentimento profundamente enraizado da injustiça e um ódio ardente a todo tipo de discriminação e opressão. Ele sentia uma poderosa identidade com os povos oprimidos de todo tipo. Esta era uma parte importante de sua constituição psicológica. Para alguns Marxistas, a luta contra a opressão é somente uma ideia abstrata, mas para Ted Grant isto era profundamente sentido com todas as fibras de seu ser. Foi isto que o fez abraçar a causa revolucionária, com coração e alma. Mas para determinar que forma concreta estes primeiros e vagos sentimentos de revolta tomariam, haveria necessidade de um catalisador.

Este tomou forma humana em outro homem notável, Ralph Lee. A amizade de Ted com Ralph Lee foi o resultado de um acidente afortunado. Lee era um membro veterano do Partido Comunista da África do Sul (PCAS), a quem se juntou, disse Ted, no momento da Revolta Rand em 1922. Mas no momento em que Ted se juntou ao movimento, a Internacional Comunista se encontrava em um fermento de mudança. Estes eram os anos quando a burocracia estalinista estava consolidando sua permanência no poder na URSS.

Um grupo de militantes no Partido Comunista da África do Sul se opôs ao Estalinismo e se orientou em direção ao Trotskismo (Bolchevismo-Leninismo). Lee havia entrado em contato como o movimento por acaso, quando adquiriu material dos Trotskistas Americanos, a Liga Comunista da América, liderada por James Cannon, em uma livraria em Johannesburgo, incluindo a Crítica do Projeto de Programa do Comintern, de Trotsky.

Junto a Murray Gow Purdy, Lee formou um pequeno grupo Trotskista que tentou trabalhar dentro do PCAS em Johannesburgo e no Rand. Seus principais contatos estavam na ampla comunidade Judia Lituana dentro da qual o PCAS tinha fortes raízes. Esta era a comunidade da qual o próprio Lee veio; seu nome é uma forma inglesa do que era originalmente Raphael Levy. Um clube dos trabalhadores judeus, fundado sob influência estalinista em 1931, era a principal base de atividade comunista.

No início da década de 1930, a família de Ted decidiu se mudar de Germiston à Rua Klerk em Johannesburgo, perto da mercearia da família. O casarão era de propriedade do tio de Ted, George, que tinha ganhado dinheiro na mineração, e que compartilhava também a casa com eles. Estando sem dinheiro após o rompimento de seu casamento, a mãe de Ted foi obrigada a tomar hóspedes. Em uma dessas estranhas coincidências em que a história é tão rica, aconteceu que um dos hóspedes passou a ser um amigo da família, Ralph Lee. Todos eles se hospedavam nesta grande casa, incluindo o tio George e a avó de Ted, que nunca aprendeu inglês e falava somente em seu idioma nativo, o francês. Os três hóspedes dormiam em quartos separados no pátio, ao lado do imóvel principal.

Como um bom comunista, Ralph sempre estava pronto para contatos eventuais, e se engajava em discussões com os dois meninos que viviam na porta ao lado. Os vizinhos eram de ascendência escocesa, lembrou Ted. Mas apesar de Ralph ter certa influência sobre eles, fracassou em recrutá-los para a causa. Através de discussões regulares, ele conseguiu conquistar a irmã mais nova de Ted, Zena, ao Marxismo, mas fracassou com Rae. “A casa sempre estava cheia de gente”, lembra Rae. “Estávamos todos nós, com nossos amigos, e logo Ralph e Ted com seus conhecidos, e os hóspedes. Frequentemente, todos nos sentávamos em torno de uma enorme mesa de jantar e éramos alimentados por minha mãe. Lembro que o guisado francês parecia ser o prato favorito”.

O novo hóspede também teve um grande interesse no jovem Isaac (como ele ainda se chamava, então), e desempenhou um grande papel no início do desenvolvimento político de Ted. O rapaz estava curioso sobre política e eles discutiam com frequência questões políticas e literatura. Aos 14 anos de idade, os olhos de Isaac ficaram abertos para todo um mundo novo de ideias através dos escritos de Bernard Shaw, HG Wells, Máximo Gorki, Jack London e, por último, Marx, Engels e Lênin. Ted me falou que tinha começado a ler O Capital quando tinha 14 anos. Isto marcou o início de uma paixão de toda a vida pela teoria Marxista. Pela altura dos 15 anos de idade, Isaac era um Marxista jurado. Sob a influência de Lee, ele se juntou ao PCAS.

Depois de terminado o internato aos 15 anos de idade, Ted deixou a escola e conseguiu um emprego em uma empresa de navegação cobrando faturas, o que lhe dava muito tempo para ler. “Minhas lembranças iniciais mais vívidas de Ted”, observou Rae, “era vê-lo correndo em sua bicicleta”. Ela acreditava que isto devia tomar a maior parte do seu tempo no emprego.

Com somente uns vinte anos, Ralph Lee estava estreitamente associado com outro jovem Trotskista, Murray Gow Purdy, que, por sua vez, tinha sido discípulo do primeiro Trotskista Sul-africano, Frank Glass – membro fundador do Partido Comunista da África do Sul (PCAS), Glass e sua esposa, Fanny Klennerman, tinham estabelecido uma livraria de esquerda na Rua Von Brandis, no centro de Johannesburgo, Livraria Vanguarda, e foi ali onde recolheram seu primeiro exemplar do Americano The Militant. Frank Glass foi finalmente expulso do PCAS. Ted mais tarde pagou tributo ao importante papel desempenhado por James Cannon e pelos Trotskistas Americanos em difundir as ideias de Trotsky durante este período, apesar dos sérios desacordos que ele teve mais tarde com Cannon.

Ralph Lee conheceu Glass nos seus dias no PCAS e costumava enviar Isaac para comprar exemplares do The Militant, o periódico dos Trotskistas Americanos, na Livraria Vanguarda. Cedo, o jovem entusiasta estava comprando o seu próprio exemplar na Livraria. Muitos anos mais tarde, em uma entrevista, Glass recordou um jovem escolar, presumivelmente Ted, indo religiosamente à sua loja para compra exemplares do jornal Trotskista. Como muitos outros, Glass deixou a África do Sul por maiores oportunidades em outro lugar. Terminou na China em 1930, onde desempenhou um importante papel entre os Trotskistas Chineses, e mais tarde nos Estados Unidos.

Com o tempo, as atividades políticas de Ralph começaram a preocupar a mãe de Ted, preocupada de que estes pontos de vista revolucionários colocassem seus filhos em sérios problemas. Lee, tendo perdido o emprego, também deixou de pagar o aluguel, e terminou devendo à mãe de Ted uma grande quantidade de dinheiro. Isto se somou ao seu crescente ressentimento contra ele. Finalmente, Ralph se mudou do alojamento e fez amizade com uma jovem garota esquerdista chamada Millie Kahn. Antes dela morrer, Rob Sewell a entrevistou, e cito abaixo algumas notas inéditas desta entrevista.

Como muitos da comunidade judaica em Johannesburgo que tinham escapado dos pogroms no Leste Europeu, Millie vinha de uma família política. Sua mãe era amiga próxima de Fanny Klennerman, que tinha sido expulsa do PC por suas simpatias Trotskistas. Fanny conseguiu ganhar Millie em apoio à Revolução Russa e a Trotsky. Enquanto Millie terminou por se converter em Trotskista, sua irmã Hilda se juntou ao estalinista PCAS. Elas nunca mais se falaram uma com a outra despois disto.

Revolucionária dedicada, Millie colocou suas consideráveis capacidades e dotes organizativos para se conduzir nestas intervenções. Foram estas capacidades que foram postas enormemente a serviço da construção do movimento Trotskista na Grã-Bretanha. Ela proporcionou a unidade organizativa consistente na liderança que iria durar até a ruptura do Partido Revolucionário Comunista em meados de 1949.

Millie se encontrou com Ralph Lee, que era vários anos mais velho que ela, nos grupos de discussão Marxista que ele organizara em Johannesburgo. Depois disto, seu relacionamento pessoal floresceu. “Ele me fez crescer”, disse Millie 70 anos mais tarde. Ela recordava Ralph como um homem muito alto, magro e bonito. Isto se pode confirmar pelas poucas fotos existentes dele. Ele era certamente uma figura colorida e carismática. Enquanto no Partido Comunista, ele se envolvera em expropriações armadas e outras aventuras revolucionárias em nome do movimento. Millie tinha uma renda para a manutenção dos dois ao trabalhar na chapelaria de sua mãe, enquanto Ralph se concentrava integralmente na luta revolucionária.

“Ele tinha avidez pela leitura. Costumava dormir durante o dia e ler à noite. Nunca trabalhou”, comentou Millie risonha. “Ele nunca quis”. Eles se mudavam constantemente, forçados pelas circunstâncias, de um lugar para outro, mas logo se instalaram – pelo menos por um tempo – em um local, um pouco mais que uma choça, próximo à sede do Sindicato dos Trabalhadores de Lavanderia em Johannesburgo (Rob Sewell, Entrevista com Millie Kahn, 19 de janeiro de 2002, não publicada, Arquivo Ted Grant).

Millie era uma mulher muito aventureira e de mente independente, e em sua juventude, apesar de ter sido advertida por seus pais, fazia excursões em barco sozinha, “saltando” de um lugar para outro ao longo da costa do Cabo. Há uma foto de Millie, de 1929, em uma viagem destas. A amizade revolucionária de Millie e Ralph cedo deu lugar a viver juntos e em seguida casar-se. Ted se desincumbiu como padrinho de casamento, que deve ter ocorrido em algum momento de 1933, um ano antes de ele se mudar para a Inglaterra.

Ted tomou a decisão de sair de casa por razões políticas, e se mudou para a casa de Ralph em algum momento em 1932. Fez isto sem informar a família. Simplesmente se foi certa manhã. A família não tinha nenhuma ideia para onde ele tinha ido. Mesmo muitos anos mais tarde, sua irmã Rae imaginava que ele tinha ido direto para a Inglaterra, mas, na verdade, ele permanecera em Johannesburgo durante dois anos antes de ir para Londres no outono de 1934. Como se poderia esperar, sua mãe ficou totalmente angustiada quando Isaac se foi de casa. Mas ele pensava que assim era melhor. Sua decisão estava tomada. Ele dedicaria sua vida ao movimento revolucionário.

A classe trabalhadora negra

Muito cedo Ted viu o enorme potencial revolucionário do proletariado negro. Isto permaneceu com ele pelo resto da vida. Lembro com que entusiasmo, nos anos 1980, ele saudou o heroico movimento dos trabalhadores negros Sul-Africanos organizados nos sindicatos de COSATU lutando contra o monstruoso regime do Apartheid. No entanto, Ted tinha uma visão muito realista dos trabalhadores negros e da classe trabalhadora em geral. Ele nunca teve esta espécie de temor supersticioso que era característico dos intelectuais brancos de classe média, que frequentemente começam com uma visão abstrata e idealizada dos trabalhadores, apenas para desertarem do movimento e retornarem a sua classe de origem logo que se cansam disto. Quantas vezes temos visto este fenômeno – e não somente na África do Sul!

Ted não se aproximou da classe trabalhadora de forma idealística ou sentimental. Ele descreveu como nos fins de semana eles podiam ir a locais chamados shabeens e beber um potente licor conhecido como skokeean, e que frequentemente terminam com pelejas entre borrachos. Ted se recordava de que uma tática muito comum usada nas lutas nos shabeens para alguns era avisar “Sem chutes!” enquanto atacavam com suas botas. Ele utilizava isto como uma analogia gráfica e divertida para aqueles na esquerda que, enquanto agem de forma muito agressiva com seus oponentes políticos, são muito sensíveis sempre que alguém os critica.

Ele via os trabalhadores negros não como um pobre povo oprimido que necessitasse da ajuda dos brancos de classe média, mas como camaradas em uma luta comum. Era um verdadeiro internacionalista, completamente desprovido de qualquer indício de condescendência paternalista. Sua indignação estava dirigida contra o sistema que gerava a exploração e a opressão em todas as suas formas. Ele se ergueu, não pelas pequenas reformas de um sistema inerentemente injusto, mas por sua derrubada revolucionária. Com esta finalidade, tratou de ajudar os trabalhadores negros a se organizarem começando com a mais básica célula de organização proletária: o sindicato.

Além de Isaac, o grupo de Ralph Lee consistia de Purdy, Millie Khan, Raymond Lake, John Saperstein, Max Basch, a irmã de Ted, Zena Blank, e não muitos mais. Era apenas um punhado de pessoas, mas que tinham grandes ideias. Em abril de 1934, eles se constituíram como a Liga Bolchevique-Leninista da África do Sul. Elaboraram uma declaração política e enviaram uma carta aberta criticando a linha estalinista do PCAS. Em outras palavras, desafiaram a liderança. Isto levou a sua imediata expulsão.

Conduzir o trabalho revolucionário sob tais condições deve ter exigido alguma coragem. Tiveram de enfrentar não apenas a oposição do estado como também as táticas hooligans dos estalinistas, que não hesitavam em usar a violência contra os “Trotsky-fascistas”, perturbando as reuniões, golpeando as pessoas e assim por diante. A Liga tentou estabelecer contato com a Liga Comunista Internacional. Eles trabalhavam principalmente na zona de Johannesburgo, se bem que também estabeleceram contatos em outros centros urbanos. Estabeleceram ligações com outro recém-formado grupo Trotskista na Cidade do Cabo. Ambos os grupos pouco a pouco se fundiram em uma só organização Trotskista, chamada de Partido dos Trabalhadores da África do Sul.

Em junho de 1934, Purdy se tornou o Secretário de Organização de um renovado Sindicato Africano dos Trabalhadores de Lavanderia. Em uma tentativa para a construção de uma base entre a classe trabalhadora negra, o grupo voltou toda a sua atenção para esta tarefa. Esta foi a primeira tentativa prática visando a recuperação do campo do trabalho sindical negro, que os estalinistas tinham primeiro destruído e logo abandonado.

O trabalho em Johannesburgo não se limitava à organização de sindicatos. Havia reuniões das células, aulas, reuniões públicas abertas e assim por diante. Sob as condições mais difíceis e em completo isolamento, eles conseguiram reunir um núcleo inicial. O pequeno mas determinado grupo tentou organizar os trabalhadores negros e desempenhou um importante papel na greve dos trabalhadores têxteis.

Com a mudança para o trabalho sindical, Ralph e Millie se mudaram para um barraco próximo à sede do sindicato e começaram a reunir fundos para o sindicato. “Vivíamos ao lado dos escritórios do sindicato”, recordou Millie. “Claro, era muito desconfortável, mas que importava? Costumavam celebrar as reuniões sindicais em nosso pátio traseiro. Tentávamos levantar dinheiro de várias formas. Lembro que coletávamos garrafas, cortávamos a parte superior e logo as pintávamos. Ralph era muito bom nesta arte. Mas de qualquer forma foi um fiasco financeiro” (Rob Sewell, Entrevista com Millie Khan).

Em questão de meses e depois de uma campanha exitosa de recrutamento, a greve ocorreu no final de agosto, e resultou no sindicato ganhando o reconhecimento em certo número de empresas. Millie se recorda marchando valentemente com os grevistas negros pelo centro de Johannesburgo. “Eu estava sozinha enquanto os outros camaradas estavam fora, creio, e ganhei um monte de abusos e ofensas das pessoas gritando dos prédios. Mas permaneci desafiante” (Ibid.).

Ian Hunter descreveu as circunstâncias da greve:

“O novo sindicato logo enfrentou um severo teste, um teste, ademais, precipitado em um momento em que Lee estava fora visitando contatos em Durban. As negociações para o estabelecimento do reconhecimento sindical, horas extras e o pagamento semanal correram para um impasse. Em 28 de agosto um confronto ocorreu em Reliance, uma das maiores lavanderias. Os empregadores apresentaram um ultimato: aceitar seus termos ou sair. Os 90 membros negros do sindicato saíram. No dia seguinte, eles retornaram com Purdy, que resultou no sindicato dando seu próprio ultimato às três maiores lavanderias, a Reliance, a New York e a Internacional. O prazo expirou e em seis de setembro e mais 90 membros em outros dois estabelecimentos deixaram de trabalhar. Uma marcha dos grevistas no dia seguinte levou à prisão de Purdy sob a acusação de incitar a desordem, uma manobra frequentemente empregada pelas autoridades contra os desafios políticos e industriais. Millie Khan [Millie Lee], como já era chamada então, descreveu como ela caminhava com os trabalhadores de lavanderias negros através de um corredor polonês de ofensas das mulheres brancas. A residência de chapas onduladas que era a casa de Lee e Khan se converteu na sede dos grevistas.

Os problemas táticos abundavam. Qualquer ação grevista por parte dos nativos enfrentava a intervenção das autoridades sob qualquer pretexto. Purdy tentou minimizar as oportunidades de intervenção fazendo o jogo das “táticas pacíficas”, e abstendo-se da utilização de piquetes. Ele foi criticado pelos comunistas por ambas as táticas por não serem suficientemente agressivas. Não obstante, mesmo a única marcha que foi realizada levou a um confronto com as autoridades. Por outro lado, o Partido Comunista era até certo ponto mais conciliador do que se poderia esperar. Apesar de criticar a liderança de Purdy, o PC publicamente ofereceu apoio e assistência. O IKAKA chegou a contribuir para a fiança de Purdy. Apesar disto, os estalinistas se mantiveram distantes, suas razões sendo justificadamente questionadas, e a única ajuda organizacional veio dos Sindicatos e do Conselho do Trabalho (o sul-africano TUC), que envolveu menos cordas.

Em seis de setembro, o Johannesburgo Star reportou um aparente progresso, com todas as três principais plantas concedendo o reconhecimento sindical, e duas oferecendo adicionalmente o aumento de pagamento correspondente a 2/6 do dia necessários para converter o pagamento mensal ao ciclo de quatro semanas. Oxalá as coisas fossem tão simples! Na realidade, a concessão do reconhecimento sindical era somente tática e não formal. O reconhecimento formal ainda era exigido, mas apenas 50% dos trabalhadores da New York e da Internacional estavam apoiando a Reliance. Pior ainda, nenhuma ajuda foi disponibilizada da Rand Steel Plant e da Leonardo foi comprado. Enquanto isto, as substituições começaram a ocorrer mesmo para as passadoras especializadas. Setenta e três dos grevistas da Reliance agora se encontravam presos por infração penal de contrato. Os processos de criminalização começaram em outra lavanderias também. O foco de atenção agora mudou, subitamente se convertendo em um caso de prova na legislação trabalhista.

Um dos grevistas, Oscar Maboa, que tinha sido o centro da altercação que levou à greve inicial, foi considerado como um caso de prova criminal em 20 de setembro. Ele foi absolvido, mas somente na base de certos comentários do gerente poderiam ser interpretados como demissão. Absolvidos da acusação de greve ilegal, os 73, dessa forma, foram demitidos. Foi esta uma vitória de Pirro com uma vingança. Quase todos os grevistas de todas as três empresas já tinham seus empregos tomados por substituição. O órgão estalinista Umsebenzi não tardou em pôr tudo isto aos pés de Purdy (Ian Hunter, Ralph Lee and the Pioneer Trotskysts of Johannesburg, Revolucionary History, Volume 4, no 4).

Apesar do resultado e da repressão, esta greve representou uma luta histórica e um marco na história da classe trabalhadora negra sul-africana. Se não deixou nada mais, a luta dos Sindicato dos Trabalhadores de Lavanderias deixou depois dela uma importante tradição de militância e organização.

O Partido dos Trabalhadores da África do Sul

O grupo teve alguns êxitos na criação de novas células, particularmente no distrito de Alexandra (um bairro negro no extremo norte de Johannesburgo), mas, em geral, as condições objetivas para o trabalho revolucionário na África do Sul eram extremamente difíceis. O recrutamento de membros era um negócio muito lento e trabalhoso. As dificuldades causaram frustrações que se refletiram em problemas internos no grupo. O panorama estava longe de ser prometedor.

Os membros do grupo estavam começando a reavaliar seu trabalho e perspectivas, tirando conclusões de longo alcance. Com a guerra mundial se avizinhando, eles decidiram que suas energias poderiam ser melhor empregadas na Europa. Não muito depois da greve dos trabalhadores de lavanderia, dois dos mais jovens membros do grupo, Max Basch e Isaac Blank, decidiram dar o salto. Dadas as conexões da Commonwealth que proporcionavam fácil acesso e nenhuma barreira linguística, a Grã-Bretanha era o lugar óbvio para se ir. A Grã-Bretanha também era um dos países chave do mundo imperialista e tinha, de modo correspondente, uma forte classe trabalhadora, onde os jovens e enérgicos camaradas iriam afundar raízes.

Eles deixaram Johannesburgo para a Cidade do Cabo, onde permaneceram com os Trotskistas do Cabo enquanto esperavam por um navio conveniente para a Europa. Foi aqui que o homem que se tornou conhecido como Ted Grant fez seu primeiro discurso público, um informe dos acontecimentos da greve das lavanderias, em uma reunião de rua ao ar livre organizada pelo Clube Lênin da Cidade do Cabo, do lado de fora do Escritório dos Correios da Rua Castle. “Não falei muito bem”, recordou Ted mais tarde, com uma risada. Foi seu último ato político no solo sul-africano e o início de uma nova etapa em sua vida. Logo depois, ele e seu camarada Max Basch partiram para a Europa, deixando a África do Sul para trás para sempre.

Os que permaneceram para trás enfrentaram enormes problemas. As dificuldades são citadas na correspondência da época. “O zelador da casa de cômodos onde Mil e eu vivemos”, escreveu Ralph Lee a Paul Koston, um Trotskista americano que ajudou a liderar a organização na Cidade do Cabo, “se opôs aos ‘cafres’ que visitam nosso quarto. Fomos discriminados durante longo tempo com nossos vizinhos, a ralé habitual de ratos de bilhar, cavalheiros de salas de biscate, cabos eleitorais, motoristas de táxi e prostitutas que habitam ‘prédios’. Então, agora, pegamos nossas malas e nos mudamos de novo” (Lee a Koston, 12 abril de 1935).

Para aumentar as dificuldades houve conflitos dentro da organização. Purdy era um aventureiro e um tanto instável. Entrava repetidamente em choque com Lee. Em 12 de abril de 1935, Lee escreveu a Koston, então secretário da WPSA: “Nossas relações pessoais estão agora tensas ao máximo. A forma furiosa e aberta como ele me mira durante as reuniões da célula é absurda, e raramente podemos trocar palavras corteses, e muito menos discutir quaisquer questões”.

Estes conflitos internos debilitantes aumentam as dificuldades de um pequeno grupo isolado. Em 17 de maio, Lee escreveu novamente a Koston:

“Sinto-me muito desanimado neste momento sobre as perspectivas imediatas da Internacional e do Partido dos Trabalhadores da África do Sul (…) Nossa tarefa urgente e imediata é dissolver as ligações com as massas de trabalhadores”.

Finalmente, em nove de junho de 1935, Lee escreveu a Koston em termos desesperados: “os assuntos do partido estão no inferno de um desastre aqui”.

Finalmente, Purdy foi expulso e o grupo reorganizado numa base mais saudável. Purdy, mais tarde, foi para a Índia, onde defendeu uma linha que colocava pesada ênfase na questão das castas, mais do que na questão de classe, como principal tema – uma linha que Ted rejeitou completamente. No final, Ralph e Millie, junto com um pequeno grupo de camaradas, decidiram seguir os outros a Londres.  

 

Notas

Para conhecer de Ted Grant: http://www.tedgrant.org/archive/grant/index.htm

[1] Família de Israel Blank e Rosalia Schereshevsky