Tragédia no Canal da Mancha: socialismo ou barbárie

A trágica morte por afogamento de 27 migrantes no Canal da Mancha aproximou a Grã-Bretanha da miséria e da devastação que os refugiados enfrentam em todo o mundo. O capitalismo é um horror sem fim. Só a revolução socialista pode derrubar as fronteiras e evitar esta catástrofe.

No dia 24 de novembro, sob o manto da escuridão, dezenas de refugiados – em busca de uma vida mais digna – morreram afogados ao atravessar o Canal da Mancha. Amontoados, sem luzes, sem radar e certamente sem plano B, 27 homens, mulheres e crianças morreram quando seu bote desinflou e afundou.

Este é o pior incidente (registrado) desse tipo desde o início da crise migratória.

Entre os que morreram estavam uma mãe grávida e três filhos. A primeira vítima citada é Maryam Nuri Mohamed Amin, uma mulher curda do norte do Iraque, que esperava se reunir com seu noivo. Os únicos sobreviventes conhecidos são do Iraque e da Somália – ambos os países, deve-se notar, que foram bombardeados até a barbárie pelo imperialismo ocidental.

A história é tantas vezes a mesma que nem precisa ser repetida: aqueles que arriscam suas vidas já estão presos no dilema entre o inferno e o azul profundo do mar.

O Canal da Mancha, assim como o mar Mediterrâneo, tornou-se um verdadeiro cemitério para aqueles que se arriscam a tentar atravessar águas tempestuosas, enquanto fogem da guerra, da pobreza e das mudanças climáticas em seu país.

Isso é inteiramente culpa do sistema capitalista, que gerou a crise migratória em primeiro lugar.

A Fortaleza Europa

A tragédia no Canal da Mancha poderia ter acontecido dias antes, quando um grupo de refugiados afegãos ficou preso no mar depois que o motor do barco se desligou. Eles compreensivelmente começaram a entrar em pânico enquanto tentavam jogar fora a água que estava enchendo o barco e que já estava ao redor de seus tornozelos.

Um dos que estavam nessa situação de vida ou morte, um jovem de 24 anos que tentava escapar do domínio do Talibã, disse ter acreditado que iria morrer. Apesar disso, ele afirmou que planeja sair novamente o mais rápido possível – tamanho é o desespero que ele e inúmeras outras pessoas enfrentam.

À medida que os problemas pioram e o sofrimento incalculável se desenrola, uma repressão cada vez mais feroz é aplicada contra as vítimas do imperialismo / Imagem: Domínio público
Os limites do Estado-nação são evidentes diante da crise dos refugiados. À medida que os problemas pioram e o sofrimento incalculável se desenrola, uma repressão cada vez mais feroz é aplicada contra as vítimas do imperialismo.

Políticos reacionários no Ocidente estão lutando para fechar suas fronteiras e se isentar de qualquer responsabilidade.

Basta olhar para a Letônia, Lituânia e Polônia enviando tropas para a fronteira com a Bielo-Rússia. Em outros lugares, a Grécia está ocupada construindo muros para impedir a entrada de refugiados na Turquia – instalando sistemas de vigilância para evitar a violação da Fortaleza Europa.

Países como a Grã-Bretanha, que prometeram receber refugiados afegãos, agora estão arquivando essas promessas. Até mesmo Macron – o queridinho do capitalismo liberal – disse que a Europa deveria “se antecipar e se proteger de uma onda de migrantes do Afeganistão”.

Isso revela a cara feia do imperialismo que está por trás da máscara sorridente do liberalismo. Aqueles que precisam de “proteção” são os refugiados e migrantes que são constantemente perseguidos pela polícia e caluniados pela imprensa.

Caos em Calais

Com cada vez menos rotas que podem ser consideradas seguras, os migrantes estão sendo forçados a situações mais arriscadas e precárias.

Cinco anos após o desmantelamento da “selva de Calais”, 2 mil migrantes permanecem na área, sem nenhum outro lugar para ir. Os assentamentos de refugiados ao redor são “favelas” esquálidas, sem as comodidades mais básicas, como água potável e saneamento.

Este cenário terrível explica por que três vezes mais barcos pequenos chegaram às costas da Grã-Bretanha este ano em comparação a 2020. Além disso, é neste contexto que esses refugiados vulneráveis ​​são vítimas de contrabandistas que prometem acesso a uma nova vida.

Destituídos e desabrigados, um número crescente está tendo que desembolsar “taxas” de 6 mil euros ou mais para atravessar o Canal, que eles frequentemente consideram ser “apenas um lago”.

A secretária do Interior Conservadora, Priti Patel, disse ao Parlamento que “em termos de dureza … não descartei nada” quando se tratar de deter os barcos que cruzam o Canal da Mancha. Na tentativa de conter a onda de migrantes, sua única chance de fuga foi efetivamente criminalizada.

Como parte da patriótica batida no peito dos conservadores, o governo está apresentando uma nova Lei de Nacionalidade e Fronteiras, que visa fragmentar todo o processo de busca de asilo. Somente aqueles que passam pelos caminhos legais – uma quantidade cada vez menor – têm o luxo da Convenção de 1951 sobre Refugiados.

Além disso, as novas leis significam que aqueles que chegarem ilegalmente ao Reino Unido podem ser “devolvidos”. Isso é uma violação direta dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente, mostrando como tais tratados realmente são ineficazes sob o capitalismo.

É vital enfatizar, no entanto, que nenhuma quantidade de fortalecimento das fronteiras ou policiamento repressivo pode “resolver” a crise dos migrantes. Toda a conversa dura dos Conservadores não fará nada para impedir que refugiados desesperados arrisquem suas vidas em busca de um futuro real.

Escravidão moderna

Tampouco essas medidas draconianas resolverão o problema real do tráfico e contrabando de pessoas.

No final das contas, essas redes criminosas são extremamente lucrativas, fornecendo uma onda de mão de obra barata e superexplorada para os patrões, o que equivale, em alguns casos, à escravidão moderna no Reino Unido.

O tráfico e o contrabando de pessoas fornecem uma onda de mão de obra barata e superexplorada para os patrões, o que equivale, em alguns casos, à escravidão moderna no Reino Unido / Imagem: Ggia
Um relatório recente da polícia francesa chegou a mostrar como essas redes são auxiliadas por banqueiros e por funcionários que as alertam sobre a atividade policial. Essas redes criminosas, afirma o mesmo relatório, estão “operando em escala quase industrial”.

Mais uma vez, vemos como a linha entre o mercado negro e as ações supostamente “às claras” da classe capitalista é, na realidade, extremamente apagada.

Apesar do estereótipo do gangster de negócios duvidosos conduzidos em quartos empoeirados e nas esquinas, um oficial francês acertou em cheio: “[Os chefes da máfia] vivem pacificamente em Londres, em lindas vilas. Eles ganham centenas de milhões de euros todos os anos e reinvestem esse dinheiro na City”.

Existe uma relação simbiótica entre os traficantes e os patrões, o que permite que essas redes sejam tão profissionais.

Os primeiros se aproveitam de um fluxo de homens e mulheres miseráveis, que podem ser mantidos em constante medo – e às vezes em cativeiro – a fim de fornecer um suprimento confiável de mão de obra mal remunerada.

Os últimos, enquanto isso, com a ajuda de seus representantes conservadores, utilizam a ameaça fabricada dos migrantes para estimular a xenofobia e a intolerância, a fim de dividir e explorar a classe trabalhadora ainda mais.

Blefe e fanfarronice

Em vez de lidar com essa exploração horrível, os Conservadores estão muito mais preocupados em incitar o patriotismo e o conflito armado com a França, a fim de distrair a atenção de sua própria corrupção e crimes.

Boris Johnson chorou lágrimas de crocodilo por causa da tragédia no Canal da Mancha. Sua primeira resposta foi pedir uma relação de trabalho mais estreita com os franceses.

Boris Johnson chorou lágrimas de crocodilo pela tragédia no Canal / Imagem: Number 10, Flickr
O que é necessário, disse o primeiro-ministro inicialmente, é erradicar essas pessoas que estão “literalmente escapando impunes do crime de assassinato” – um pouco exagerado, talvez, vindo de um homem com sangue nas mãos quando se trata da catástrofe da Covid-19 na Grã-Bretanha.

Como era de se esperar, essas palavras solenes se tornaram realidade em questão de dias. Em vez da habitual manobra diplomática a portas fechadas, longe dos olhos do público, Johnson decidiu tweetar sua resposta a Macron, apresentando-se ante uma audiência de membros conservadores e parlamentares nacionalistas.

Deixando de lado todo o blefe e fanfarronice, a posição de Johnson é essencialmente que os franceses deveriam retomar “seus” migrantes; controlar a crise; e impedir que isso aconteça novamente.

Nada disso está sendo dito e feito pelo líder conservador por qualquer cuidado ou compaixão para com os refugiados sofredores, mas como uma tentativa cínica e oportunista de apaziguar a ala Brexiteer [a favor da saída do Reino Unido da União Europeia, NdT.] de seu partido desferindo um golpe contra líderes europeus proeminentes.

Ficando “sério”

Macron pediu a Johnson que fosse “sério” e parasse de politizar isso para ganho doméstico. Mas não é exatamente isso que significa “diplomacia” entre os países capitalistas? Palavras sérias são guardadas para as cúpulas, seguidas de acusações para o público em casa.

Nem é preciso dizer que esses confrontos em nada ajudam os que estão presos em Calais ou se afogando no Canal da Mancha. Nenhum dos governos reacionários está disposto a assumir a responsabilidade, com o ministro do Interior francês chegando a dizer que a Grã-Bretanha deve se tornar “menos atraente economicamente” para aqueles que estão arriscando a jornada!

O relacionamento já tenso entre o Reino Unido e a França foi de mal a pior. De disputas de pesca e guerras comerciais ao pacto militar Aukus1, que excluiu Macron, as tensões estão aumentando.

Os políticos capitalistas de ambos os lados demonstraram sua impotência e incapacidade de fazer qualquer coisa em relação à crise migratória. Eles não podem resolver a crise com medidas repressivas, que apenas tornaram os caminhos mais perigosos. A única coisa em que podem concordar é que o outro deve fazer mais.

Rufando os tambores

Após o Brexit, a Grã-Bretanha deixou para trás a convenção de Dublin, que assegurava que os solicitantes de asilo fossem processados no país em que pisaram pela primeira vez.

Mas isso não é suficiente para os conservadores Brexiteers, que estão furiosos porque o Reino Unido não conseguiu “retomar o controle” de suas fronteiras desde que deixou a União Europeia.

Na verdade, tem havido rumores entre os deputados conservadores sobre acabar com a Lei dos Direitos Humanos de uma vez. O secretário de Justiça, Dominic Raab, por exemplo, disse no passado: “Eu não apoio a Lei dos Direitos Humanos e não acredito em direitos econômicos e sociais”.

Priti Patel – antes de ser excluída das discussões – informou recentemente ao Parlamento que a Força de Fronteira do Reino Unido estava pronta e esperando para dar a volta aos barcos vindos da França.

Como apontou o secretário-geral do PCS, Mark Swerotka, isso equivale a uma ameaça de violação do direito internacional.

Bravatas reacionárias

Tudo isso serve de combustível para os reacionários raivosos que assumiram o Partido Conservador. As atitudes estreitas e os interesses dos partidários mais duros do Brexit atingiram seu apogeu nessa questão.

Uma dessas figuras, o membro do parlamento Edward Leigh, de Gainsborough, sugeriu que já é o suficiente e que se quisermos “retomar o controle”, devemos ter centros de processamento offshore na França.

Outro, Julian Lewis, parlamentar Conservador de New Forest East, parece pensar que as ações daqueles que morreram são repreensíveis: refugiados decentes deveriam esperar sua vez, em vez de entrar na fila!

Para esses salivantes malandros e vigaristas, embriagados por suas pequenas ilusões inglesas, a liderança conservadora está se debatendo em uma de suas políticas principais: retomar o controle. Eles estão indignados com o fato de que o fechamento das fronteiras da Grã-Bretanha possa se tornar mais uma das promessas quebradas de Boris.

Mas os conservadores não podem “retomar o controle”. A crise dos migrantes tende a piorar.

O imperialismo belicista que essas damas e cavalheiros representam; a iminente catástrofe climática que o capitalismo está alimentando; e a dependência dos patrões de mão de obra migrante superexplorada em prol de maiores lucros: tudo isso garante que outros milhões sejam deslocados de suas casas, que o tráfico continue e que mais cadáveres sejam lançados nas costas da Grã-Bretanha e da Europa.

Revolução socialista

As tentativas dos conservadores de fingir choque e consternação com este desastre se esgotaram. Muitas pessoas comuns estão começando a perceber que não há uma resposta “séria” que possa ser oferecida por esses representantes políticos da classe dominante.

Extorquidos por traficantes, vendidos por falsas promessas e depois amontoados em barcos improvisados, essa última tragédia no Canal da Mancha era inteiramente previsível.

Depois de fugir de países dilacerados pela guerra, milhões chegam à Fortaleza Europa: a terra dos acampamentos em guetos, ambientes hostis e redes criminosas endurecidas.

Esses eventos terríveis validam ainda mais a afirmação de Lenin de que o capitalismo é “horror sem fim”.

Essas calamidades só podem ser evitadas eliminando o capitalismo e o imperialismo. Somente por meio da revolução socialista internacional podemos derrubar as fronteiras, deter a miséria que os migrantes e refugiados enfrentam e acabar com o conflito, o caos e a desestabilização que são responsáveis ​​por essa agonia e barbárie global.

Nota:

1 Pacto militar de segurança no Indo-Pacífico, anunciado por EUA, Reino Unido e Austrália, tendo como principal objetivo conter o avanço da China na região.

TRADUÇÃO DE FABIANLO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM