Mais de duas mil mortes por dia em decorrência da pandemia do novo coronavírus, número de desempregados superando os recordes sinistros estabelecidos na grande crise de 1929, um sistema partidário que perde apoio mesmo entre suas bases mais tradicionais e um presidente que, além de contrariar abertamente a ciência, nunca perde uma oportunidade de dar uma declaração constrangedora e espalhafatosa. Mesmo tendo que lidar com todos esses percalços ao mesmo tempo, a burguesia americana não se esquece de manter os olhos bem abertos para aqueles que enxerga como seus adversários. E, no continente americano, a situação que mais incomoda Washington é a que se vê na Venezuela.
Para recolocar o país sul-americano sob seu controle direto, os estrategistas ianques jamais mediram esforços. Além de tentativas de golpe, imposição de sanções e isolamento regional, o governo dos EUA segue apoiando o famigerado boicote econômico ao governo de Caracas. A escassez de alimentos e outros víveres resultante dessa política criminosa reduziu drasticamente as condições de vida da maior parte dos venezuelanos. Essa e outras iniciativas, como o contínuo apoio ao desmoralizado Juan Guaidó, estão acima de qualquer disputa partidária em Washington, recebendo apoio unânime de republicanos e democratas, mesmo aqueles que se apresentam como “progressistas”. Como se vê, o imperialismo não entrou e jamais entrará em quarentena.
E é justamente no atual momento, quando toda a atenção do mundo está voltada ao impacto do coronavírus, bem como às medidas que podem ser tomadas para combatê-lo, que os imperialistas americanos se aproveitam para tentar desferir mais um golpe no país que é um dos maiores produtores de petróleo do mundo. No começo de abril, Donald Trump anunciou que iria dobrar as forças navais no Caribe e navios seriam posicionados próximos à costa venezuelana. A manobra militar foi apresentada como uma resposta ao crescente conluio entre o regime de Nicolás Maduro e os cartéis de drogas da região, que estariam usando o litoral da Venezuela como ponto de embarque de entorpecentes.
Independente da veracidade da acusação, é mais do que evidente que se trata de mais um pretexto para justificar o aperto do sítio ao povo venezuelano. Se o establishment americano estivesse realmente interessado em coibir o tráfico de drogas em direção ao seu território, deveria começar resolvendo as mazelas sociais e econômicas que arrastam milhões de jovens no seu próprio país para o consumo de drogas pesadas. E mesmo se intervenções externas fossem de fato úteis no combate ao narcotráfico, Washington deveria voltar seus olhos para o governo da Colômbia, talvez seu principal aliado na América do Sul. A produção de cocaína atual, ainda maior do que nos tempos de Pablo Escobar, tem sido utilizada tanto como desculpa para a repressão aos camponeses quanto como forma de enriquecimento fácil da oligarquia que zela pelos interesses americanos no país.
Portanto, uma suposta associação ao tráfico de drogas, ainda que exista em qualquer medida, está longe de ser o real motivo por detrás das ações de Washington. O imperialismo americano investe mais uma vez contra a Venezuela porque quer destruir o legado de anos de mobilizações populares e conquistas sociais que começaram com a ascensão de Hugo Chavez ao poder em 2003. Seu sucessor, o sindicalista Nicolás Maduro, tem feito de tudo para minar todo o progresso obtido pelas massas venezuelanas nos últimos anos, agindo em prol dos interesses da casta burocrática que representa, atualmente, o grande obstáculo no caminho da revolução. Por seu firme comprometimento com a burocracia do PSUV, que sustenta sua existência na manutenção da ordem burguesa na Venezuela, Maduro termina por prestar uma enorme contribuição às ações do imperialismo contra seu próprio país.
Contudo, a crise existencial do sistema capitalista, que ganhou contornos ainda mais dramáticos com o início da pandemia de Covid-19, mudou todos os fatores da geopolítica internacional, inclusive a capacidade do imperialismo americano de fazer valer seus desejos ao redor do mundo. Os trabalhadores e a juventude norte-americanos estão traumatizados com as recentes e custosas aventuras no Afeganistão e no Iraque e não desejam repetir a experiência, ainda mais no próprio continente. Da mesma forma, o proletariado venezuelano não tardará a concluir que somente uma luta contra toda a ordem capitalista no país, o que inclui Maduro e sua burocracia, pode oferecer uma saída e acabar com o estado de sítio imposto pelo imperialismo e a oligarquia local. Em suma, o desenrolar dos eventos da crise levarão à mesma conclusão nos Estados Unidos, na Venezuela e no resto do mundo: o problema é o capitalismo.