Uma posição marxista sobre o Fundeb

O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) foi amplamente discutido no início do século 21 no Brasil, e continua sendo pauta quando a discussão é sobre a valorização de profissionais e recursos para a educação pública.

Apesar da amplitude do debate em torno deste tema, há muita confusão quanto as origens e engenharia do Fundeb e do real papel dos fundos no âmbito da sociedade capitalista.

O objetivo deste texto é contribuir com a elucidação deste fundo, sua real finalidade e apresentar uma posição marxista sobre essa discussão.

Origens: do Fundef ao Fundeb

A criação do Fundeb está estreitamente conectada ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), criado durante o segundo mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

O Fundef foi instituído nacionalmente a partir de janeiro de 1998. Seria um fundo destinado à manutenção do ensino fundamental e valorização dos profissionais da educação, mesmo sem definir exatamente a abrangência de quem seria valorizado. A receita do Fundef era composta de 15% das seguintes fontes1:

  • Fundo de Participação dos Estados – FPE;
  • Fundo de Participação dos Municípios – FPM;
  • Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS; e
  • Imposto sobre Produtos Industrializados, proporcional às exportações – IPIexp.

Além disso, havia um ressarcimento da União a estados e municípios previsto na L.C. 87/96 e a complementação da União (E.C. 14/96) que deveria garantir R$ 5 bilhões ao ano para o Fundef. Apesar dessa previsão, na prática esse valor alcançou meros 314 milhões de reais anuais2. Também estabelecia que 60% do fundo deveria ser destinado à “valorização dos profissionais da educação”, sem explicar o que isso significa. Afinal, como vimos em 2021, com o também tucano governo de João Doria em São Paulo, os governos podem pagar esses valores via abonos e não reajuste, significando uma perda salarial a longo prazo.

A engenharia do Fundef era problemática em sua raiz. Para começar, excluía qualquer financiamento adicional à educação infantil, ensino médio e Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Além disso, seu funcionamento gerou distorções gigantes. Constatou-se, por exemplo, que 39,3% dos municípios brasileiros recebiam menos do que contribuíam ao Fundef. Ou seja, o fundo era um custo adicional a quase 40% dos municípios brasileiros. Não significava, assim, acréscimo de recursos nestes casos. Ou seja, funcionava de modo a permitir discrepância e impossibilitava qualquer avanço no sentido de ofertar educação pública, gratuita e para todos em todos os níveis no país.

O Fundeb começou a ser discutido ainda no governo FHC, pela bancada petista. Seu objetivo declarado era corrigir as distorções do Fundef, além de ampliá-lo. O novo fundo foi aprovado no fim do primeiro mandato do governo Lula, por meio da E.C. 53 de 19 de dezembro de 2006.

Ocorre que o novo fundo continuava o Fundef em pelo menos 8 pontos:

“(i) a natureza contábil do Fundo; (ii) as contas únicas e específicas com repasses automáticos; (iii) a limitação do Fundo ao âmbito de cada Estado, sem redistribuição de recursos para além das fronteiras estaduais; (iv) a aplicação de diferentes ponderações para etapas e modalidades de ensino e tipos de estabelecimento; (v) o controle social e acompanhamento exercido por conselhos nas três esferas federativas; (vi) a destinação a ações de manutenção e desenvolvimento do ensino na educação básica (artigo 70 da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação); (vii) a possibilidade de retificação dos dados do Censo por demanda dos entes federados; (viii) a complementação da União”.

Também mantiveram em 60% o valor destinado à valorização dos profissionais da educação, assim como a indefinição em relação ao significado disso.

Ou seja, tratava-se de uma suposta tentativa de melhoria de um fundo problemático de financiamento da educação criado no governo tucano. Porém, como explicamos em “Fundeb: o fundo do poço dos reformistas” (artigo que indicamos como leitura complementar a este):

O Fundeb foi criado no governo Lula, mas sua história remete aos primórdios da educação brasileira. Quando a Família Real chega ao Brasil logo cria o Subsídio Literário, primeiro imposto cobrado sob alguns produtos – carne, vinho, vinagre e aguardente – que viria a ser destinado à educação. A coroa necessitava de mão de obra minimamente qualificada para servi-la, mas não queria arcar com esse custo, então criou impostos específicos para isso. Hoje, isso é muito mais variado e confuso, mas a essência permanece a mesma”.

Da mesma, forma, essa nova roupagem trazias algumas diferenças, porém, a “essência permanecia”. Apesar disso, o Fundeb trazia algumas alterações em seu formato relação ao Fundef, das quais destacamos as centrais:

  • Adicionava impostos que constituiriam o fundo: IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores), ITCM (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis) e ITR (Imposto Territorial Rural).
  • Aumento da alíquota sobre os impostos para 20%.
  • Complementação da União: deveria atingir 4,5 bilhões de reais em 3 anos, até alcançar o mínimo 10% do valor total que comporia o fundo.
  • Fundo com duração de 14 anos.
  • O fundo passou a ser destinado a toda a educação básica presencial (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio) e redes conveniadas (creches, pré-escola e educação especial).
  • Previsão da aprovação do Piso Nacional do Magistério até 30 de agosto de 2007, sendo somente aprovado em 16 de julho de 2008.

De 2007 a 2010 o Fundeb gerou os seguintes percentuais em termos de aumento de recursos2:

  • Educação Básica: 39,71%;
  • Educação Infantil: 27,10%;
  • Ensino Fundamental – Anos iniciais: 43,25%;
  • Ensino Fundamental – Anos finais: 39,15%;
  • Ensino Médio: 44,02%.

Também houve de fato a criação do piso nacional do magistério, embora corriqueiramente desrespeitado em estado e municípios brasileiros e surgido já muito abaixo do valor necessário à composição de renda familiar brasileira.

É importante ressaltar, da mesma forma, que os valores acrescidos não o foram exclusivamente às escolas públicas e que não garantiam o pleno acesso aos estudantes de modo igualitário em todo o país. Também é necessário constatar que, se o Fundef era destinado somente ao Ensino Fundamental, o Fundeb diluiu os valores já insuficientes em toda a educação básica. E isso diminuiu o valor potencialmente investido em cada segmento. Isso certamente frustrou a expectativa dos setores mais iludidos nessa iniciativa, vista como a salvação da educação pública brasileira por alguns.

Para ilustrar o que estamos dizendo, de 2007 a 2010, em termos de dinâmica de matrículas, a educação básica apresentou estagnação da oferta de matrículas. Embora com ligeiro avanço na educação infantil. Inclusive, no Ensino Fundamental houve queda do número de matrículas. Ou seja, em uma situação em que há crescimento populacional e, portanto, com mais demanda, a verba do Fundeb em 3 anos não representou auxílio significativo para sanar a necessidade de vagas ou mesmo de política de inclusão de crianças e adolescentes nas escolas. E isso não mudou quando foram alcançados os 10% de complementação da União.

Precatórios

Apesar do relativo aumento de recursos do período, é importante constatar que no primeiro mandato do governo Lula, assim como no segundo do governo FHC, a marca da União foi a dívida para com os fundos que eles próprios criaram ou mantiveram.

Para termos uma ideia, os governos FHC e Lula deixaram de cumprir um artigo da Lei 9.424 do Fundef, o que significou um não investimento de R$ 12,7 bilhões obrigatórios ao governo FHC (1998 a 2002) e mais cerca de R$ 20 bilhões de 2003 a 2006. Ou seja, os governos FHC e Lula ao não cumprirem essa lei deixaram de repassar ao Fundef mais de R$ 32 bilhões3.

Em tempos de discussões sobre os precatórios, (dívidas reconhecidas juridicamente pelo poder público em qualquer esfera) aqui é central constatar que a política de financiamento de serviços públicos via fundos, como o Fundeb, sempre resulta na manutenção e fortalecimento do próprio sistema. É a manutenção de uma escola capitalista orientada aos interesses da classe dominante e que nunca suprirá as reais necessidade da juventude e da classe trabalhadora por pleno acesso aos conhecimentos historicamente construídos pela humanidade. Como vemos, tanto o Fundef, quanto o Fundeb, mesmo prevendo valores absolutamente insuficientes ao desenvolvimento da educação pública brasileira, ainda assim não são respeitados.

A discussão em torno dos precatórios do FUNDEF/FUNDEB revela o problema intrínseco dessa forma de financiamento de serviços públicos: atende sobretudo a interesses dos governantes, servindo de barganha política aos representantes burgueses quanto ao orçamento e alinha-se à lógica desse sistema, o que, portanto, não é uma forma de superá-lo, mas de manter a situação atual das coisas. Atendem a interesses de governos e não garantem os investimentos prometidos, por menor que sejam. O exemplo está aí: mais de 24 anos de dívidas dos governos para com a educação públicas, e isso na casa das dezenas de bilhões de reais.

O que muda com o Novo Fundeb?

O Novo Fundeb foi aprovado em agosto de 2020, por meio da E.C. 108/2020. Compreendemos que a engenharia fundamental que predomina desde o Fundef se mantém. Contudo, agora altera a legislação antiga em pelo menos quatro pontos4:

  • Aumento do percentual da complementação da União de 10% para 23%, por meio de elevação gradual até 2026.
  • Torna o Fundeb permanente.
  • Destinação de 70% do valor do Fundeb para valorização dos profissionais da educação, ainda sem definir o que isso significa na prática (Reajuste? Abono?).
  • Redistribuição do ICMS dos estados aos municípios.

O novo fundo prevê assim, algum incremento relativo e potencial de verbas à educação pública. Porém, cobre a cabeça descobrindo os pés, como vemos no caso do ICMS. E nada garante que os objetivos anunciados serão cumpridos, como já ocorreu anteriormente, em que a União deve até hoje à educação pública brasileira.

Contudo, em linhas gerais, será agora o Novo Fundeb permanente a salvação da educação pública brasileira? Quanto a isso, somos taxativos: de modo algum.

Qual a posição marxista?

Setores majoritários dos partidos de esquerda no Brasil comemoraram a aprovação do novo Fundeb. Contudo, isso só representa sua adaptação ao Estado burguês e o abandono de qualquer perspectiva de superação da sociedade capitalista.

Os marxistas são contra qualquer tipo de fundo como forma de sanar as necessidades dos serviços públicos. O que é necessário são políticas de reestruturação total que garantam serviços públicos, gratuitos e para todos. E isso não pode ser feito nos marcos do Estado burguês, sob suas leis que são, geralmente, orientadas à reprodução e manutenção do próprio estado capitalista.

O novo Fundeb mantém a engenharia problemática oriunda já de sua versão anterior. Continua não definindo claramente quem são os “profissionais da educação” que devem ser valorizados e como; mantém uma política de divisão da verba entre estados e municípios que favorece todo tipo de artifício com vistas ao aumento do número de matrícula, sem necessariamente reverter a verba recebida para a melhoria da educação básica. Esta pode ir, como está ocorrendo de modo acelerado na educação infantil, para financiamento de empresas terceirizadas. Ou seja, o Fundeb acaba financiando a privatização da educação pública!

Sobre a suposta valorização da educação, é preciso ir aos dados. De acordo com a OCDE (dados de 2020), o valor investido por estudante no Brasil, da educação básica ao ensino superior é de US$ 4.661,00, enquanto a média dos países da OCDE é US$ 11.2005. E mesmo a média geral da entidade é ainda assim considerada baixa e insuficiente para proporcionar uma educação pública que garanta as necessidades de desenvolvimento humano. Esse é o resultado do Fundef e posteriormente do Fundeb. E quanto ao “novo” fundo, não podemos esperar que nada mude. Ou seja, em 2026, caso a lei seja cumprida, e isso nunca é uma garantia, ainda assim a educação pública seria incapaz de proporcionar acesso pleno da educação básica ao ensino superior no Brasil.

A solução para a educação pública e para qualquer serviço público perpassa necessariamente pelo enfrentamento e superação da sociedade capitalista. Argumentos no sentido de melhoria ou modificação da engenharia do Fundeb são inócuos. Nessa sociedade, quem determina para onde vão e como serão investidas as verbas em fundos ou não é o capital financeiro internacional. Não é à toa que cerca de 40% do nosso orçamento seja destinado ao pagamento da fraudulenta dívida pública federal. E o mesmo ocorre em níveis estadual e municipal. Está aí a real fonte de recursos para transformar a educação pública, e não contando com algumas dezenas de bilhões, mas com centenas anualmente.

É preciso uma política de redefinição completa dos serviços públicos brasileiros, garantidos em sua gratuidade, acesso universal e excelência. Porém, na sociedade capitalista, ainda mais em um país dominado como o Brasil, não há atalhos ou soluções mágicas. Sob o capitalismo o foco é expropriação da riqueza produzida pelo conjunto da classe trabalhadora para a reprodução do próprio domínio capitalista. Dessa forma, de acordo com as leis inerentes a essa sociedade, serviço público é custo. Ao passo que em uma sociedade controlada por e para os trabalhadores, este custo significaria qualidade de vida e desenvolvimento humano a toda população.

Assim, é necessário almejar um sistema educação nacional que garanta acesso gratuito e universal da educação infantil até o ensino superior. E isso não pode ser realizado via fundos como o Fundeb. É preciso combater o sistema capitalista se queremos apresentar qualquer perspectiva de mudança real pública. É preciso ter como objetivo a revolução socialista como única saída não só para os serviços públicos, mas para o desenvolvimento do conjunto da humanidade.

Referências:

1FUNDEF FUNDO DE MANUTENÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO ENSINO FUNDAMENTAL E DE VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO. Manual de orientação do MEC. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/mo.pdf. Acesso em: 16 de março de 2022.

2 – DANIELLE CRISTINA DE BRITO MENDES. FUNDEB: Avanços e limites no financiamento da educação. 2010.

3 – NICHOLAS DAVIES. FUNDEB: a redenção da educação básica? 2006.

4 – NOVO FUNDEB SERÁ MAIOR E TERÁ CARÁTER PERMANENTE. Senado Notícias. 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/08/25/novo-fundeb-sera-maior-e-tera-carater-permanente. Acesso em: 16 de março de 2022.

5 – OCDE TRAÇA CENÁRIO DESAFIADOR DO FINANCIAMENTO PÚBLICO DA EDUCAÇÃO NO BRASIL E NO MUNDO. Observatório de educação. Disponível em: https://observatoriodeeducacao.institutounibanco.org.br/em-debate/conteudo-multimidia/detalhe/ocde-traca-cenario-desafiador-do-financiamento-publico-da-educacao-no-brasil-e-no-mundo. Acesso em: 16 de março de 2022.