Hoje, no aniversário de 37 anos da Revolução dos Cravos, prestamos nossa homenagem ao grande compositor e cantor português que foi autor da canção cuja transmissão no rádio foi utilizada como senha para o início da mobilização em 25 de abril de 1974.
José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasceu a 2 de Agosto de 1929, em Aveiro. Seus pais, (o juiz José Nepomuceno Afonso e Maria das Dores) mudam-se para Angola já no ano seguinte e Zeca permanece em Aveiro por motivos de saúde, sendo criado por seu tio Xico, um republicano anticlerical e anti-sionista.
Vai para Angola aos três anos por insistência da mãe, mas retorna a Aveiro três anos depois.
Em 1940 se muda para Coimbra, para ingressar no Liceu D. João III. Por volta de 1945 já é conhecido como “bicho-cantor”, pela sua vida boêmia a cantar fados tradicionais de Coimbra. Conclui o Liceu em 1948 e conhece Maria Amália de Oliveira, uma costureira de origem humilde.
Casaria com ela em segredo, uma vez que seus pais desaprovavam a união.
No ano de 1953 trabalha como revisor no Diário de Coimbra e lança seus dois primeiros discos, de 78 rotações com fados de Coimbra, lançados pela gravadora Alvorada. Ambos foram gravados no Emissor Regional de Coimbra da Emissora Nacional. Inicia, no mesmo ano, serviço militar obrigatório até 1955, em Mafra. É deslocado para Macau, mas acaba dispensado por motivos de saúde, sendo colocado num quartel em Coimbra.
Sofre dificuldades econômicas que se refletem em uma crise conjugal. Findo o serviço militar, possuía já dois filhos, José Manuel e Helena (nascidos em 1953 e 1954 respectivamente).
Concluiu em 1963 o curso na Faculdade de Letras de Coimbra com uma tese sobre Jean-Paul Sartre: “Implicações Substancialistas na Filosofia Sartriana”.
Lecionou em colégio privado em Mangualde de 1955 a 1956. Ainda em 1956 edita o seu primeiro EP, Fados de Coimbra (o EP era um disco em vinil, que continha menos músicas que o LP, embora o formato fosse o mesmo, raro no Brasil, era muito popular na Europa e EUA, pelo seu custo menor). De 1956 a 1957 é professor em Aljustrel e em Lagos. Em 1958 torna-se vocalista do conjunto Ligeiro.
Vai acumulando as carreiras de professor e cantor/compositor e em maio de 1964 atua na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, que inspira sua famosa composição, “Grândola, Vila Morena”, que foi usada como senha para o Movimento das Forças Armadas (MFA) avançar a Lisboa na madrugada de 25 de abril de 1974, dia da revolução dos cravos e imortalizada como canção símbolo da revolução.
Em 1967 é expulso do ensino oficial e convidado a integrar o Partido Comunista Português (PCP), que recusa por conta de sua “condição de classe”. Assina um contrato com a gravadora Orfeu, onde realizará a maior parte de sua obra discográfica. Este contrato lhe garantia pagamento mensal de quinze contos, mas exigia em contrapartida produção anual de pelo menos um LP.
Grava no exterior pela primeira vez em 1970, em Londres. Sem seu costumeiro companheiro Rui Pato, violonista, impedido de viajar pela Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE). Rui foi perseguido pela PIDE, por manter relações com grupos socialistas. Zeca inicia uma modernização estética na canção portuguesa, incorporando instrumentos e timbres até então restritos aos discos de rock.
Em 1971 grava seu álbum “Canções de Maio”, que contém a já citada canção, “Grândola, Vila Morena”. Este disco é gravado nos arredores de Paris e tem a direção musical de José Mário Branco, que fez uso de diversos instrumentos estranhos à tradição musical portuguesa, como o trompete, a flauta e vários instrumentos de percussão. Combinando simplicidade e ousadia, José Mário Branco define a identidade do disco tanto quanto Zeca Afonso. É dele a idéia de que o arranjo de “Grândola, Vila Morena” contivesse apenas passos de botas marcando a pulsação da música, além das vozes, ora de Zeca Afonso em solo, ora do coro clamando a solidariedade da aldeia de Grândola. A quarta faixa deste disco, “Cantar Alentejano” é uma homenagem à camponesa Cataria Eufêmia, assassinada a tiros aos vinte e seis anos por um membro da Guarda Nacional Republicana (GNR) e tornada símbolo da resistência alentejana ao regime de Salazar pelo PCP.
O disco tem as participações do percussionista Michel Delaporte, do contrabaixista Christian Padovan, o trompetista Tony Branis, o flautista Jacques Granier e dos cantores Francisco Fanhais e Carlos Correia, o “Boris”, este também guitarrista, além, é claro, de José Mário Branco. O diretor musical se encontrava exilado na França por conta perseguição política, desde o ano de 1963, e lá permaneceu até 1974, ano da Revolução dos Cravos e do fim da ditadura de Marcelo Caetano.
Em 1972, Zeca lança o disco “Eu Vou Ser Como a Toupeira”, gravado em Madrid, nos Estúdios Cellada, com a participação de Benedicto, um cantor galego seu amigo, e com o apoio dos Aguaviva, de Manolo Diaz.
Em 1973 tem apresentações proibidas pela PIDE/DGS. É preso em Abril e fica em Caxias por 20 dias, até fim de Maio. Na prisão política, escreve o poema “Era um Redondo Vocábulo”:
Era Um Redondo Vocábulo
Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar,
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio,
Congregando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança,
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincando e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa
Ainda em dezembro de 1973, lançaria o álbum “Venham Mais Cinco”, gravado em Paris, mais uma vez em colaboração com José Mário Branco. Na faixa que dá título ao disco, participa Janine de Waleyne, solista do famoso grupo vocal Swingle Singers.
Em 29 de Março de 1974, realizou no Coliseu, de Lisboa, apresentação com outros artistas como Adriano Correia de Oliveira, José Jorge Letria, Manuel Freire, José Barata Moura, Fernando Tordo e outros, que terminou a apresentação com “Grândola, Vila Morena”. Nesta apresentação estavam presentes membros do MFA, que escolhem a música para senha da Revolução.
Lançou em 1975 o disco “Coro dos Tribunais”, gravado em Londres, com arranjos e direção musical de Fausto. Este disco inclui versões de canções brechtianas compostas em Moçambique no período entre 1964 e 1967, “Coro dos Tribunais” e “Eu Marchava de Dia e de Noite (Canta o Comerciante)”.
Entre 1974 a 1975 envolveu-se diretamente nos movimentos populares. Cantou em 11 de Março de 1975 no RALIS para os soldados. Estabeleceu colaboração estreita com o movimento revolucionário LUAR, através de Camilo Mortágua, seu amigo dirigente da organização. A LUAR lançou o compacto “Viva o Poder Popular” com a canção “Foi na Cidade do Sado” no lado B.
Na Itália, é editado o disco “República”, gravado em Roma, pelas organizações revolucionárias Lotta Continua, Il Manifesto e Vanguardia Operaria. O disco era uma campanha financeira para a Comissão de Trabalhadores do jornal República e, uma vez que o jornal foi cancelado, a receita das vendas destinou-se ao Secretariado Provisório das Cooperativas Agrícolas de Alcoentre. Este disco inclui “Para não Dizer que não Falei de Flores” de Geraldo Vandré, compositor brasileiro que foi preso e torturado pela ditadura militar que perdurou no país desde primeiro de abril de 1964 até o ano de 1985.
Em 1976, Zeca apoiou a candidatura presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho, cérebro do 25 de Abril e ex-comandante do COPCON (Comando Operacional do Continente), e o apoiou novamente em 1980. Lançou o disco “Com as Minhas Tamanquinhas”, com participação de Quim Barreiros. Na opinião do conceituado crítico musical português José Niza é “um disco de combate e de denúncia, um grito de alma, um murro na mesa, sincero e exaltado, talvez exagerado se ouvido e lido ao fim de 20 anos, isto é, hoje”.
Lançou em 1978 “Enquanto Há Força”, com Fausto, repleto de críticas anti-colonialistas e anti-imperialistas, e também à Igreja. O álbum inclui as participações do violinista da vanguarda portuguesa Carlos Zíngaro, do flautista Rão Kyao, do compositor e cantor Sérgio Godinho, entre outros.
Em 1979 lança “Fura Fura”, com oito temas de música para teatro, compostos para as peças Zé do Telhado, de A Barraca, e Guerra do Alecrim e Manjerona, da Comuna. Atua em Bruxelas no Festival da Contra-Eurovisão.
Após dois anos de silêncio, lança um disco de “Fados de Coimbra e Outras Canções”.
No ano de 1982 manifestaram-se os primeiros sintomas de uma esclerose lateral amiotrófica. Esta doença é causada por um vírus que se instala na medula espinal e progressivamente, destrói o tecido muscular, conduzindo o doente à morte por asfixia.
Lançou em 1983 “Como se Fora seu Filho, considerado seu testamento político, em colaboração com Júlio Pereira, Janita Salomé, Fausto e José Mário Branco.
Algumas das canções foram escritas para a peça Fernão Mentes? do grupo de teatro A Barraca. Foi publicado, nesse ano ainda, o livro “Textos e Canções”, pela editora Assírio e Alvim.
Recusaria a Medalha de Ouro da Cidade, condecoração atribuída pela cidade de Coimbra, justificando-se com essas palavras: “Não quero converter-me numa instituição, embora me sinta muito comovido e grato pela homenagem”.
Foi reintegrado no ensino oficial em 1983, para dar aulas de História e de Português na Escola
Preparatória de Azeitão. A sua doença então se agravava.
Lançou seu último disco em 1985, “Galinhas do Mato”. Não conseguia mais cantar todas as canções, o que o levou a ser substituído por vários cantores na gravação do mesmo disco.
Em 1986 apoiou a candidatura presidencial de Maria de Lourdes Pintassilgo, católica progressista.
Morreu no dia 23 de Fevereiro de 1987, às 3 horas da madrugada no Hospital de
Setúbal, da esclerose lateral amiotrófica, diagnosticada em 1982. O funeral foi no dia
seguinte, com a presença de mais de 30 mil pessoas, demorou duas horas, percorrendo 1.300 metros.
Símbolo da canção portuguesa, assim como sua composição “Grândola, Vila Morena” foi símbolo da Revolução dos Cravos, Zeca Afonso seria novamente condecorado em 1994, por Mario Soares. Porém sua esposa recusou a condecoração alegando que, se não as desejava em vida, não haveria de recebê-las depois da morte.
A Esquerda Marxista presta homenagem a este grande artista português, cuja obra é indubitavelmente patrimônio de toda a humanidade, no mês comemorativo dos 37 anos da Revolução dos Cravos de Portugal.
Zeca Afonso “Canta camarada, canta”: