Desde o início da pandemia do coronavírus, que mata diariamente milhares de pessoas em todo o mundo, para a burguesia não importam as vidas perdidas pela classe trabalhadora, desde que consiga manter seus lucros. Neste mesmo contexto, para uma parcela das classes médias o isolamento social parece ter se tornado um profundo sofrimento, afinal esses setores sempre se mostraram ávidos pela reabertura de shoppings e bares, sem preocupações relacionadas às aglomerações ou ao espalhamento do vírus. O importante é manter seus hábitos de consumo, sem se importar com os mortos deixados pelo caminho.
O príncipe Próspero, personagem criado pelo escritor norte-americano Edgar Allan Poe e adaptado para o cinema pelo diretor Roger Corman (assista ao filme aqui), talvez seja a figura que melhor representa esse comportamento da burguesia e de parte da classe média.[1] Próspero, diante de uma peste que assolava o país, se comportou de modo muito semelhante, preocupando-se apenas com sua riqueza e sua diversão.
No começo do filme, ao visitar uma vila de camponeses, de cuja produção havia se apropriado, deixando apenas migalhas, o príncipe se surpreende com o fato de a peste estar tão próxima de sua região. Próspero, diante da resistência dos camponeses, que o confrontam, queima a vila. Para ele não importa quem vive ou quem morre, desde que possa manter seus ganhos e regalias.
O desprezo à vida manifesto por Próspero também se evidencia quando, mesmo diante das mortes que se espalham por todos os lugares, chama uma grande festa, prometendo aos convidados a proteção de que precisam, garantindo que estarão a salvo da morte rubra, como era chamada a peste. O acesso é permitido apenas aos ricos e nobres de seu convívio, numa postura de zombaria à situação vivida pelo povo. Diante do avanço da peste, sobreviventes da vila incendiada se aproximam do castelo de Próspero e pedem proteção, que lhes é negada. Além de serem impedidos de entrar e buscar abrigo, os camponeses são mortos pelos soldados do príncipe.
Embora com suas particularidades, a história mostrada no filme não é muito diferente da realidade do Brasil. Sem as condições mínimas para sua sobrevivência, os mais pobres adoecem e se acumulam em hospitais com pouca estrutura para atender a todos. Os milhares de cadáveres, dia após dia, se tornam uma fria estatística diante do avanço da doença e das mortes. Os trabalhadores, diante da ofensiva da burguesia contra seus direitos, não encontram nenhum apoio no Estado, que se limita a pagar um auxílio emergencial que, além de pouco ajudar em sua sobrevivência, não tem sido acessível a todos que dele necessitam.
Enquanto o número de mortes, a burguesia e uma parcela da classe média defendem o fim do isolamento social, a reabertura de escolas, e o retorno a uma vida normal, possível apenas para quem ignora os acontecimentos vividos nos últimos meses e não sofreu as consequências da pandemia. Com isso, bares e shoppings são reabertos, com clientes circulando e se aglomerando em mesas; festas privadas ocorrem sem que as mais básicas recomendações de cuidados sejam respeitadas. Para a burguesia e setores da classe média a festa, literalmente, não para; basta fazer testes periódicos — e exigir o uso de máscaras pelos trabalhadores que lhes servem — para que a vida possa seguir normalmente.
No filme, Próspero acreditava que a peste não poderia adentrar as paredes de seu protegido castelo, pois os muros e os guardas garantiriam sua segurança. A burguesia e parte da classe média parecem acreditar em algo parecido com isso, como se estivessem imunes e que a doença contaminasse apenas os mais pobres. Com isso, não apenas contaminam a si mesmo ou seus familiares, como fazem o vírus circular por onde andam. Contudo, se ficarem doentes, não serão esses setores a sofrer com leitos lotados, profissionais de saúde sobrecarregados de trabalho e escassez de equipamentos e remédios no setor público de saúde.
Próspero, no filme, viu a peste adentrar pelas paredes de seu castelo. Para sua surpresa, ela tinha o seu rosto. Talvez um dia a burguesia e os segmentos da classe média ávidos por consumo se olhem no espelho e vejam a tragédia da qual são cúmplices. E serão os trabalhadores a mostrar isso para seus exploradores.
[1] O filme “The Masque of the Red Death” (1964), dirigido por Roger Corman, é uma das dezenas de parcerias entre o diretor e o ator Vincent Price na adaptação de contos e poemas de Edgar Allan Poe, que incluem filmes como “O poço e o pêndulo” (1961), “O corvo” (1963), entre outros. No Brasil, o filme foi lançado em diferentes ocasiões, com os títulos “A Máscara Mortal” e “A Orgia da Morte”. O conto, que possui inúmeras edições no Brasil, foi publicado originalmente em 1842.