Foto: Banco Central

A nota de R$200 e a inflação (parte 2)

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 14, de 03 de setembro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

Na última edição, exploramos algumas das teorias mais proeminentes entre os economistas burgueses para explicar o papel da moeda e dos preços no capitalismo. Enquanto estes concentram-se em explicar as coisas a partir da sua superfície e com o objetivo de atuar como bombeiros frente aos incêndios da qual não conhecem a causa, a teoria do valor-trabalho em Marx e do papel e funções do dinheiro nos oferecem uma compreensão que vai até a raiz do funcionamento da sociedade capitalista, explorando suas contradições para que, efetivamente, possamos superar esse sistema.

Não é só o trabalho que cria valor, mas é o trabalho socialmente necessário

A teoria do valor em Marx tem como base uma concepção materialista da história, que explica que “o momento determinante na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata e que a ordem social em que vivem os membros de determinada época ou país está condicionada por dois modos de produção: o grau de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e da família, de outro” (Engels, “Origem da família, da propriedade privada e do Estado”, p. 18),

O ponto de partida para Marx compreender o funcionamento do modo de produção capitalista se baseava em compreender algumas perguntas de seus precursores: “o que determina a relação de troca entre mercadorias diferentes? Por que uma certa quantidade de uma mercadoria particular se trocaria por uma certa quantidade de qualquer outra mercadoria? Em outras palavras, qual é a fonte do valor?“.

Ele, assim como os clássicos, chega à resposta de que o trabalho é a fonte do valor, tanto o trabalho vivo que é adicionado ao produto pelo trabalhador como o trabalho morto que se corporifica nas matérias-primas, nas ferramentas utilizadas. Essa formulação estava em David Ricardo como trabalho presente e trabalho passado. No entanto, Marx compreende a questão desde um ponto de vista social e não individual como era visto por Adam Smith e Ricardo. Enquanto o primeiro falava de um trabalho comandado e o segundo falava do trabalho necessário incorporado, ambos desde um ponto de vista individual, Marx aponta que a fonte de valor é dada pelo trabalho socialmente necessário e sua unidade de medida, o tempo. Então, o tempo de trabalho socialmente necessário é a fonte do valor.

“Tempo de trabalho socialmente necessário é o tempo de trabalho requerido para se produzir um valor-de-uso qualquer, nas condições de produção socialmente normais, existentes, e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho.” (Marx, “O Capital”, p. 46)

O valor de um bem, ou seja, o trabalho socialmente necessário para a produção desse bem, não é uma qualidade natural ou física da mercadoria. Esse trabalho é pensado e explicado em termos médios e sob a perspectiva do trabalho humano em geral. Na troca não ocorre a troca do trabalho de um sapateiro e de um agricultor. Assim a objeção feita pelos clássicos de que o “trabalho de um preguiçoso” gera mais valor, pois gasta mais horas para produzir, é respondida, uma vez que não é somente o trabalho que cria valor, mas a média de trabalho socialmente necessário para produzir, sob condições médias e ao nível da técnica existente (Marx, “O Capital”, p. 46).

A teoria marxista dos preços

O preço é uma expressão distorcida do valor. Portanto, precisamos compreender por que meios o valor se converte em preço e para isso é preciso investigar as funções do dinheiro, pelas quais o preço é corporificado. Marx, para simplificar, pressupõe como mercadoria monetária (dinheiro) o ouro, que assume a função de medida de valor, como sendo “a necessária manifestação da medida imanente do valor das mercadorias: o tempo de trabalho” (Marx, “O Capital”, p. 87).

O dinheiro assumindo a função de medida de valor é a encarnação social do trabalho humano e serve para transformar os valores das variadas mercadorias em preço. Como equivalente geral para as trocas entre as mercadorias, o dinheiro num dado momento histórico passou a se encarnar em metais preciosos e nessa forma assumiu uma segunda função, padrão dos preços para medir as quantidades de ouro imaginário a que é convertido o valor das mercadorias em preço. Mas o próprio ouro somente pôde servir como medida de valores porque ele próprio era produto do trabalho humano, sendo assim um valor potencialmente variável. O dinheiro com lastro em ouro sofreu uma grande mudança com a quebra da bolsa em 1929. Com o fim do acordo de Breton Woods em 1971, os EUA decidiram unilateralmente a inconversibilidade do dólar em ouro. Esse é um assunto para explorar em outro artigo.

Voltando à determinação dos preços, é do ponto de vista da teoria do valor-trabalho que decorre a teoria dos preços dentro da perspectiva marxista. Se uma mercadoria contém trabalho socialmente necessário ou não, isso se revelará na troca, quando as mercadorias são vendidas ou rejeitadas no mercado. Se a mercadoria posta no mercado exigiu mais tempo para ser produzida que o tempo médio, então esse sobretrabalho é inútil e a concorrência obrigará o capitalista a baixar os preços ao nível do custo da média social.

As mudanças no nível de preço se assentam em torno do eixo que cobre os custos de produção e a uma determinada taxa de lucro. À medida que um capitalista consegue produzir uma mercadoria abaixo do preço padrão, através da redução do custo de produção, então ele será capaz de vender mais mercadorias de forma mais barata e realizar superlucros. Quando isso ocorre, o preço cai a um novo nível para corresponder com o novo tempo de trabalho socialmente necessário. Com as mercadorias sendo produzidas em menos tempo, também contêm menos valor, reduzindo o custo e o preço.

“Os preços das mercadorias só podem subir generalizadamente, permanecendo igual o valor do dinheiro se os valores das mercadorias sobem; e permanecendo iguais os valores das mercadorias se cai o valor do dinheiro. E vice-versa. (…) Não segue daí, de modo algum, que uma subida no valor do dinheiro acarreta uma queda proporcional dos preços das mercadorias, e uma queda do valor do dinheiro, uma subida proporcional dos preços das mercadorias.” (Marx, “O Capital”, p. 90)

De acordo com as concepções marxistas, quanto menor o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma mercadoria, menor será seu custo de produção, menor seu valor e menor seu preço. Sendo o dinheiro uma mercadoria como qualquer outra, essa lei também se aplica a ela. Então, se ocorre uma redução do custo de produção do dinheiro, o seu valor deveria se reduzir e se o valor se reduz, então uma elevação generalizada dos preços (a inflação) só poderia ocorrer no caso em que os valores das mercadorias permanecem os mesmos. Sendo assim, a redução do custo de produção do dinheiro com a nova nota de R$200 somente poderia promover um aumento generalizado dos preços na economia caso as mercadorias permanecessem com o mesmo valor. Isso porque o valor do dinheiro sendo menor e o valor das mercadorias constante, significa que teríamos que usar mais dinheiro para comprar a mesma mercadoria.

No Brasil, o IBGE mede a inflação com dois índices: o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) e o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), onde o primeiro aponta o custo médio de vida de famílias com renda entre 1 e 40 salários mínimos e o INPC aponta apenas o custo de vida médio de famílias com renda mensal entre 1 e 5 salários mínimos. O IPCA acumulado de 12 meses (jul/2020) foi de 2,31%. Ainda que considerada pequena, houve uma variação no valor e, portanto, nos preços das mercadorias, o que indica que, mesmo com menor valor do dinheiro, nesse sentido e por essa via, não é possível afirmar que há um processo de inflação em curso.

No entanto, ainda há que diferenciar o valor do dinheiro do ponto de vista bancário, isto é, monetário (dado pelo custo de impressão das novas notas) e o valor do dinheiro do ponto de vista real (dado pelo mercado mundial e pelo câmbio). Do lado real da economia, temos um processo acelerado de desvalorização do real frente ao dólar, isso sim pode provocar elevação dos preços na economia. É aqui que realmente é determinado o “valor do dinheiro”, dado que o custo de produção da nova nota é realmente muito baixo, cerca de R$5,46 por cada nota (450 milhões de notas de R$200 e 170 milhões de notas de R$100 com custo de R$113,4 milhões).

A produção da nova nota de R$200, muito mais do que gerar “liquidez” na economia, mostra na verdade a decadência do governo atual a partir da evasão fiscal da pequena-burguesia e mais facilidades para negócios ilícitos como tráfico de drogas, corrupção etc.

Se você quer se aprofundar sobre as bases econômicas do marxismo, participe da Universidade Marxista – Brasil. O primeiro módulo começa no dia 05/09 e o segundo, que tratará desse tema, será no dia 19/09.

Fontes:

https://www.marxismo.org.br/o-que-e-valor/

https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao.php

https://www.cliccamaqua.com.br/noticia/56751/nota-de-200-reais-producao-da-nota-tera-custo-de-r-113-4-milhoes-para-o-governo.html#:~:text=NOTA%20DE%20200%20REAIS%3A%20Produ%C3%A7%C3%A3o,para%20o%20Governo%20%7C%20Clic%20Camaqu%C3%A3