Bolsa Família, Renda Brasil e as políticas liberais de distribuição de renda

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 16, de 1º de outubro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

Muita polêmica gira em torno da criação do Renda Brasil. Na proposta de orçamento de 2021 enviada pela equipe econômica de Bolsonaro ao Congresso (um verdadeiro orçamento de guerra contra o povo), o Bolsa Família – que, segundo as propostas do governo, será substituído pelo novo programa – ainda foi mantido para 2021.

A equipe econômica de Paulo Guedes buscava uma forma de viabilizar economicamente esse novo programa e a proposta de desvincular benefícios previdenciários do salário mínimo – na prática, congelar aposentadorias e pensões – para financiar o Renda Brasil foi negada.

Hoje, 15,2 milhões de famílias recebem o Bolsa Família e o Renda Brasil precisa de R$ 52 bilhões para ser viável economicamente. Paulo Guedes ainda propôs extinguir outros benefícios, como o abono salarial, o seguro-defesa (para pescadores) e a Farmácia Popular, mas essas propostas também foram negadas e as fontes para financiar o programa se restringiram, inviabilizando que ele já fosse inserido à proposta de orçamento de 2021.

Embora exista toda essa polêmica sobre a extinção do Bolsa Família, ele e o Renda Brasil não são essencialmente diferentes. Como veremos neste artigo, ambos são programas liberais de distribuição de renda.

Eficiência x falhas de mercado e políticas compensatórias

Buscar o “equilíbrio” de mercado é algo bem comum na economia. O jogo de oferta e demanda define preços e quantidades que, em tese, são vistas como eficientes, uma vez que foram definidas pelas regras do mercado. A máxima eficiência nas trocas, segundo essa ideia, ocorre quando a única informação necessária e suficiente é o preço.

“Deixem o mercado agir! Ele fará trocas eficientes e regulará preços e quantidades pelo livre agir dos agentes!”. Esse é o discurso geral dessa gente. No entanto, a própria teoria microeconômica afirma que não é porque as trocas são teoricamente eficientes que elas promovem uma distribuição da renda de maneira igualitária e essa ala da teoria burguesa reconhece a necessidade de um “agente externo” para promover a distribuição igualitária de renda. Então, dentro desse discurso geral, surge um outro que é mais ou menos assim: “O mercado é eficiente, mas é preciso torná-lo mais equitativo!”. Isso levou a teoria a incorporar o conceito de “falhas de mercado” (nome bastante sugestivo) e a desenvolver teorias do “bem-estar” e políticas públicas de fundamentos liberais para corrigir as “falhas de mercado” e promover esse “bem-estar” social.

Há quatro visões de “bem-estar” social ou equidade: a “utilitarista”, que está preocupada com a utilidade total, isto é, o benefício ser maior com menor custo; a “igualitária”, em que todos os membros da sociedade recebem a mesma quantidade de mercadorias; a “rawlsiana”, que maximiza somente a utilidade de quem tem menos posse; e a última, “orientada ao mercado”, é aquela que afirma que o resultado alcançado pelo mercado é o mais equitativo.

Portanto, a teoria liberal econômica, isto é, aquela de que o Estado deve ser mínimo e o mercado deve agir sem amarras, incorpora conceitos de distribuição de renda e justiça social que necessitam da atuação do Estado e que se expressam em políticas públicas compensatórias, que buscam atenuar os efeitos das contradições do capitalismo na vida dos trabalhadores.

É assim que surge o Bolsa Família, um tipo de política pública liberal de distribuição de renda que unifica os conceitos utilitarista e rawlsiano de equidade, isto é, tem por objetivo promover o maior benefício (mais de 15,2 milhões de famílias são atendidas)  com o menor custo (R$29  bilhões em 2020, o que representa menos que 0,5% do orçamento geral) e maximizar a utilidade de quem tem menos, promovendo a chamada “equidade”. Isso através de um programa de distribuição de renda para famílias cuja renda é de até R$89 por pessoa (extrema pobreza) e R$178 por pessoa (linha da pobreza). Ele é um programa liberal porque apenas muda a dotação inicial dos recursos, aumentando-os, mas não direciona o consumo: deixa o “agente” livre para tomar suas decisões de consumo, ou seja, muda a dotação inicial de recursos, mas “deixa o mercado agir”.

A crise capitalista, os reformistas e os marxistas

Do ponto de vista marxista, as coisas emergem da superfície. O capitalismo produz um exército industrial de reserva que pressiona constantemente os salários para baixo, o que é essencial para o capitalismo controlar os níveis de emprego segundo seus interesses. Uma parte desse exército industrial de reserva são os cerca de 30 milhões de desempregados, subocupados ou desalentados, mas a outra parte é aquela que compõe o lumpemproletariado, aqueles que estão na linha da pobreza, da extrema pobreza, os encarcerados e as pessoas em situação de rua que foram empurrados pela crise econômica cada vez mais para a margem do sistema, sem ter acesso sequer ao direito ao emprego.

A crise capitalista, uma crise de superprodução onde a concentração de renda e de capital expressa sua marca no aumento da miséria e da luta pela sobrevivência individual, produz não só efeitos econômicos como efeitos políticos, de acirramento da luta de classes e de aumento geral da insatisfação e da ira dos trabalhadores. Se a classe dominante corta recursos da saúde, ciência e educação pública, como vemos na proposta geral do orçamento de Bolsonaro para 2021, ela também precisa atenuar os conflitos que daí se desdobram e é por isso que vemos um aumento na proposta para o Bolsa Família (que sai dos quase R$30 bilhões para R$34,858 bilhões, um aumento de R$5,37 bilhões).

Essas políticas liberais compensatórias não alteram a existência do capitalismo nem da exploração de classe contra classe. Elas perpetuam essa dominação, pois encontram-se no campo da distribuição e, para os marxistas, não se trata de melhorar a distribuição da “renda”, mas de eliminar a apropriação privada da mais-valia que é produzida coletivamente pelos trabalhadores no processo de produção das riquezas.

A aplicação de uma política liberal compensatória como essa não é algo de se estranhar em um governo ultraliberal como o de Bolsonaro, que visa criar sua marca social com a transformação do Bolsa Família em Renda Brasil. A grande contradição são os partidos de “esquerda” (PT, PCdoB, PSOL etc.) as defenderem em vez de mobilizar e organizar o proletariado para expropriar os capitalistas e pelo controle democrático da produção.

No entanto, mesmo essas políticas têm limites sob o capitalismo e alguém pagará a conta. Elas podem até atenuar os conflitos de classes, mas eles não deixam de existir e explodirão cedo ou tarde, como já temos visto. É tarefa dos marxistas explicar pacientemente, preparar-se teoricamente e engrossar as fileiras do partido revolucionário para que, quando esses conflitos explodirem, possamos estar bem posicionados e levar o proletariado até a vitória com um programa revolucionário que jogue na lata do lixo da história tanto o sistema capitalista como as tentativas de reformá-lo!

Referências:

https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/08/31/orcamento-2021-governo-propoe-aumento-de-quase-20percent-no-bolsa-familia-para-r-3485-bilhoes.ghtml

https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/09/15/cartao-vermelho-de-bolsonaro-no-renda-brasil-nao-foi-para-mim-diz-guedes.htm

https://www.caixa.gov.br/programas-sociais/bolsa-familia/Paginas/default.aspx