Muita polêmica gira em torno da criação do Renda Brasil. Na proposta de orçamento de 2021 enviada pela equipe econômica de Bolsonaro ao Congresso (um verdadeiro orçamento de guerra contra o povo), o Bolsa Família – que, segundo as propostas do governo, será substituído pelo novo programa – ainda foi mantido para 2021.
A equipe econômica de Paulo Guedes buscava uma forma de viabilizar economicamente esse novo programa e a proposta de desvincular benefícios previdenciários do salário mínimo – na prática, congelar aposentadorias e pensões – para financiar o Renda Brasil foi negada.
Hoje, 15,2 milhões de famílias recebem o Bolsa Família e o Renda Brasil precisa de R$ 52 bilhões para ser viável economicamente. Paulo Guedes ainda propôs extinguir outros benefícios, como o abono salarial, o seguro-defesa (para pescadores) e a Farmácia Popular, mas essas propostas também foram negadas e as fontes para financiar o programa se restringiram, inviabilizando que ele já fosse inserido à proposta de orçamento de 2021.
Embora exista toda essa polêmica sobre a extinção do Bolsa Família, ele e o Renda Brasil não são essencialmente diferentes. Como veremos neste artigo, ambos são programas liberais de distribuição de renda.
Eficiência x falhas de mercado e políticas compensatórias
Buscar o “equilíbrio” de mercado é algo bem comum na economia. O jogo de oferta e demanda define preços e quantidades que, em tese, são vistas como eficientes, uma vez que foram definidas pelas regras do mercado. A máxima eficiência nas trocas, segundo essa ideia, ocorre quando a única informação necessária e suficiente é o preço.
“Deixem o mercado agir! Ele fará trocas eficientes e regulará preços e quantidades pelo livre agir dos agentes!”. Esse é o discurso geral dessa gente. No entanto, a própria teoria microeconômica afirma que não é porque as trocas são teoricamente eficientes que elas promovem uma distribuição da renda de maneira igualitária e essa ala da teoria burguesa reconhece a necessidade de um “agente externo” para promover a distribuição igualitária de renda. Então, dentro desse discurso geral, surge um outro que é mais ou menos assim: “O mercado é eficiente, mas é preciso torná-lo mais equitativo!”. Isso levou a teoria a incorporar o conceito de “falhas de mercado” (nome bastante sugestivo) e a desenvolver teorias do “bem-estar” e políticas públicas de fundamentos liberais para corrigir as “falhas de mercado” e promover esse “bem-estar” social.
Há quatro visões de “bem-estar” social ou equidade: a “utilitarista”, que está preocupada com a utilidade total, isto é, o benefício ser maior com menor custo; a “igualitária”, em que todos os membros da sociedade recebem a mesma quantidade de mercadorias; a “rawlsiana”, que maximiza somente a utilidade de quem tem menos posse; e a última, “orientada ao mercado”, é aquela que afirma que o resultado alcançado pelo mercado é o mais equitativo.
Portanto, a teoria liberal econômica, isto é, aquela de que o Estado deve ser mínimo e o mercado deve agir sem amarras, incorpora conceitos de distribuição de renda e justiça social que necessitam da atuação do Estado e que se expressam em políticas públicas compensatórias, que buscam atenuar os efeitos das contradições do capitalismo na vida dos trabalhadores.
É assim que surge o Bolsa Família, um tipo de política pública liberal de distribuição de renda que unifica os conceitos utilitarista e rawlsiano de equidade, isto é, tem por objetivo promover o maior benefício (mais de 15,2 milhões de famílias são atendidas) com o menor custo (R$29 bilhões em 2020, o que representa menos que 0,5% do orçamento geral) e maximizar a utilidade de quem tem menos, promovendo a chamada “equidade”. Isso através de um programa de distribuição de renda para famílias cuja renda é de até R$89 por pessoa (extrema pobreza) e R$178 por pessoa (linha da pobreza). Ele é um programa liberal porque apenas muda a dotação inicial dos recursos, aumentando-os, mas não direciona o consumo: deixa o “agente” livre para tomar suas decisões de consumo, ou seja, muda a dotação inicial de recursos, mas “deixa o mercado agir”.
A crise capitalista, os reformistas e os marxistas
Do ponto de vista marxista, as coisas emergem da superfície. O capitalismo produz um exército industrial de reserva que pressiona constantemente os salários para baixo, o que é essencial para o capitalismo controlar os níveis de emprego segundo seus interesses. Uma parte desse exército industrial de reserva são os cerca de 30 milhões de desempregados, subocupados ou desalentados, mas a outra parte é aquela que compõe o lumpemproletariado, aqueles que estão na linha da pobreza, da extrema pobreza, os encarcerados e as pessoas em situação de rua que foram empurrados pela crise econômica cada vez mais para a margem do sistema, sem ter acesso sequer ao direito ao emprego.
A crise capitalista, uma crise de superprodução onde a concentração de renda e de capital expressa sua marca no aumento da miséria e da luta pela sobrevivência individual, produz não só efeitos econômicos como efeitos políticos, de acirramento da luta de classes e de aumento geral da insatisfação e da ira dos trabalhadores. Se a classe dominante corta recursos da saúde, ciência e educação pública, como vemos na proposta geral do orçamento de Bolsonaro para 2021, ela também precisa atenuar os conflitos que daí se desdobram e é por isso que vemos um aumento na proposta para o Bolsa Família (que sai dos quase R$30 bilhões para R$34,858 bilhões, um aumento de R$5,37 bilhões).
Essas políticas liberais compensatórias não alteram a existência do capitalismo nem da exploração de classe contra classe. Elas perpetuam essa dominação, pois encontram-se no campo da distribuição e, para os marxistas, não se trata de melhorar a distribuição da “renda”, mas de eliminar a apropriação privada da mais-valia que é produzida coletivamente pelos trabalhadores no processo de produção das riquezas.
A aplicação de uma política liberal compensatória como essa não é algo de se estranhar em um governo ultraliberal como o de Bolsonaro, que visa criar sua marca social com a transformação do Bolsa Família em Renda Brasil. A grande contradição são os partidos de “esquerda” (PT, PCdoB, PSOL etc.) as defenderem em vez de mobilizar e organizar o proletariado para expropriar os capitalistas e pelo controle democrático da produção.
No entanto, mesmo essas políticas têm limites sob o capitalismo e alguém pagará a conta. Elas podem até atenuar os conflitos de classes, mas eles não deixam de existir e explodirão cedo ou tarde, como já temos visto. É tarefa dos marxistas explicar pacientemente, preparar-se teoricamente e engrossar as fileiras do partido revolucionário para que, quando esses conflitos explodirem, possamos estar bem posicionados e levar o proletariado até a vitória com um programa revolucionário que jogue na lata do lixo da história tanto o sistema capitalista como as tentativas de reformá-lo!
Referências:
https://www.caixa.gov.br/programas-sociais/bolsa-familia/Paginas/default.aspx