Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky discursa em Cannes

Cannes, Zelensky e a guerra na Ucrânia

Iniciado na terça-feira, dia 17 de maio, o tradicional Festival de Cannes, realizado na França, vem sendo marcado pelo debate sobre a guerra na Ucrânia, expressando as preocupações da burguesia europeia. Durante a abertura do festival foi transmitido o discurso do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, por vídeo, ao vivo de Kiev. Em seu discurso, Zelensky, que teve uma carreira de ator e comediante, fez menção ao filme O Grande Ditador, de 1940, dirigido por Charles Chaplin, que satirizou Adolf Hitler e o nazismo: “O filme não destruiu o verdadeiro ditador na época, mas, graças a ele, o cinema deixou de ser mudo. E em todos os sentidos da palavra. Foi a voz da futura vitória e da liberdade”. E prosseguiu Zelensky: “Como naquela época, uma batalha pela liberdade está sendo travada hoje. E precisamos de um novo Chaplin para mostrar que o cinema não está mudo”. Não resta dúvida de que o demagogo Zelensky se considera um legítimo representante da “liberdade”.

O apoio à Ucrânia em Cannes não parou no discurso de Zelensky. No dia 25, quarta-feira, a equipe do filme ucraniano Butterfly Vision, que participa de uma mostra paralela à competição principal do festival, realizou um protesto, exibindo placas com os dizeres “Russos matam ucranianos. Vocês acham ofensivo e perturbador falar sobre esse genocídio?” O filme mostra o retorno para casa de uma mulher ucraniana que lutou contra separatistas na região do Donbass. O diretor Maksim Nakonechnyi afirmou, antes da exibição do seu filme: “Esse lugar em que estamos, Cannes, é um lugar ideal para fazer esse ato, já que ele nasceu como resposta à censura”. O diretor faz menção ao fato de que o Festival de Cannes, criado no final da década de 1930, com apoio das potências que se opunham à Alemanha e à Itália, se propunha a ser uma alternativa à Coppa Mussolini, premiação realizada na Itália entre 1934 a 1942 e que antecedeu o atualmente chamado Festival de Veneza. Nakonechnyi, ao associar Putin ao fascismo, talvez tenha esquecido que não apenas o governo russo é aliado de organizações de extrema direita, mas o próprio Zelensky.

Durante o festival de Cannes, outro protesto foi realizado por uma mulher anônima, que invadiu o tapete vermelho e ficou parcialmente nua pouco antes da estreia do filme Three Thousand Years of Longing, de George Miller. Ela pintou a bandeira da Ucrânia sobre seu peito e escreveu “parem de nos estuprar”. Além disso, a guerra na Ucrânia foi problematizada em relação ao próprio cinema russo, cuja delegação oficial foi impedidade de comparecer ao festival. Contudo, o filme Zhena Chaikovskogo (“A Esposa de Tchaikovsky”, em tradução livre em português) foi incluído na mostra competitiva de Cannes, o que foi criticado pela diretora Agnieszka Holland, presidente da Academia de Cinema Europeu. Kirill Serebrennikov, diretor do filme, parcialmente financiado pelo oligarca russo Roman Abramovich, se posicionou publicamente contra a guerra na Ucrânia, a ocupação da Rússia à Crimeia em 2014 e aos ataques do governo russo aos direitos LGBTQ+, sendo recentemente exilado na Alemanha. Em Cannes, Serebrennikov defendeu o “não à guerra” e o fim ao boicote cultural contra artistas russos.

A política dos organizadores de Cannes expressa as preocupações da burguesia europeia com a guerra. Poucos dias antes do início do festival, em visita à Alemanha, o presidente da França, Emmanuel Macron, havia afirmado: “A guerra iniciada pela Rússia na Ucrânia tem um impacto profundo em todos nós, em nossos cidadãos, e na Europa”. Na mesma ocasião, o chanceler alemão, o social-democrata Olaf Scholz, declarou: “Não podemos aceitar que as fronteiras europeias sejam modificadas através da violência. Faremos de tudo para garantir que a guerra não se espalhe para outros países, e para reforçar nossas capacidades militares”. O discurso de defesa da Europa contra a invasão russa uniu desde setores da direita até a esmagadora maioria da esquerda.

Contudo, apesar do domínio do discurso oficial em torno à defesa da Ucrânia, setores da esquerda, intelectuais e artistas buscam apresentar uma compreensão mais coerente sobre o processo em curso. Mesmo em Cannes houve alguns momentos de dissenso. Uma desses momentos foi a declaração de Jean-Luc Godard, que disse:

“A intervenção de Zelensky no festival de Cannes é desnecessária se você olhar pelo ângulo do que se chama de ‘encenação’: um mau ator, um comediante profissional, sob o olhar de outros profissionais em suas próprias profissões. Creio ter dito algo nesse sentido há muito tempo. Foi preciso a encenação de mais uma guerra mundial e a ameaça de outra catástrofe para sabermos que Cannes é uma ferramenta de propaganda como qualquer outra”.

Essa fala de Godard, cujo nome está associado ao movimento artístico conhecido como Nouvelle vague, procura romper com o discurso hegemônico na Europa diante da guerra, que não questiona, por exemplo, a responsabilidade da Otan na invasão da Rússia à Ucrânia. O cineasta francês também afirmou: “Não há conflito, grande ou pequeno, a menos que haja interesse. Brutus, Nero, Biden ou Putin, Constantinopla, Iraque ou Ucrânia, não mudou muito, além do assassinato em massa”. Godard visivelmente parece não acreditar na demagogia “humanitária” dos governos norte-americano e europeus.

Outra fala de dissenso no Festival de Cannes partiu do também consagrado David Cronenberg. O diretor canadense, premiado em Cannes em 1996 e que este ano concorre à Palma de Ouro com o filme Crimes of the Future, afirmou: “São tempos estranhos. Falamos sobre Putin e a invasão da Ucrânia, mas ao sul da fronteira canadense temos vibrações que são assustadoramente semelhantes”. De fato, o cinismo do governo norte-americano parece mover as ações hipócritas do imperialismo.

O que vem acontecendo ao longo do Festival de Cannes mostra principalmente a postura da burguesia europeia diante do avanço militar russo sobre a Ucrânia. Mostra, além disso, a tentativa por parte das classes dominantes de construir uma narrativa que coloca os russos como grandes inimigos a serem combatidos e como exemplos de um legado bárbaro vindo do Oriente. Que Putin seja um ditador que usa a guerra para salvar seu governo da crise econômica e política, não resta dúvida, mas o “cancelamento” da cultura russa é algo completamente descabido. Uma análise concreta da conjuntura mostra, entre outras coisas, a fragilidade da economia da Europa, sócia menor do imperialismo norte-americano. Mostra, além disso, a hipocrisia dessa burguesia, que ajuda a difundir a mentira de uma Ucrânia democrática mesmo que, por exemplo, os partidos de esquerda estejam proibidos.

As posições expressas por Godard, ainda que não representem mais a revolta do Maio de 1968, e por Cronenberg, que não mais expressa a politização da “revolução silenciosa” do Canadá do final da década de 1960, escapam da lógica mecanicista vendida tanto pelo imperialismo como pelo governo Putin. Godard, ao falar sobre a “encenação” do Ocidente, e Cronenberg, quando sugere que há semelhanças entre as políticas dos governos norte-americano e russo, estão denunciando a demagógica narrativa construída pelo imperialismo, ao mesmo tempo que evidenciam não haver nada de progressista nas ações de Putin. Godard inclusive ironiza os colegas de Cannes, quando se propõem a usar o festival como espaço de propaganda política para um governo autoritário como o de Zelensky.

O que faltou em Cannes, seja no discurso oficial, seja no dos dissidentes, foi uma saída que aponte no sentido do que fazer para pôr fim à guerra, o que passa pela unidade de ação dos trabalhadores contra a burguesia, seja da Ucrânia, da Rússia ou nos demais países, em especial nos imperialistas. Coloca-se a necessidade de superar as perspectivas que dizem haver um choque entre nações, o que esconde a disputa das diferentes frações da burguesia. Somente os trabalhadores poderão encabeçar esse processo. Os artistas certamente podem contribuir, colocando-se ao lado dos trabalhadores em sua luta pela derrubada do capitalismo e em defesa do internacionalismo. Cabe destacar algumas das palavras de Cronenberg em Cannes: “para mim, toda arte é política ou inatamente política, quer o criador da obra esteja ciente disso ou não”.