No começo de maio, Olivier Besancenot, dirigente do Novo Partido Anticapitalista (NPA), da França, participou, junto a representantes de outros partidos de esquerda da Europa, da delegação organizada pela Rede Europeia de Solidariedade que visitou a Ucrânia. O NPA, principal partido que integra o Secretariado Unificado (SU), organização oportunista criada por Ernest Mandel em 1963 e que há décadas abandonou o trotskismo e a revolução, vem apoiando a “resistência ucraniana” contra o “imperialismo russo”. Sua posição foi resumida assim por Besancenot, em entrevista ao site Viento Sur: “estamos do lado dos oprimidos, nunca do lado dos opressores”.
Esse tipo de posição simplifica o debate sobre a luta de classes e a guerra em curso. Entre os oprimidos defendidos por Besancenot com certeza estão os trabalhadores que sofrem com a guerra e a exploração capitalista. Mas entre esses esses “oprimidos” também estão os membros das milícias nazistas ou o próprio governo de direita encabeçado por Volodymyr Zelensky. Claro que a questão da guerra não se resume ao combate à presença da extrema direita, como sugeriu Putin em uma de suas falsas justificativas para invadir a Ucrânia. Uma posição do ponto de vista da classe trabalhadora, como aquela expressa pela Esquerda Marxista (EM) e pela Corrente Marxista Internacional (CMI), deixou explícito que não é possível apoiar qualquer um dos dois lados nessa guerra, na medida em que se trata da disputa de frações da burguesia na defesa de seus interesses políticos e econômicos particulares. Percebe-se, nesse sentido, um grave equívoco quando o SU, de cuja seção francesa Besancenot é uma das principais figuras públicas, afirma em declaração:
“Diante da guerra na Ucrânia, é responsabilidade de todos os ativistas do movimento trabalhista, dos movimentos sociais e do movimento antiguerra apoiar a resistência da oprimida nação ucraniana. Para acabar com esta guerra, o regime de Putin deve ser sancionado e a Ucrânia deve ser apoiada em sua resistência à agressão”.
Embora não mencione diretamente os organismos internacionais, como a ONU e a OTAN, fica evidente o pedido do SU para que o imperialismo ajude no combate à Rússia. Essa posição também se evidencia quando se defende, no documento do SU, “solidariedade e apoio à resistência armada e desarmada do povo ucraniano. Entrega de armas a pedido do povo ucraniano para combater a invasão russa de seu território”. Ou seja, Besancenot e o SU não apenas defendem as sanções do imperialismo contra a Rússia, como pedem à OTAN que envie armas para a “resistência” ucraniana. Portanto, ainda que eventualmente faça críticas ao imperialismo, o SU se coloca política e militarmente no mesmo lado da OTAN, afirmando, entre outras coisas:
“Nesta guerra, o imperialismo ocidental, representado pela OTAN e pela UE, tomou partido e apoia financeira e materialmente a resistência ucraniana. Isto fortaleceu claramente a resistência e melhorou suas perspectivas”.
Essa posição do SU se baseia na deturpação de uma ideia fundamental do marxismo, ou seja, de defesa das nações dominadas contra o imperialismo. O SU se refere à Rússia como “um regime capitalista oligárquico, autocrático e imperialista”. Não resta dúvida de que Putin encabeça um regime bonapartista em um país onde o capitalismo foi restaurado de forma brutal depois de décadas da desastrosa política stalinista. Contudo, nesse debate sobre a burguesia russa, é preciso levar em conta que:
“A economia russa […] se apoia em serviços (varejo, turismo, seguros, transporte, telecomunicações etc.), e na exportação de commodities (petróleo e derivados, gás natural, metais, madeira e derivados) além de produtos químicos e uma ampla variedade de equipamentos militares. E importa máquinas, veículos, produtos farmacêuticos, plásticos, produtos semielaborados de metal, carne, frutas e sementes, instrumentos ópticos e médicos, ferro, aço etc. Sua maior herança da ex-URSS é o poderoso complexo industrial-militar que lhe permite aparecer ou posar de ‘potência’ mundial ou regional, ao menos”. (Por que Putin atacou a Ucrânia? E qual o papel do imperialismo norte-americano promovendo o caos na Europa?)
Os equívocos teóricos e políticos do SU não são exatamente uma novidade. Nos primeiros anos depois do final da Segunda Guerra, a IV Internacional foi dirigida por Michel Pablo, um dos dirigentes responsáveis por seu esfacelamento. Pablo, Mandel e outros dirigentes defenderam a política conhecida como entrismo sui generis, que propunha aos militantes trotskistas a entrada nos partidos comunistas e até mesmo em movimentos nacionalistas burgueses. Essa política foi justificada a partir da suposta iminência de um aprofundamento da crise do capitalismo que levaria a uma nova guerra e que colocaria em campos opostos o imperialismo e a União Soviética. Contudo, o capitalismo viveu um período de crescimento econômico e as guerras ocorridas ao longo da segunda metade do século tiveram uma abrangência regional. Produto dessa política da direção pablista foi o apoio a movimentos nacionalistas burgueses na Bolívia e no Ceilão, diante de processos de mobilização que poderiam ter levado os trabalhadores ao poder, enterrando, assim, as possibilidades de revolução nesses países.
Embora formalmente abandonando essa orientação de entrismo diante dos desastres levados a cabo pelo pablismo, pablistas e mandelistas seguiram em sua política de colaboração de classes. Depois da crise que levou a cisões na IV Internacional, no começo da década de 1950, algumas dessas correntes se unificaram em 1963, sob a direção de Mandel, criando o SU, reunindo, além das organizações mandelistas, como a Liga Comunista da França, o SWP, do norte-americano de James Cannon, e as organizações latino-americanas como o PRT, do argentino Mario Santucho, da qual também fazia parte Nahuel Moreno. Contudo, a trajetória dessa organização está marcada pelos desvios teóricos e pela política de colaboração de classes.
Um exemplo clarificador de sua política desastrosa se dá pelo apoio acrítico à guerrilha e ao governo de Cuba. O SU, que afirmava ter sido criado em torno do apoio à Revolução Cubana, não defendia essa tática como uma ação excepcional a ser aplicada em conjunturas particulares, mas como um elemento estratégico na construção dos partidos. Outro exemplo de sua política desastrosa se viu na Nicarágua, quando o agrupamento dirigido por Nahuel Moreno organizou a Brigada Simón Bolívar. Depois da vitória da Frente Sandinista, em aliança com setores da burguesia, os trotskistas se lançaram à política de organizar os trabalhadores no sentido do duplo poder, mas foram perseguidos, presos e torturados pelo governo. Diante disso, a maioria da direção do SU, encabeçada por Mandel e pelo SWP, não apenas não apoiou os militantes da Brigada Simon Bolívar (portanto, também ligados ao próprio SU), como enviou uma delegação em apoio ao governo de colaboração de classes da Nicarágua. Outro exemplo dos desastres políticos do mandelismo passa pela participação de Miguel Rossetto, dirigente da Democracia Socialista (DS), na época seção do SU no Brasil, no governo de colaboração de classes de Lula, ocupando o Ministério de Desenvolvimento Agrário entre 2003 e 2006. Pode-se somar a isso a participação de militantes da DS em outros governos petistas, especialmente no Rio Grande do Sul.
A política de colaboração de classes do SU, apoiando organizações burguesas e pequeno burguesas, se observa no atual contexto da guerra na Ucrânia, quando se coloca em apoio à “resistência” dirigida pela burguesia ucraniana e apoiada pelo imperialismo e por grupos fascistas. Essas posições se expressam também nos grupos mandelistas no Brasil, ainda que haja posições divergentes entre essas organizações. O SU nunca foi efetivamente um partido internacional, sendo, desde sua fundação, uma federação de organizações nacionais e internacionais, como a Fração Leninista Trotskista, formada pelo SWP norte-americano e pelo Partido Socialista dos Trabalhadores (PST) da Argentina, e, depois, pela Tendência Bolchevique dirigida por Nahuel Moreno.
No Brasil, atualmente fazem parte do SU a Insurgência e duas de suas cisões, a Comuna e a Subverta, além do Movimento Esquerda Socialista (MES), como seção simpatizante, e da Resistência, como observadora. As cinco organizações são tendências do PSOL. Contudo, embora se reunindo na mesma organização internacional e no mesmo partido, esses agrupamentos expressam posições divergentes em relação às questões mais variadas, como no recente debate eleitoral. O MES defendeu, junto com a Comuna e outras tendências do PSOL, a necessidade de o partido ter candidatura própria, em oposição à posição da Resistência, Insurgência e Subverta. Contudo, o mesmo MES defendeu a federação do PSOL com a Rede, um partido burguês, e essa posição foi combatida pelas demais organizações brasileiras do SU.
Em relação à guerra na Ucrânia, também é possível identificar posições diferentes. Na página de internet de todos os agrupamentos do SU no Brasil vem sendo publicadas as declarações da organização internacional. Além disso, nas páginas do MES e da Resistência, que não são seção do SU, foram publicadas as posições de outras organizações. Além disso, algumas dessas organizações ligadas ao SU expressaram suas próprias posições sobre a guerra. Em proposta de resolução apresentada ao PSOL, a Comuna afirmou:
“O conflito entre Rússia e Ucrânia, portanto, é resultado da disputa de interesses imperialistas, combinando a influência desestabilizadora da OTAN com as necessidades de uma Rússia em crise. Os acordos de Minsk, assinados em 2014 e 2015, permitiram um cessar-fogo à guerra civil iniciada no leste da Ucrânia, a partir do reconhecimento de um status especial às regiões de Luhansk e Donetsk, com autonomia, mas mantendo-as como territórios como parte da Ucrânia”.
Portanto, a Comuna atribui à guerra em curso um caráter interimperialista, em uma disputa entre OTAN e Rússia. Como solução, diante dessa caracterização, apontam para a possibilidade de uma saída diplomática:
“Estamos contra a guerra e chamamos por um cessar-fogo imediato, com a retirada das tropas russas da Ucrânia e o recuo imediato da OTAN e do projeto de expansão de suas bases militares na região e respeito aos acordos de Minsk”.
A ilusão na diplomacia burguesa se evidencia ainda mais quando afirma: “Queremos paz e que os territórios ucranianos possam definir democraticamente sobre seu futuro”. Essa posição mostra que, além de desconsiderar a centralidade da ação dos trabalhadores, se coloca no campo daqueles que defendem uma paz em abstrato, portanto, desconsiderando a luta de classes.
O MES centra sua posição na defesa da Ucrânia, afirmando que a Rússia procura “promover uma guerra imperialista para a anexação de territórios e o reestabelecimento de um regime fantoche da Rússia como aquele que controlava o país antes de 2014”. Nesse cenário o MES defende a necessidade de “desenvolver uma campanha mundial contra a invasão russa, reunindo personalidades, partidos e movimentos sociais que não aceitam a guerra criminosa de Putin nem as falácias da OTAN e do imperialismo ocidental”. Portanto, além de sugerir indiretamente como positiva a transição ocorrida em 2014, defende uma unidade ampla em torno da defesa da “resistência” ucraniana.
Portanto, ainda que sem defender abertamente o apoio da OTAN à Ucrânia, essas organizações demonstram escolher um lado na guerra e, ainda, indicam uma simpatia pela luta pretensamente democrática pela qual teria passado o país a partir de 2014. Essas posições contrastam com a da Resistência, em cuja declaração se afirma: “A esquerda não pode aderir à propaganda do imperialismo ocidental e nem à invasão russa”. Portanto, a Resistência, ainda que se limite a falar da “propaganda” de um lado ou outro, embora seja apenas uma observadora nas reuniões do SU, assume uma postura que contradiz a posição central da internacional de cujas reuniões participa.
Esses elementos demonstram a falência dessa organização, evidenciando seu equívoco na posição sobre a guerra e a incapacidade de construir uma organização internacional, ao apostar na construção de uma federação de organizações com posições não apenas diferentes, como muitas vezes antagônicas. Essa é uma expressão da crise de direção dos trabalhadores, que não mais se limita ao stalinismo e à social-democracia, mas que lamentavelmente também tem a contribuição de setores pretensamente trotskistas. O SU é a maior expressão dessa crise de direção no seio dos que se reivindicam do trotskismo, ao aplicar uma política reformista e de defesa da colaboração de classes.
Na guerra em curso, os trabalhadores não devem apoiar nem a Ucrânia, fiel representante dos interesses da OTAN, nem a Rússia, que almeja utilizar o conflito para tentar superar a crise econômica e política que enfrenta nos últimos anos. O único caminho possível passa pela unidade entre os trabalhadores, superando o divisionismo chauvinista fomentado pelo imperialismo, pelo governo da Ucrânia e pela burguesia russa.
O sentido da luta dos trabalhadores deve ser internacionalista, fortalecendo suas organizações independentes, e não o de apoiar as sanções imperialistas contra a Rússia, nem de pedir armas para a OTAN, nem de defender uma paz em abstrato, como o fazem Besancenot, o SU e suas seções. Na Rússia, onde uma aguerrida oposição antiguerra vem sendo reprimida duramente pelo governo Putin, a principal tarefa dos trabalhadores, conforme afirma a declaração da EM, “é se opor e combater sua própria classe dominante reacionária”. Nesse sentido, segundo a mesma declaração:
“o único caminho para a classe trabalhadora ucraniana é a derrubada da oligarquia capitalista parasitária, que governou o país como seu feudo privado nos últimos 30 anos, e a expropriação de sua riqueza. Somente sobre a base de que os trabalhadores cheguem ao poder, a Ucrânia pode realmente ser livre, com a classe trabalhadora unida de forma voluntária, acima das barreiras linguísticas e de identidade nacional”.
O exemplo a ser seguido é o dos trabalhadores ferroviários gregos, que se recusaram a colaborar com o transporte de tanques da OTAN. Diante da incapacidade da esquerda em dar uma resposta coerente à luta contra a guerra, mostra-se ainda mais urgente construir uma organização internacional que atue como um partido mundial dos trabalhadores. O SU e a maior parte das organizações que se dizem trotskistas só expressam a crise de direção e os desvios teóricos, diferente da CMI e de suas seções, que têm levantado a bandeira do marxismo e da revolução a serviço dos interesses dos trabalhadores. Somente com a superação do chauvinismo, construindo a unidade dos trabalhadores e superando as divisões de Estado impostas pela burguesia, e com uma compreensão científica da realidade, será possível mobilizar os trabalhadores contra a guerra e organizar a luta pela revolução socialista.