Em setembro Stalin e o stalinismo voltaram a ser um dos temas mais comentados pela esquerda no Brasil. Desta vez o motivo foi a referência que o músico Caetano Veloso fez, no programa apresentado por Pedro Bial, ao filósofo italiano Domenico Losurdo e aos vídeos de Jones Manoel. O músico afirmou: “Eu sou menos liberalóide do que era há dois anos”. A fala em si não diz nada, sendo muito mais um comentário isolado numa entrevista sobre outros tantos temas. Contudo, garantiu uma maior projeção a Manoel, que conseguiu espaço para uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo.
Um dos aspectos que mais chamaram a atenção nesse debate foi o espaço que a mídia burguesa deu ao “marxismo” e ao “socialismo”, aparentemente na contramão do processo de censura e de ataques às liberdades democráticas que vem ocorrendo. No entanto, a explicação para isso está na própria luta de classes, ou, mais precisamente, no mundo em convulsão que abalou a institucionalidade burguesa e derrubou governos de vários países em 2019. Isso colocou a burguesia novamente diante da necessidade de encontrar formas de controlar as revoltas e revoluções que se espalharam pelo mundo, por meio tanto da repressão às mobilizações como da cooptação de direções dos trabalhadores e parte da esquerda.
Nesse processo de cooptação a esquerda reformista, em todas as suas matizes, cumpre um papel central. E isso não é apenas como no Chile, em que socialistas e stalinistas estão apoiando a saída da crise por meio de uma constituinte; ou no Equador, em que as direções dos trabalhadores se negaram a construir a unidade em organismos de duplo poder para derrubar o governo. A esquerda reformista cumpre sempre um papel fundamental na manutenção da ordem burguesa, também servindo de propagandista de teorias que, apesar de parecerem radicais devido ao uso de uma retórica tomada do marxismo, são palatáveis ao gosto da ordem instituída, na medida em que não colocam no horizonte a derrubada do Estado e a destruição do capitalismo.
Esse é o papel cumprido pelo stalinismo, no passado e ainda atualmente. Stalin e seus seguidores fizeram o máximo possível para desmobilizar a luta dos trabalhadores em países como Espanha e França, na década de 1930, ou no Brasil, às vésperas do golpe de 1964, quando optaram por apoiar politicamente o governo e não por organizar pela base o poder dos trabalhadores. O stalinismo, em qualquer lugar onde existiu, em todas as suas vertentes, foi cúmplice no processo de manutenção do capitalismo, se aliando à burguesia ou compondo frentes de sustentação da democracia. O PCdoB não foi apenas aliado nos governos traidores do PT; utilizando o discurso da “correlação de forças”, sempre busca a unidade com setores da burguesia e assume cargos em governos de alianças com partidos burgueses. Já o PCB busca se integrar em frentes amplas em defesa da democracia, agitando um abstrato “poder popular”.
O stalinismo é um subproduto da derrota dos trabalhadores e do poder soviético que começou a ser construído na Rússia a partir da revolução de 1917. Por um lado, a revolução mundial foi derrotada, sendo seus exemplos mais imediatos a repressão ao movimento ocorrida na Hungria e na Alemanha, em 1919. Contudo, a isso também se soma o resultado da guerra civil, enfrentada pelo poder soviético, que não apenas viu milhares de trabalhadores morrerem no campo de batalha, como esgotou uma economia fragilizada. Esse o processo leva à formação de uma burocracia (completamente afastada do embate da luta de classes), que passa a tomar conta da gestão do Estado e do partido, consolidando-se diante do enfraquecimento dos sovietes enquanto organismos do poder. Esse processo e a formação dessa burocracia, embora não possam ser reduzidos a um poder pessoal, ganharam o rosto de Stalin.
Posteriormente essa deturpação do marxismo se espalhou pelos demais países, tendo suas manifestações existentes até hoje. Não é de estranhar que versões amenas do socialismo (ou seja, reformistas) e deturpadas do marxismo (ou seja, stalinistas) ganhem espaço de destaque até mesmo na mídia burguesa. Com isso, por um lado, a burguesia coloca em evidência um adversário que, para dizer o mínimo, é frágil política e teoricamente; afinal não se utiliza do método marxista, se limitando ao uso artificial e retórico de conceitos desarticulados para justificar suas ações (entenda-se traições). Por outro lado, ao não utilizar o marxismo, esses setores defendem de forma abnegada a experiência dos Estados operários burocratizados, supostamente socialistas, do século 20.
Essa fragilidade do pretenso marxismo que ganhou as páginas da Folha de São Paulo é exemplificada por Jones Manoel quando, por exemplo, define stalinismo:
“Stalinismo é uma leitura do marxismo que tem três pilares: desconsiderar qualquer crítica, colocando erros ou até tragédias na conta de mentiras burguesas, ou da CIA; considerar que o modelo da URSS é o único possível e que qualquer coisa fora disso seria revisionismo; e fazer uma leitura do Stálin como uma continuidade direta e uma elevação da obra de Marx, Engels e Lenin.”
Mesmo que essas três características possam ser encontradas no stalinismo, mostram uma análise simplória desse fenômeno político. Essa análise centra-se em alguns elementos teóricos mais aparentes ou mesmo na crítica moral, deixando de lado elementos filosóficos e o papel contrarrevolucionário do stalinismo. Há pelo menos quatro aspectos ausentes na explicação de Manoel:
a) O mecanicismo filosófico da teoria stalinista, expresso, por exemplo, na definição de uma sequência estanque de modos de produção, durante décadas utilizada nas análises feitas nos diversos países pelos seus respectivos Partidos Comunistas (PCs). Esse elemento torna o stalinismo muito mais uma expressão do positivismo do que do marxismo.
b) Defesa da ideia de “socialismo em um só país” como pilar teórico fundamental, justificando suas ações em defesa da manutenção da burocracia governante. Essa formulação teórica embasa todas as ações dos stalinistas.
c) Uma política de coexistência pacífica com o imperialismo, deixando os atritos muito mais na esfera retórica da diplomacia. Em termos práticos, essa política se desdobrou no combate à revolução em âmbito mundial, especialmente em regiões consideradas de influência do imperialismo, nas quais os PCs traíram processos de luta e fizeram alianças espúrias com setores da burguesia.
d) A política de alianças com as burguesias locais desdobra-se nos governos de frente popular, experimentados primeiro na Espanha e na França na década de 1930. Essas experiências seriam expandidas para o mundo, levando os trabalhadores à derrota em vários países.
Portanto, resumir o stalinismo a uma paranoia dos burocratas, à ideia de modelo político único e ao mecanismo teórico é bastante limitado e mostra que Manoel não quer fazer o debate central: o stalinismo é uma deturpação do marxismo e representa décadas de ações de combate à revolução. Isso também leva o analista a personalizar o papel de Stalin e não discutir a fundo o stalinismo como expressão ideológica da burocracia que controlou o poder na União Soviética e em seus satélites. Por isso Jones Manoel afirma:
“Stálin teve o papel do que na ciência política se chama de pai da nação. Não se pode reduzir a experiência soviética a um mero reino de terror e a um grande gulag. O terror existiu, o gulag existiu, a repressão a artistas, intelectuais, cientistas existiu. Também existiram episódios de fome, não a fome planejada com intuitos genocidas, mas problemas de abastecimento. Mas o governo de Stálin combateu de maneira firme o racismo e o colonialismo. A URSS também teve papel fundamental na construção de direitos econômicos, sociais, no que depois vai ser generalizado no rótulo de Estado de bem-estar. Nos anos 30, no auge de todo o processo de repressão, estava sendo eliminado o analfabetismo, construída a maior rede vista até então de creches, escolas públicas, restaurantes públicos, universidades, hospitais, empresas, casas populares e por aí vai.”
Manoel ignora pelo menos quatro questões básicas para este debate. Primeiro, interpretar a história a partir de nomes e figuras de projeção é uma manifestação da historiografia burguesa. Portanto, não condiz com o método marxista, para o qual a dinâmica da história está no conflito entre as classes e em sua expressão mais aguda, a revolução. Em segundo lugar, parece ignorar que qualquer sucesso estatístico da União Soviética está alicerçado não nas supostas (e fantasiosas) qualidades pessoais de Stalin, mas no poder dos sovietes e na economia planificada que nasceram do processo revolucionário de 1917. Terceiro, além da repressão aos opositores e do esvaziamento completo do poder dos sovietes, na União Soviética sérios combatentes e dirigentes revolucionários foram perseguidos e mortos em processos baseados em acusações falsas e mentiras que para qualquer pessoa soam completamente irreais. E, em quarto lugar, é preciso lembrar a constituição de burocracias nos satélites soviéticos, nas quais jovens e trabalhadores, quando se levantaram contra esses governos ditatoriais, foram perseguidos, reprimidos e acusados falsamente de contrarrevolucionários.
Não seria equivocado pensar o stalinismo como a constituição de uma casta burocrática que buscou na deturpação teórica, em atalhos políticos, em mentiras históricas e na violência estatal formas de manter seus privilégios. Contudo, com o fim da União Soviética e da maior parte dos países que expropriaram o capitalismo, o stalinismo se tornou, em âmbito mundial, uma mera ideologia que, a despeito de sua inserção no movimento dos trabalhadores, não passa de uma manifestação reformista que desvia a luta da classe trabalhadora para a defesa da ordem burguesa. Essa é a versão do marxismo que a Globo e a Folha de São Paulo mostram, abrindo espaço para Caetano fazer um comentário totalmente aleatório sobre socialismo, ou para Manoel propagar sua análise superficial e acrítica sobre Stalin e o stalinismo.
O stalinismo, bem como as demais manifestações do reformismo, deve ser jogado na lata do lixo da história. O marxismo e a revolução combatem essa deturpação teórica, mostrando os limites das experiências históricas dos países onde a revolução socialista ficou estagnada por conta da traição de suas direções. Stalin e o stalinismo devem ser estudados e criticados não como expressões limitadas do marxismo ou como exemplos de experiências socialistas, mas como deturpações contrarrevolucionárias que só trouxeram derrotas aos trabalhadores ao longo do século 20.