Imagem: Pete Linforth, Pixabay

O capitalismo, o Estado e a vacina

Desde o começo da pandemia da Covid-19 uma das maiores expectativas tem sido o desenvolvimento de uma vacina que possa conter a proliferação do coronavírus. Nos últimos meses se viu uma corrida de governos e de grandes laboratórios para apresentar o quanto antes uma vacina. Finalmente, nas últimas semanas, governos de diferentes países divulgaram que iniciarão a vacinação de sua população. O Reino Unido aprovou, no dia 2 de dezembro, a vacina desenvolvida pelas farmacêuticas Pfizer e BioNTech, logo iniciando a vacinação. Com a chegada da vacina da Pfizer, a Alemanha começou a preparar centros de vacinação pelo país. Em Berlim, prevê-se a imunização de 450 mil pessoas (cerca de 12% da população da cidade) em meados de dezembro. No dia 2 a Rússia apresentou também a vacina Sputnik V na sede das Nações Unidas, anunciando que iniciaria a vacinação de sua população, a começar por professores e médicos.

Na mídia burguesa a divulgação dessas notícias se mostrou quase como a descoberta do Santo Graal, afinal há meses a burguesia em todo o mundo anseia pela vacina. Essa expectativa da burguesia não se deve a qualquer espírito humanitário ou a uma vontade sincera de conter a proliferação do vírus. Para a burguesia o centro da questão sempre passou pela retomada do que considera o funcionamento normal da economia, ou seja, a garantia de que a força de trabalho a ser explorada não apenas esteja saudável como esteja viva.

Contudo, o que poderia ser uma forma de conter a proliferação da doença e salvar vidas não é algo assim tão simples. Em primeiro lugar, porque a realidade do imperialismo coloca como prioridade a imunização dos grandes centros do capitalismo. Mais de 80% dos estoques de vacinas da Pfizer até o final do próximo ano foi previamente adquirido por países como Reino Unido, EUA, União Europeia, Japão e Canadá. Esses países representam apenas 14% da população global. O mesmo ocorre com a farmacêutica Moderna, da qual 78% de suas doses foram previamente compradas por países ricos, que representam cerca de 12% da população mundial.

Outra questão passa pela própria vacina, afinal todas as que estão sendo divulgadas foram desenvolvidas em um tempo considerado recorde. Entre as vacinas que devem começar a ser aplicadas em diferentes países, a ponta-se que a Pfizer tem eficácia de 95% na prevenção da Covid-19, enquanto a Sputnik V tem um índice de 91,4%. Embora esses índices possam ser considerados elevados, podendo de fato diminuir a proliferação da Covid-19, essas vacinas não foram testadas de forma massiva, em populações com características as mais diversas possíveis. Não se pode ter certeza sobre o efetivo impacto da vacina em cenários populacionais diversos, que podem variar de acordo com as possíveis mutações do vírus, o histórico de saúde das pessoas e, principalmente, as condições econômicas e sociais.

Esse cenário pode ser ainda pior em um Brasil governado por Bolsonaro, onde o presidente prioriza sua disputa de espaço político com João Doria. O governo de São Paulo, por meio do Butantan, vem trabalhando com o desenvolvimento da CoronaVac, de origem chinesa, que também está em fase avançada de testes. Doria chegou a anunciar o início da vacinação para o próximo 25 de janeiro. Bolsonaro, contudo, semanas atrás, atacou a vacina chinesa, numa mistura de xenofobia e anticomunismo fora de época, chegando a sugerir que a vacina poderia não vir a obter a aprovação da Anvisa. Dos dois lados, o fundo desse embate não é a vacina chinesa e muito menos uma preocupação com a vida da população, mas a disputa entre Bolsonaro e seu antigo apoiador Doria pela corrida presidencial de 2022.

Logo que começaram a ser divulgadas as notícias sobre a conclusão dos testes das vacinas, o governo Bolsonaro lançou um plano de vacinação que no melhor dos casos poderia ser considerado um esboço inicial. O plano preliminar de imunização apresentado pelo Ministério da Saúde previa a aplicação da vacina contra o coronavírus em quatro fases e um contingente de 109,5 milhões de brasileiros imunizados em duas doses. A imunização de grupos prioritários deve ser feita de acordo com a disponibilidade de doses, começando a imunização em março, a depender da aprovação de alguma vacina pela Anvisa. O governo deixou claro que não está em seus planos a imunização imediata de toda a população, conforme deixou claro a coordenadora do Programa Nacional de Imunizações, Francieli Fantinato:

“Definimos objetivos para a vacinação, porque não temos uma vacina para vacinar toda a população brasileira. Além disso, os estudos não preveem trabalhar com todas as faixas etárias inicialmente, então não teremos mesmo como vacinar toda a população brasileira”.

Essa fala, que tenta fazer parecer uma escolha técnica, mostra claramente o que o governo não fez nada até o começo de dezembro em relação ao planejamento de uma efetiva campanha de imunização da população. O governo não tinha um plano, e, também, não tinha o dinheiro, levando em conta que este ano o orçamento para a compra e distribuição de vacinas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) sofreu uma redução de 7% em relação a 2019. Nesse quadro, que poderia se tornar ainda mais catastrófico, se fez urgente a aprovação na Câmara e no Senado de uma medida provisória que abre crédito extraordinário de R$ 1,995 bilhão para compra de tecnologia e a produção de uma vacina contra a covid-19. Os recursos serão destinados para custear contrato entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde, e o laboratório AstraZeneca, que desenvolve um imunizante em parceria com a Universidade de Oxford, no Reino Unido.

Contudo, o recurso para a fabricação é apenas uma parte do problema, pois não garante a estrutura necessária para uma campanha de vacinação massiva em todo o Brasil. Embora o país possua uma estrutura de vacinação utilizada na prevenção a outras doenças, não há a garantia de uma imunização rápida e massiva em todas as cidades. Para tanto, seriam necessários mais profissionais de saúde, estrutura para armazenamento das vacinas, locais adequados para realizar a vacinação e evitar aglomerações, e até mesmo agulhas e seringas.

Essas necessidades podem trazer grandes dificuldades para concretizar uma efetiva campanha. No que se refere ao armazenamento das doses, a Pfizer, por exemplo, precisa ser mantida a -70° C, o que representa uma barreira importante, afinal a grande maioria dos centros de distribuição do Brasil são equipados com câmaras frias que chegam no máximo a -20° C. Nas salas de vacinação, os refrigeradores têm uma temperatura que varia entre 2 e 8° C, o que é suficiente para as vacinas de outras doenças, mas talvez não para a Pfizer. Coube à própria Pfizer apresentar possíveis soluções para essa questão técnica, o que fez avançar o entendimento entre o governo e a empresa para a compra de 70 milhões de doses. Outras vacinas em desenvolvimento contra a Covid-19 poderiam se adaptar melhor à estrutura atualmente existente.

No que se refere a agulhas e seringas, o governo afirmou, no começo deste mês, que “iniciou o processo de aquisição de mais de 300 milhões de seringas e agulhas no mercado nacional e 40 milhões no mercado internacional, com o intuito de apoiar os estados e municípios no desenvolvimento inicial das ações de vacinação. Para a aquisição interna, já foi realizada pesquisa de preços e emissão de nota técnica para elaboração do edital de compra, que será lançado em breve”. Contudo, em se tratando de uma licitação, caso tudo ocorra dentro do planejado, entre a ordem de compra, a fabricação e a entrega há um prazo que pode variar entre 60 e 90 dias, o que talvez explique o fato de o governo federal inicialmente anunciar o início da vacinação somente para março.

Esse cenário em que várias opções de vacinas estão disponíveis para serem utilizadas sem que o país esteja preparado para uma campanha de vacinação massiva, ou que não tenha sequer o orçamento aprovado para proceder imediatamente à imunização da população, é responsabilidade direta do governo Bolsonaro. Enquanto a população adoecia e morria, Bolsonaro, governadores e prefeitos em todo o Brasil priorizaram salvar bancos e empresas e não prepararam a estrutura de saúde para garantir uma rápida imunização da população. Como resultado, corre-se o risco de ter um cenário parecido com o de início da pandemia, em que faltaram materiais básicos como álcool gel e respiradores, por puro descaso dos governantes. O setor privado possui condições de ofertar essa estrutura (e certamente vem se preparando para isso), o que pode levar a um cenário em que ou as pessoas vão optar por pagar pela vacina ou o governo talvez transfira recursos públicos para hospitais e clínicas que estejam preparadas para realizar a imunização.

Os capitalistas e seus representantes nos governos nunca estiveram preocupados com os trabalhadores, mas apenas com o seu lucro. Para eles, o número de mortos nunca passou de uma mera estatística incômoda, que sempre buscaram diminuir, fosse escondendo dados, fosse anunciando medidas ineficazes para conter a proliferação da Covid-19. A vida dos trabalhadores sempre foi um brinquedo nas mãos dos capitalistas, com seu abre e fecha de setores econômicos, sem se importar com quem vive ou quem morre. Para efetivamente garantir a vida dos trabalhadores, com uma campanha de vacinação massiva no sistema público de saúde, colocando no centro a vida das pessoas, não é possível outro caminho que não seja a derrubada desse governo e a luta contra o capitalismo.