O centenário de fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB) coloca para esquerda marxista um conjunto de reflexões sobre a atualidade da construção da direção revolucionária dos trabalhadores. A criação do PCB em 25 de março de 1922, inspirado nos princípios do bolchevismo, foi um marco simbólico fundamental para a esquerda no Brasil. Os trotskistas afirmavam, décadas depois, que o PCB, “apesar de pequeno a nível nacional, havia representado um passo adiante no processo de construção do proletariado como classe diferenciada na sociedade. Ou, pelo menos, havia aberto essa possibilidade”.1 Contudo, desde a sua fundação, seja pela fragilidade do marxismo desenvolvido no Brasil durante a Primeira República, seja pela origem anarquista de seus fundadores, o partido mostrou um conjunto de debilidades que o afetaram política e organizativamente. Essas debilidades não foram superadas a partir da atuação na luta de classes e do debate interno visando o avanço da elaboração política e teórica, mas levaram a que, desde muito cedo, o PCB estivesse marcado pela degeneração em seu funcionamento interno e pela política de colaboração de classes, sob influência da direção stalinista que controlava a Internacional Comunista (IC).
A fundação do PCB não pode passar despercebida pelos trotskistas. Se a primeira reação possível passa pela crítica ao PCB, devido à trajetória stalinista de sua direção ou por eventuais disputas políticas da atualidade, não é possível negar a importância de sua fundação para a esquerda. João Pimenta, delegado no congresso do PCB de 1922, foi um dos fundadores da primeira organização trotskista no Brasil. Nomes centrais do trotskismo, como Lívio Xavier e Mario Pedrosa, aderiram ao PCB, por volta de 1924 e 1925. Contudo, devido às debilidades da direção do partido, ao oportunismo de parte de sua direção e à influência da burocracia stalinista, durou pouco a tentativa de criar um núcleo bolchevique revolucionário no Brasil. Em âmbito internacional, os trotskistas e outros setores de oposição foram expulsos ou romperam com a IC e suas seções nacionais. Nisso, o processo de construção da Oposição de Esquerda, sob a liderança de Trotsky, primeiro como fração dos partidos comunistas e depois como organização independente, ganhou força diante do impacto da traição stalinista à Revolução Chinesa, em 1927, e da política desastrosa da IC que levou Hitler ao poder na Alemanha, em 1933.
Os problemas teóricos, organizativos e políticos do PCB, entre outros fatores, estão na raiz de não existir na atualidade qualquer organização que represente um fio de continuidade em relação ao partido fundado em 1922. Existiram e ainda existem diferentes organizações – em particular aquelas que se alinham em torno do atual PCB, do PCdoB e dos grupos herdeiros do prestismo – que se digladiam pelo legado do partido fundado em 1922, sem que se faça um balanço sério sobre os crimes e as traições de Stalin e dos burocratas que o apoiaram e sobre a degeneração teórica e política que representou o stalinismo. Um exemplo desse balanço superficial pode ser visto na atuação do atual PCB, que, apesar de afirmar ter superado o etapismo stalinista, apoiou, em seus primeiros anos, o governo Lula. Outro exemplo está em um dos documentos da chamada “reconstrução revolucionária” do atual PCB, o qual afirma: “a estratégia democrático nacional, assim como a democrático popular nos levaram aos impasses conhecidos, não pela forma como foram aplicadas e desenvolvidas, mas porque estavam incorretas em algumas de suas suposições básicas, por não compreenderem o caráter de nossa formação social e a particularidade do desenvolvimento do capitalismo”.2 Esse balanço esconde que os erros cometidos pelo partido se devem ao fato de o PCB ter incorporado o stalinismo como sua base teórica e aplicado fielmente as orientações de revolução por etapas, de colaboração de classes e de coexistência pacífica. Portanto, ainda que levante questões pontuais importantes, o atual PCB parece incapaz de fazer uma crítica dos fundamentos contrarrevolucionários que sustentaram a política do partido nas décadas passadas.
O PCB de 1922, fundado sob o impacto da Revolução Russa e das lutas operárias no Brasil, que inclui greves gerais e tentativas insurrecionais entre 1917 e 1920, muito cedo se viu afogado na colaboração de classes. Muito cedo o partido elaborou posições no sentido de combater o “agrarismo” e os “resquícios feudais”, caindo, assim, nos braços da burguesia industrial que se desenvolvia no país. Diante do getulismo ou dos setores “progressistas” das classes dominantes, o partido construiu uma aliança estratégica com a burguesia. Isso se aprofundou depois do golpe de 1964, quando o partido se viu completamente integrado à institucionalidade burguesa. No período final da ditadura, em sua crítica à política stalinista de colaboração de classes, os trotskistas afirmavam:
“legitimando o bipartidarismo oficial, o PCB integrou-se ao MDB, procurando participar e impulsionar as mais exóticas frentes, como a Frente Ampla (com Carlos Lacerda, Jânio Quadros. Jango etc.) em 1966, ou mesmo na frente nacional de redemocratização em 1978, com o general Euler Bentes. A essência era a mesma: procurar as frentes com a burguesia, asfixiando a expressão de uma política de classe independente, em nome de um eterno ‘inimigo maior’ que invariavelmente o PCB trazia para o interior da ‘frente’”.3
Na década de 1980, mesmo diante do ascenso operário e da construção de novas organizações dos trabalhadores, o partido seguiu em aliança com o PMDB. Para o PCB, naquele contexto seria fundamental apoiar o novo regime e as instituições nascidas na Nova República, fazendo com que o partido fosse um fiel defensor da ordem burguesa. Produto dessa política, o PCB chegou a apoiar o reacionário governo de José Sarney. Em 1987, o partido afirmava:
“[…] o PCB se empenhará para o fortalecimento da frente democrática, priorizando a articulação, no seu interior, da unidade de ação das forças progressistas e de esquerda, para intensificar a mobilização das massas e pressionar tanto o governo Sarney como a Constituinte, para que sejam efetivamente realizadas as mudanças políticas, econômicas e sociais. Consolidando-se a democracia, será criado um campo mais favorável à luta da classe operária, por seu objetivo histórico, o socialismo”.4
Em paralelo ao processo de degeneração do PCB, diante da completa falência da direção da IC, os trotskistas se constituíram como corrente independente desde o começo da década de 1930. Em suas análises sobre o Brasil, os trotskistas demonstraram que a burguesia é incapaz de encabeçar uma revolução, defenderam a necessidade de organização independente dos trabalhadores na luta pelo socialismo e empunharam a bandeira do internacionalismo. Por essa razão, os trotskistas apontavam, na luta contra a ditadura, a necessidade de construção de um partido operário que fosse uma representação dos interesses dos trabalhadores. O PT e a CUT, além de serem a expressão das lutas ocorridas no final da ditadura, são também expressão do combate pela independência de classes.
Não há qualquer surpresa no processo que levou o PCB, no começo da década de 1990, diante do esfacelamento do stalinismo e do colapso da União Soviética, ao completo abandono de qualquer menção, ainda que “nos dias de festa”, a uma perspectiva revolucionária. Esses processo se desenvolveu ao longo da existência do PCB, com a direção do partido criando justificas para defender a sua política de colaboração de classes, desde a década de 1920. Contudo, foi no período final da ditadura, que ficou ainda mais evidente a completa degeneração do PCB. Na época, os trotskistas denunciavam uma das expressões dessas política, diante da postura do PCB nas eleições de 1986:
“A discussão real que o PCB procura travar não é entre o voto em patrão ou o voto e trabalhador; também não é um problema apenas de ‘voto útil’. Trata-se de encontrar, em cada momento, o eixo em torno do qual, mais provavelmente, pode-se organizar a política de preservação do status quo”.5
Independente das justificativas que os grupos que reivindicam o legado do partido apresentem, foi uma caminhada lógica o processo que levou à completa destruição do PCB em seu congresso de 1991. Na década de 1990, marcado pela ofensiva ideológica e econômica do capitalismo em todo o mundo, viu-se extremas dificuldades no sentido da construção de organizações revolucionárias, em consequência da fragmentação e do abandono quase generalizado pela maioria da esquerda do referencial teórico marxista. Poucos setores da esquerda seguiram defendendo a bandeira do marxismo e da revolução, sendo possível ver a falência dos stalinistas e dos socialdemocratas e a adaptação de parte dos trotskistas à institucionalidade burguesa.
Nas próximas semanas publicaremos, nas páginas do jornal Tempo de Revolução, uma série de artigos que analisam a história do PCB. Fazendo um balanço teórico e política de sua trajetória, discutiremos a política de colaboração de classes e da revolução por etapas e como isso levou a classe trabalhadora a trágicas derrotas ao longo do século 20. Esse estudo é fundamental para que se possa, a partir de suas experiências e da compreensão de seus problemas e debilidades, construir uma verdadeira organização revolucionária, com base no marxismo, na independência de classes e no internacionalismo.
Referências:
1 Gabriel Marti. O PT, as eleições e a luta de classes. In: Luta de classes, nº 7, novembro de 1981, p. 55.
2 PCB. Resoluções: XIV Congresso, Rio de Janeiro: Fundação Dinarco Reis, p. 35.
3 Gabriel Marti. O PT, as eleições e a luta de classes. In: Luta de classes, nº 7, novembro de 1981, p. 59.
4 PCB. 8º Congresso (Extraordinário) do Partido Comunista Brasileiro. São Paulo: Novos Rumos, 1987, p. 41.
5 Bernardo Bera. O PT, a Nova República e a independência de classe. In: O Trabalho, Caderno 5. São Paulo: Livraria Palavra, 1986, p. 10.