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O coronavírus, a economia real e sua expressão financeira – Parte 2: Juros

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 04, de 16 de abril de 2020. Confira a edição completa

PARTE 1

A queda nas taxas de juros

Qual a situação atual? Diante da pandemia, os bancos centrais entraram em ação com pacotes emergenciais para buscar “estimular a economia”. Os principais bancos centrais cortaram suas taxas de juros e esse movimento foi seguido por países como o Brasil. O Federal Reserve (FED), Banco Central dos Estados Unidos, alterou sua taxa de juros básica, que em 15/03 era de -1,25%, para um percentual que agora varia de 0% a 0,25%. O Banco da Inglaterra (BoE) cortou sua taxa básica de juros em -0,5%, passando de 0,75% para 0,25% (11/03). O Banco do Povo da China (PBoC), primeiro país a ser afetado gravemente pelo coronavírus, reduziu de 4,15% para 4,05% (19/02). O Banco Central da Europa (BCE) não fez alterações, no entanto sua taxa de juros já era zero mesmo antes da pandemia. O caso se repete na economia japonesa, uma vez que a taxa de juros lá se encontra negativa (-0,1%), e na Suíça, que tem taxa de juros de -0,75%. O Banco Central do Brasil (BCB) também anunciou redução da taxa de juros de 4,25% para 3,75% em 18/03, sendo que esse novo patamar da taxa é o menor na história do país, que tinha taxas de juros de dois dígitos até pouco tempo atrás. 

O que é a taxa de juros?  

O juro é uma parte do lucro de um capitalista que utilizou capital de outro capitalista para adiantar a produção e por isso tem que repartir o lucro com ele. O dinheiro torna-se capital portador de juros, como define Marx, quando uma quantidade de dinheiro alienado (isto é, emprestado) assume a função de capital e, no processo de produção, extrai mais-valia, gerando lucro para quem o investiu. Portanto, o juro é uma parte do lucro. Supondo que a relação entre o lucro global e o juro seja mais ou menos constante, então o capitalista que investiu com capital emprestado está disposto a pagar juros mais altos ou mais baixos em proporção direta ao nível da taxa de lucro. O capital portador de juros, embora não seja uma mercadoria propriamente dita, torna-se uma mercadoria diferente de todas as outras e, por isso, o juro torna-se seu preço.1

Com a fase imperialista do capitalismo, o capital concorrencial torna-se o capital monopolista. Isso significa que ocorre uma concentração ainda maior do capital, onde um punhado pequeno de empresas muito grandes centraliza os capitalistas menores a partir da predominância do capital financeiro. Isso também significa que a burguesia que realmente controla a produção de bens e serviços é aquela que detém o capital financeiro. No dia a dia podemos observar essa predominância do capital financeiro na atividade de construção civil por exemplo. Quantas vezes em nosso caminho para o trabalho vimos um arranha-céu sendo erguido e uma placa do Itaú, Santander, Bradesco dizendo que a construção daquele prédio está sendo financiado por seu capital? 

A concentração bancária é um processo característico dessa fase do capitalismo e os bancos deixam de ter o papel somente de intermediários de pagamentos e passam a ter sob seu comando as atividades de diversos setores da economia através do “sistema de participação”, da compra e da troca de ações, do sistema de crédito. 2 A situação anterior apresentada por Marx, onde existia um capitalista que emprestava dinheiro a outro que de fato produzia, é levada ao extremo nos dias atuais, pois a fusão do capital bancário e do capital industrial descrita por Lenin, formando o capital financeiro, centraliza as atividades econômicas sob o comando do capital financeiro, mas não elimina a separação entre a propriedade do capital e sua aplicação. Os acionistas dos bancos e grandes empresas querem manter seu lucro e aumentá-lo. É por isso que na situação atual temos, por um lado, setores não essenciais que estão pressionados a continuar a produção e, por outro, um aumento das taxas de juros dos bancos comerciais para dar continuidade a essas operações mantendo e aumentando o lucro de seus acionistas. Inclusive estão dispostos a pagar juros mais altos desde que seus lucros se mantenham como vimos anteriormente e, sob a dominação do capital financeiro, são subordinados a isso. 

No entanto, esses mesmos acionistas exigem do Estado que o socorro às empresas que controlam, via empréstimos, tenham as menores taxas de juros possíveis. Disso decorre  a redução das taxas de juros básicas de diversas economias anunciadas pelos bancos centrais. Devemos lembrar que uma das funções de um banco central é ser o banqueiro dos banqueiros, emprestador em última instância, o que evidencia também o papel do Estado como comitê de negócios da burguesia.  

“É próprio do capitalismo, em geral, separar a propriedade do capital da sua aplicação à produção; separar o capital-dinheiro do industrial ou produtivo; separar o rentista, que vive apenas dos rendimentos provenientes do capital-dinheiro, do industrial e de todas as pessoas que participam diretamente na gestão do capital. O imperialismo, ou o domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu grau superior, em que essa separação adquire proporções imensas. O predomínio do capital financeiro sobre todas as demais formas do capital implica o predomínio do rentista e da oligarquia financeira; implica uma situação privilegiada de uns poucos Estados financeiramente ‘poderosos’ em relação a todos os restantes.” 3

De maneira geral, existe uma correspondência entre o ciclo industrial e a taxa de juros, onde nos períodos de lucros extraordinários a taxa de juros tende a ser baixa, com dinheiro abundante e sem especulação. Num segundo momento, quando os juros começam a subir, abre-se um período que varia entre os lucros extraordinários e sua inversão. Neste momento a especulação começa a florescer. Há também um terceiro período em que o juro é máximo,  que caracterizamos como o período de crise, onde o dinheiro começa a ser procurado. Nos processos como os que vivemos agora, de crise, os capitais menores se arruínam e o capital financeiro “participa” de sua aquisição a baixo preço. Essa reorganização que acontece nas crises eleva e potencializa novamente a centralização do capital, o fortalecimento dos grandes monopólios e da predominância do capital financeiro, além de manter a operação lucrativa dos bancos. 

Qual o impacto de suas variações? 

A redução da taxa de juros tem como impactos principais: reduzir o custo da dívida pública, que cresce em diferentes países e vale também para a dívida das empresas, que tem um custo menor devido à queda do juros; atrair o capital para o setor produtivo, uma vez que com juros mais baixos as aplicações de curto e curtíssimo prazo se tornam menos rentáveis; e estimular o consumo, uma vez que se torna menos interessante poupar, já que os títulos de renda fixa acompanham o movimento da taxa básica de juros.   

A redução da taxa de juros é um instrumento de política econômica usado para controlar a quantidade de dinheiro circulando na economia e, portanto, a inflação. Com uma taxa de juros mais baixa, a tendência (segundo a teoria burguesa) é que mais pessoas e empresas tomem empréstimos para o consumo ou investimento, respectivamente. Dessa maneira, o consumo e os investimentos tenderiam a manter o nível e a inflação tenderia a subir. Uma série histórica 4 da taxa básica de juros brasileira, a SELIC, pode ser observada no gráfico abaixo: 

No gráfico vemos que desde setembro de 2019 a taxa de juros vem caindo e o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) vem subindo até o ponto em que se encontram no último corte realizado pelo Copom (Comitê de Política Monetária). Na prática, o juro real é zero, o que tem como objetivo desestimular a poupança e levar as empresas a investir, as pessoas a gastar e, aquelas que não têm o que gastar, a tomar empréstimos. Isso também tem impacto na bolsa de valores, uma vez que se o consumo permanece aquecido, os capitalistas realizam seu lucro e, teoricamente, como explicamos anteriormente, o preço de suas ações tende a subir. Essa é a teoria burguesa, mas no período de crise, tudo se transforma em seu contrário e o rebaixamento da taxa de juros dos bancos centrais tem como consequência o “empoçamento” (retenção de capital) nos grandes bancos, que evitam fazer empréstimos.

Estímulo? Que estímulo? 

Se em tempos normais, a redução da taxa de juros já havia perdido eficácia para estimular a economia (como é o caso do Japão, que se encontra estagnado há anos e com taxa de juros negativa), em tempos de crise econômica a redução da taxa de juros perde sua eficácia complemente. O estímulo ao consumo com a redução das taxas de juros se depara com o cenário de redução da atividade econômica em virtude do esgotamento do mercado capitalista. A pandemia existente apenas desvela o que estava debaixo do tapete: a crise capitalista desponta em todos os setores. Ao invés de inflação, deflação, com a queda de preços do petróleo. TVs que eram vendidas a um preço hoje são anunciadas pela metade do preço. A única coisa que aumenta de valor são os bens essenciais consumidos pelo proletariados – alimentação e saúde. E os capitalistas, pressionados pela crise, tentam manter seus preços quando não é mais possível. O preço do petróleo cai para um quinto do valor, a Petrobras reduz o preço dos combustíveis em suas refinarias, mas o preço cai muito pouco nas bombas de gasolina. O consumo desaba e com ele o lucro. Nesse contexto, as projeções econômicas de crescimento do PIB se reduzem, como é o caso do Brasil, que tem projeção de crescimento zero para 2020. Inclusive o Banco Mundial prevê queda do PIB em 5% no Brasil e em diversas economias.5

Por outro lado, tende a crescer o número de pessoas que dependem de empréstimos e financiamentos para manter seu consumo, inclusive empresas. É aqui que entra a contradição entre a taxa básica de juros e os juros que consumidores e empresas efetivamente pagam, o chamado spread bancário, isto é, a diferença entre o que os bancos pagam quando se aplica dinheiro neles e o quanto cobram quando emprestam dinheiro. 

Falamos anteriormente que os títulos de renda fixa se encontram em queda livre com a queda da taxa SELIC, isso significa que os bancos estão pagando juros muito baixos aos seus prestamistas. No Brasil, essa diferença chega a 18,2 pontos percentuais.6 Nessa conta estão inclusas as despesas administrativas (jabuticaba brasileira), tributos, inadimplência e, é claro, o lucro dos acionistas do banco. Conforme Marx explicou, a época de crise corresponde ao máximo da usura, pois é quando as pessoas passam a necessitar mais dos empréstimos e financiamentos. Por exemplo, uma mudança imediata significativa imposta pelo coronavírus é que as empresas dependem mais dos serviços digitais, precisam de servidores com maior capacidade de armazenamento e internets mais rápidas. Isso significa que precisam realizar investimentos. No entanto, mesmo com a redução da taxa SELIC os bancos não estão realizando empréstimos, aumentaram os juros e reduziram os prazos de pagamento das dívidas novas.7 A tendência à redução da taxa de juros dos bancos centrais e sua efetiva redução, na verdade, acabam por beneficiar o capital financeiro e os lucros de seus acionistas. Um estudo feito pela Quartz mostrou que os três maiores bancos dos EUA, por exemplo, lucraram mais na década posterior à crise de 2008 do que na década anterior. O JP Morgan acumulou US$ 200 bilhões na última década, quase o dobro dos 10 anos anteriores. O Wells Fargo saiu de menos de US$ 80 bilhões para mais de US$ 190 bilhões entre 2008 e 2018 e, por fim, o Goldman Sachs lucrou US$ 20 bilhões a mais na década após a crise do que na década anterior. 8

Dada a ineficácia da redução da taxa de juros, pode-se pensar que o inverso deveria ser praticado. No entanto, essa não é uma opção viável para as economias dos estados nacionais, pois faria a dívida pública explodir.  A dívida fiscal do Japão é de 226,3% do PIB, a do Reino Unido é de 110,3% do PIB, a dos Estados Unidos é de 101,8% do PIB e a da Zona do Euro é de 100,3% do PIB, dados do terceiro trimestre de 2019.9 O Brasil está com o maior nível de endividamento depois do Líbano (155% do PIB) entre os países dominados, saindo de 62% do PIB em 2014 para 88% do PIB no fim de 2019. Isso é insustentável e por isso há a necessidade do movimento oposto. Por exemplo, o corte realizado na SELIC em fevereiro, quando a taxa saiu de 4,5% e foi para 4,25% ao ano, gerou uma economia de R$ 68,9 bilhões.10  

No final quem paga a conta são os trabalhadores, uma vez que o dinheiro público é praticamente dado aos capitalistas via BNDES e taxa de juros real a 0% ao ano. Dinheiro esse que vem do recolhimento do PIS/PASEP e deveria retornar para os trabalhadores através do Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT. Os trabalhadores também pagam a conta, pois nessas épocas cresce a necessidade de utilizar o crédito, pago com altas taxas de juros. Mais uma vez, os trabalhadores pagam a conta porque os produtos e serviços que necessitaram de empréstimos para serem produzidos vão ter incorporado em seu preço preço a taxa de juros mais elevada que praticam os bancos no período atual. Por fim, pagam a conta com setores da burguesia que impõem a continuidade das atividades não essenciais para a manutenção do lucro dos acionistas, obrigando-os a se exporem ao vírus, nesse caso pagando a conta com a vida. Os trabalhadores entendem perfeitamente essa situação e dizem em alto e bom som que não são carne de canhão! Façamos a burguesia e o capital financeiro pagarem pelo crise e pela Covid-19! 

 

Referências:

1 Marx – O capital. Capital portador de juros

2 Lenin – Imperialismo, fase superior do capitalismo. Cap. 2 – Os bancos e seu novo papel.
3 Lenin – Imperialismo, fase superior do capitalismo. Cap. 3 – O capitalismo financeiro e a oligarquia financeira
4 Juros Reais: Gráfico Atualizado. Clube dos Populares, 2020. Disponível em: < https://www.clubedospoupadores.com/juros-reais> Acesso em: 01/04/2020
5 Banco Mundial projeta queda de 5% no PIB do Brasil devido a novo coronavírus. Estadão, 2020. Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,banco-mundial-projeta-queda-de-5-no-pib-do-brasil-devido-a-novo-coronavirus,70003268531> Acesso em: 13/04/2020
6 O que é o spread bancário e o que ele tem a ver com os juros que você paga? UOL. 2019. Disponível em: < https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/02/03/juros-altos-spread-bancario.htm> Acesso em: 02/04/2020
7 Bancos prometem ajuda, mas dobram juros e seguram dinheiro, dizem empresas. UOL, 2020. Disponível em: < https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/26/coronavirus-juros-alta-prazo-corte-linha-credito-antecipacao-recebivel.htm> Acesso em: 02/04/2020
8 Os bancos que mais lucraram na década após a crise de 2008. Época Negócios, 2018. Disponível em: < https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2018/04/os-bancos-que-mais-lucraram-na-decada-apos-crise-de-2008.html> Acesso em: 02/04/2020
9 Como o Brasil se compara com os países mais endividados do mundo. BBC Brasil, 2020. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51210538> Acesso em: 02/04/2020
10 Corte na SELIC faz governo economizar R$ 68,9 bi com juros da dívida pública. O popular, 2020. Disponível em: < https://www.opopular.com.br/noticias/economia/corte-da-selic-faz-governo-economizar-r-68-9-bi-com-juros-da-d%C3%ADvida-p%C3%BAblica-1.1990982> Acesso em: 02/04/2020