Foto: Fórum Século XXI

O fantasma da ditadura e o governo Bolsonaro

Um dos temas mais comentado nesta semana em relação ao governo Bolsonaro foi sua determinação para que, no dia 31 de março, os militares comemorem o golpe de 1964. Diante das críticas recebidas, inclusive de sua bancada parlamentar e até mesmo de parte dos militares, passou a utilizar o eufemismo rememorar, no lugar de comemorar. Bolsonaro nunca escondeu sua simpatia pela ditadura militar (segundo ele, um “regime de autoridade”) e há bastante tempo afirma que não teria ocorrido um golpe em 1964. Para ele, as ações dos militares visariam unicamente a defesa da democracia, ameaçada por uma suposta ameaça comunista.

Essa mentira, uma narrativa ficcional que se quer impor como verdade, não foi inventada por Bolsonaro. Desde o golpe ela é difundida por setores civis e militares que apoiaram a ditadura, propagandeada em livros e até mesmo em revistas ou outras publicações ligadas às Forças Armadas. Paranoicos, esses setores entendem que a “transição democrática” e a constituição da Nova República teriam sido uma vitória das esquerdas, como se fosse uma etapa na revolução socialista que tanto almejam. Em função disso, segundo esses setores militares, a doutrinação da esquerda em espaços como as escolas e a imprensa teriam feito com que a sociedade construísse uma imagem negativa dos governos militares, colocando a necessidade de, na atualidade, fazer o combate para corrigir a “verdade sufocado” pelo totalitarismo comunista. Esse tipo de interpretação, além da completa ausência de relação com a realidade, fere não apenas a compreensão do passado que a sociedade construiu sobre o período ditatorial como o próprio método científico para analisar esses processos.

Bolsonaro expressa a compreensão de que os documentos do período diriam por si uma verdade histórica, sem que fosse preciso interpretá-los ou mesmo contextualizá-los dentro do processo político e social em que foram produzidos. Com esse método constrói-se a narrativa de que haveria uma ameaça comunista prestes a controlar o Brasil, a partir da influência da Revolução Cubana, no começo da década de 1960. O governo de João Goulart seria o responsável por encabeçar o processo revolucionário no Brasil, sendo isso comprovado pela defesa de seu programa centrado nas “reformas de base” e pela suposta infiltração de comunistas em seu governo. Diante dessa ameaça imaginária, a ação das forças militares e o reconhecimento da destituição do governo por parte do Congresso Nacional seriam ações dos “salvadores da nação” visando a defesa e a manutenção do regime democrático.

Essa é a narrativa construída a partir de documentos oficiais, dos textos da grande mídia e expressa nas memórias dos militares e parlamentares envolvidos com o golpe e com o regime ditatorial. Quem conta essas mentiras difunde a ideia que sua versão estaria livre de ideologias, por supostamente se basear em uma análise objetiva dos fatos. Essa interpretação, além de ser mentirosa e expressão de um ideário reacionário, desconsidera um conjunto de documentos e de memórias que contam uma história completamente diferente, ignorando fontes que mostram, entre outras coisas, que não havia nenhum tipo de ameaça comunista, que o governo João Goulart tinha a ilusão de desenvolver o capitalismo e que havia uma profunda sintonia entre os setores golpistas e o governo estadunidense. O que os militares e civis comprometidos com a ditadura têm feito nas últimas décadas é unicamente construir narrativas que expressam interpretações não-científicas cujo objetivo é apenas esconder a realidade concreta e o embate entre as classes

No período do golpe que depôs João Goulart colocava-se em cena a disputa entre diferentes segmentos burgueses, sendo óbvio que não houvesse por parte do bloco governista a defesa da superação do capitalismo. Os trabalhadores em alguns momentos mostraram disposição de mobilização, mas nenhuma de suas principais direções, em especial os trabalhistas e os comunistas, tinham como objetivo lutar pelo socialismo, semeando ilusões na aliança com uma fantasiosa “burguesia progressista”. Para os civis e militares que deram o golpe e apoiaram a ditadura, o limitado nacionalismo defendido por João Goulart era uma ameaça perigosíssima. Esses setores, em meio à divisão política da Guerra Fria, defendiam que Brasil priorizasse o alinhamento completo com os Estados Unidos e se afastasse de qualquer possibilidade de diálogo ou negociação com países socialistas ou mesmo os chamados “não-alinhados”.

O legado que Bolsonaro defende é de submissão completa ao imperialismo, para isso requentando na atualidade uma guerra imaginária em que um ilusório inimigo comunista ainda ameaçaria o Brasil. Em suas falas desprovidas de nexo, a esquerda teria aparelhado o Estado e, por meio da difusão do “marxismo cultural” e da “ideologia de gênero”, pretenderia implantar o comunismo no Brasil. Quem conhece o básico de marxismo sabe o quanto esse raciocínio é a mais completa bobagem. Bolsonaro se coloca, no presente, como liderança de um movimento que pretende derrotar uma suposta ameaça comunista ainda existente, não tendo vergonha de se assumir como uma espécie de continuidade de uma história sangrenta de repressão e morte que os setores mais reacionários da sociedade constroem há décadas.

Essas são as razões de Bolsonaro e seus seguidores defenderem uma “escola sem partido”, ou seja, uma educação controlada pelo partido reacionário. Essa é a razão para esses setores realizarem um violento ataque não apenas contra os professores como também contra a própria análise científica acerca da sociedade. Essa é a razão para esses setores fazerem elogios públicos a criminosos da ditadura como se fossem heróis, como é o caso do notório torturador Coronel Ustra. Essa é a razão pela qual a esquerda deve não apenas defender o passado contra o revisionismo tacanho dos reacionários como combater na linha de frente as ameaças às liberdades democráticas, como parte da luta pelo socialismo.