Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O passado, o presente e o futuro

Possivelmente a imagem mais marcante e triste da última semana foi a do incêndio que destruiu o prédio do Museu Nacional. Será preciso algum tempo para se ter certeza do que foi efetivamente destruído, mas já se sabe que foi atingida uma parte considerável do acervo, constituindo-se em uma gigantesca perda.

Enquanto ainda ocorria a tragédia, na mídia e nas redes sociais começava-se a buscar culpados e, claro, o raciocínio médio não conseguia ir muito além do superficial. Desde o começo parte da imprensa sugeriu que a responsabilidade seria da atual gestão da UFRJ, universidade que administra o museu. Os ataques contra a universidade e seu reitor Roberto Leher, ligado ao PSOL, se intensificaram ao longo da semana, numa clara tentativa de desmoralizar a gestão e, com isso, criar precedentes que justifiquem a privatização da gestão do Museu Nacional. No entanto, há muito tempo a reitoria da UFRJ vinha alertando que os insistentes cortes de recursos em seu orçamento, impostos pelas políticas de austeridade dos últimos governos, impossibilitavam o funcionamento adequado das atividades mais básicas da instituição e, por conseguinte, de órgãos a ela ligados, como é o caso do Museu Nacional.

Os problemas estruturais do prédio que sofreu o incêndio são antigos. Em 2004, um laudo alertava para os riscos de incêndio, devido especialmente à precariedade das instalações elétricas. Em maio deste ano um conjunto de reportagens realizadas pela imprensa apontavam que esse problema não havia sido resolvido. Além disso, outros problemas estruturais do prédio vinham sendo apontados, pela imprensa e pela gestão do museu, apresentando a urgência de uma solução de longo prazo, demandando para isso não apenas ampliação do orçamento da UFRJ como também recursos para realizar reformas estruturais e inclusive transferir parte do acervo para locais mais adequados. Considerando a tragédia ocorrida, se percebe que pouca coisa ou mesmo nada foi feito para que se solucionasse esses problemas.

Outros órgãos federais, como o Arquivo Nacional e a Biblioteca Nacional, vêm denunciando há algum tempo os problemas estruturais que enfrentam. Não seria uma grande surpresa se os prédios desses órgãos também enfrentassem um incêndio ou alguma outra tragédia. Isso porque há um descaso consciente com esses órgãos, que se materializa nos permanentes cortes orçamentários. Com o projeto de “austeridade à brasileira”, materializado mais recentemente tanto na política de contingenciamento de Dilma como na aplicação do teto de gastos do Temer, o Museu Nacional vinha sistemicamente perdendo recursos, expressando um projeto político que vai muito além da disputa superficial de cores partidárias. Se o orçamento para os museus era pífio nos governos FHC, a ampliação de recursos nos governos do PT, ainda que tenha se dado em parte com recursos estatais, foi marcada por uma esmagadora maioria de investimentos oriundos de isenção fiscal para empresários interessados nesses espaços.

Se há registros de que há, pelo menos, quatorze anos existem graves problemas estruturais do prédio do Museu Nacional e de outros órgãos e nada foi feito pelos mais variados governos que passaram por Brasília, mostra-se outro sintoma ainda mais grave, que é o fato de não haver nenhum compromisso com memória, história e patrimônio. O passado não tem importância para aqueles que mandam na sociedade, sendo considerado como uma despesa contábil que serve apenas para onerar o Estado. Para eles, espaços como arquivos e museus guardam um conjunto de velharias cuja utilidade a sociedade não conhece e para as quais acaba não dando muita importância.

Contudo, esses espaços guardam fragmentos – objetos e documentos dos mais variados – da nossa e de outras culturas. Podem guardar o que restou da vida de outras épocas, abrindo a possibilidade de conhecer nossa própria espécie ou outras que talvez não tenham nem convivido com nossos antepassados. Esses são espaços onde talvez existem inclusive informações sobre outros planetas, que abrem infinitas possibilidades de pesquisa e reflexão.

Para um historiador, um fragmento rasgado de papel pode ser o início de uma grande pesquisa sobre um século inteiro. Para um arqueólogo ossos sujos de terra podem abrir a possibilidade para revolucionar o conhecimento que temos sobre a vida. Para um antropólogo um objeto que hoje olhamos como mera decoração pode ser a chave para começar a compreender culturas inteiras. O que se perde com um incêndio como o do Museu Nacional não é um conjunto de coisas sem valor que podem talvez interessar meia dúzia de visitantes que se interessam apenas em tirar fotos, mas centelhas de conhecimento que já mudaram ou que ainda poderiam mudar a forma como enxergamos o passado, o presente e até mesmo o futuro.

Na medida em que sucessivos governos, de diferentes cores partidárias, que priorizam seus contratos com os setores da burguesia que os financiam e os sustentam, mantêm um completo descaso com o patrimônio cultural e a história, não é equivocado falar que se trata de uma estratégia política que visa o apagamento do passado. Não se trata mais de construir e manter espaços públicos em que a população possa circular, em que seja possível realizar ações intrinsecamente vinculadas ao processo educativo e em que pesquisadores tenham estrutura para produzir novos conhecimentos. O interesse está apenas em produzir mercadorias.

No melhor dos casos, os governos buscam alguma parceria com o setor privado, que, segundo o que vem sendo defendido pela grande imprensa, talvez seja o caminho para a reconstrução do prédio do Museu Nacional. Depois de décadas priorizando seus consórcios partidários com a burguesia, os sucessivos governos permitem a destruição do patrimônio cultural e histórico para depois reconstitui-lo com seus parceiros empresários. Como consequência, não há nenhuma garantia de acesso livre de qualquer pessoa a esses espaços e muito menos para a realização de pesquisas. Inclusive, o que deve ser priorizado ou até mesmo preservado se torna objeto de lucro e de interesses privados desses empresários, apresentados como “amigos da cultura”.

Não é possível dizer que a tragédia do Museu Nacional tenha sido um acidente. Ela é expressão dos interesses capitalistas, que priorizam os lucros privados imediatos e não a preservação dos fragmentos do passado e a possibilidade de construção de novos conhecimentos no futuro. Para conservadores e reacionários, não faria diferença se ainda acreditássemos que a humanidade nasceu no Jardim do Éden ou que a maioria das pessoas morresse em massa por epidemias, desde que seu lucro fosse garantido, pelo livre mercado ou mesmo pelas permanentes benesses do Estado. Para a maioria da população, seria garantida apenas algo como uma terra arrasada da qual mal podem tirar seu sustento, a partir das migalhas que eventualmente caiam das mesas dos poderosos.

Preservar os fragmentos do passado e lutar para que sejam preservados e estejam acessíveis a todos faz parte da luta pela revolução que somente os trabalhadores podem realizar.