Nos últimos anos, observa-se uma série de ações que buscam revitalizar a figura de Joseph Stalin. No Brasil, esse processo vem se manifestando, por exemplo, na difusão de livros do filósofo italiano Domenico Losurdo e na propaganda feita por uma parcela de militantes de organizações de origem stalinista, como o PCB e o PCdoB. Uma mostra disso também se deu quando alguns militantes da UJC, organização de juventude vinculada ao PCB, divulgaram em suas redes sociais a esdrúxula frase “Stálin matou foi pouco”. O fato é que vem ganhando força um conjunto de formas de propaganda, incluindo desde publicações impressas até a difusão de materiais em canais no Youtube, em que eventuais sucessos econômicos e sociais da União Soviética não são apresentados como conquistas da revolução e da economia planejada que se mantinham apesar da degeneração sofrida pelo Estado operário soviético, mas seriam obra de um único indivíduo, ou seja, de Stalin.
Esse fenômeno também vem se materializando no crescimento de organizações abertamente stalinistas. Um caso é a UP, legenda eleitoral criada pelo PCR, que nunca deixou de reivindicar e defender a figura de Stalin e seu legado, mesmo quando outras organizações stalinistas diziam estar superando essa tipo de degeneração teórica. O crescimento da UP na juventude é um dos fenômenos que mais chamam a atenção nessa onda de revitalização do stalinismo. Em 2019, o PCR organizou um evento em homenagem a Stalin, tendo a parceria da URC. Esta é responsável pelo selo editorial Nova Cultura, que vem publicando obras de Stalin e de seus principais colaboradores, além de materiais de difamação a outras correntes, como o trotskismo. O evento organizado em parceria pelo PCR e pela URC chegou a ganhar espaço no jornal Folha de São Paulo.
Considerando os crimes de Stalin e sua política desastrosa para a esquerda ao longo do século 20, que inclui desde a perseguição contra os oposicionistas até acordos com a burguesia e o imperialismo para garantir a manutenção do controle da burocracia no Estado soviético, fica sempre a questão de quais motivos levam qualquer pessoa a reivindicar sua figura. Contudo, quando se faz uma análise que vai além dos fenômenos mais aparentes, percebe-se que o conteúdo político e teórico das formulações desses setores está influenciado pelo stalinismo, se manifestando na estratégia de colaboração de classes ou na revolução por etapas. Um exemplo disso foram os governos de frente popular encabeçados pelo PT, que o PCdoB integrou inclusive indicando ministros. O PCB, por sua vez, além de ter apoiado em seus primeiros anos o governo Lula, posteriormente integrou uma frente em defesa da democracia que, além do PT e do PCdoB, também incluía partidos burgueses e tinha como perspectiva “reconstruir um Brasil soberano e de respeito absoluto ao estado de direito”.
Embora afirmem tê-lo superado, o stalinismo faz parte da trajetória política e teórica do PCB, do PCdoB e de outros grupos. Como pretensos marxistas, esses grupos deveriam saber que a ruptura formal numa votação de congresso não apaga a trajetória e o acúmulo teórico e político que orientou décadas de formulações sobre diferentes conjunturas ou mesmo a interpretação sobre momentos históricos específicos. Além disso, a militância formada a partir de elaborações teóricas e políticas stalinistas não consegue superar plenamente o aprendizado teórico e político pelo qual passou durante anos, ou seja, continua a analisar a conjuntura e as relações sociais a partir do método que aprendeu. Esses quadros mais experientes, por sua vez, influenciam com seus próprios vícios a formação de novas gerações, ou seja, os militantes mais jovens são ensinados a formular suas análises a partir do método e das bases filosóficas e teóricas construídas ao longo de décadas por uma perspectiva que mantém traços stalinistas.
Portanto, ainda que digam ter superado políticas como a de colaboração de classes ou a revolução por etapas, seu olhar sobre a realidade muitas vezes acaba buscando, por exemplo, setores progressistas entre as frações capitalistas ou elementos da democracia burguesa que ainda precisam ser amadurecidos antes que se pense em uma revolução socialista. Por exemplo, o fato de o PCB, mesmo se dizendo em processo de “reconstrução revolucionária”, se dispor a assinar um manifesto com partidos burgueses em defesa da democracia mostra resquícios de sua postura de integração à institucionalidade da Nova República na década de 1980. Nessa perspectiva, ao analisar sua própria história, acabam vendo como ações necessárias de determinadas conjunturas as traições e as ações mentirosas da direção partidária, como o fato de encarar o apoio a João Goulart como um mero erro tático e não uma desastrosa postura estratégica no contexto do golpe de 1964. Por outro lado, nessa leitura equivocada da história, Stalin passa a ser visto como uma figura quase mítica que teria derrotado os nazistas depois de combater os revisionistas e agentes da burguesia que lutaram contra a construção do socialismo na União Soviética. Um marxista procura na luta de classes a explicação para a derrota do nazismo, e não nas características pessoais de um determinado dirigente político. O mais curioso é que Stalin fez acordos com nazistas, assumidamente revisou elementos do marxismo e construiu o arsenal de propaganda mentirosa sobre um sistema econômico que nunca foi alcançado. Portanto, são mentirosas até mesmo as pretensas qualidades que se tenta atribuir a Stalin.
O que se vê atualmente em torno da revitalização da figura de Stalin não passa da reedição do desgastado culto à personalidade. Na propaganda difundida pelos PCs em todo o mundo, ao longo do século 20, Stalin teria sido um “organizador de vitórias” e o “guia genial dos povos”. Folheando as páginas dos órgãos de imprensa publicados pelo PCB, encontra-se a edição do jornal A classe operária, em que o partido lamenta a morte de Stalin, se referindo a ele como “sábio chefe do movimento revolucionário mundial, o defensor intransigente da paz e da independência dos povos, o gênio que guiava o mundo para o comunismo”.1 O legado da revolução de 1917, deturpado e esvaziado politicamente, acabou sendo usado para propagandear a figura de Stalin. O antigo PCB escondia sua política de traição colocando como centro de seu jornal a imagem de Stalin e falando das conquistas alcançadas pela União Soviética, ao mesmo tempo em que defendia o programa de interesse da burguesia. Entre os exemplos de suas traições, está a defesa do nacionalismo, como quando apontava a necessidade de “união de todos os patriotas para a defesa da democracia e da paz”.2
Com o culto à personalidade, o que se tem é uma concepção antimarxista da história e da luta política. Como se sabe, a história está marcada pela luta de classes e o desenvolvimento da sociedade é produto do crescimento das forças produtivas. Nesse sentido, os sujeitos centrais da história não são indivíduos, mas as classes sociais, que estão em luta permanente pelo poder da sociedade. Essa luta entre as classes acaba tendo expressões políticas, ideológicas e até mesmo culturais, que, em última instância, são determinadas pelas condições materiais da sociedade. Um indivíduo não está afastado desse processo, mesmo quando eventualmente se destaca por alguma razão qualquer, sendo, portanto, produto de determinadas condições materiais. Stalin não era uma figura apartada de um coletivo, ou seja, da burocracia que deturpou o legado dos bolcheviques e cuja ação estava voltada para a manutenção dos seus próprios interesses e sua perpetuação no controle do Estado.
Essa concepção antimarxista que norteou o culto à personalidade serve de base para a atual forma de idolatria stalinista, em que, por meio da mediação tecnológica, uma figura superficial é vendida por suas ações pretensamente notáveis. As formas de difusão da imagem dessa figura são as mesmas da construção dos heróis da burguesia. A casca que esconde seu conteúdo político reformista é apresentada como a de um grande dirigente revolucionário. Evita-se mostrar sua verdadeira face às novas gerações, que pouco contato tomou tanto com o aparelho burocrático stalinista como com seus satélites fora da União Soviética. Essas novas gerações conhecem apenas a ofensiva das classes dominantes depois do fim da União Soviética e o ascenso de demagogos de extrema direita como Trump e Bolsonaro. Com isso, o discurso de idolatria a Stalin acaba encontrando sustentação em um passado histórico que pouco conhecem, mas que é apresentado pelos herdeiros do stalinismo como vitorioso e heroico.
Um fator que amplia esse problema tem relação com a completa ausência de uma direção revolucionária dos trabalhadores. O período de ofensiva da burguesia depois do fim da União Soviética é também marcado pelo ferrenho combate contra o marxismo e pela defesa da ideia de fim das classes sociais ou mesmo de “fim da história”. Os partidos stalinistas se integraram completamente à ordem burguesa, a exemplo do antigo PCB, que abandonou a revolução e o marxismo, e se transformou em PPS, e hoje responde pelo nome Cidadania. Por sua vez, os partidos social-democratas, de caráter reformista, a exemplo do PT, ao assumirem o governo em diferentes países, aplicaram o programa de interesse do capital enquanto distribuíam migalhas para a população mais pobre. Em paralelo, nas universidades difunde-se um marxismo dócil e institucionalizado, que se mostra simpático com os setores “oprimidos” ou “populares”, discutindo esses temas como se fossem uma mera abstração sem relação com a luta de classes.
Esse cenário de recuo político das principais organizações de esquerda e de combate à ideia da revolução fez com que se criassem modismos para desviar as lutas dos trabalhadores e dar novas roupagens ao reformismo. Um desses modismos foi a ideia de “mudar o mundo sem tomar o poder”, difundida pelo cientista político John Holloway, para o qual “a única maneira de se imaginar agora a revolução é como a dissolução do poder, não como a sua conquista”.3 O problema é que a realidade se mostrou mais complexa do que abstrações teóricas e, logo no começo dos anos 2000, os trabalhadores estavam diante da necessidade concreta e urgente de tomar o poder em países como Argentina, Bolívia e Equador. Contudo, as direções desses processos revolucionários optaram por uma saída gradualista, como a defendida por Holloway, permitindo que o poder permanecesse nas mãos da burguesia.
Outro modismo produzido nos meios acadêmicos e que recebeu a simpatia da burguesia foi a criação de partidos que, criticando o legado leninista, reuniam amplos setores que se reivindicavam anticapitalistas. Esses partidos não pretendiam se constituir como uma vanguarda da classe trabalhadora, mas como a unidade de setores da esquerda. Essa experiência teve sua primeira expressão na França, com a dissolução da LCR, que havia abandonado o trotskismo e uma perspectiva revolucionária, para formar o NPA, e no Brasil com a fundação do PSOL. No primeiro caso, amplos setores vieram a abandonar o partido e se somaram a outra agremiação, o França Insubmissa, e, no Brasil, o PSOL vem se tornando uma sublegenda do PT e se consolidando como um aliado de partidos burgueses.
Outros modismos passaram pela esquerda, como o movimento antiglobalização, que, apesar dos métodos de luta por meio da ação direta, se perdeu, de um lado, pela existência de setores sectários e voluntaristas e, de outro, pela cooptação de diversas lideranças pelos aparatos da burguesia. O principal desses aparatos certamente foi o Fórum Social Mundial, onde os reformistas de todo o mundo expunham suas experiências de colaboração de classes e articulavam uma unidade mundial de defesa de um “capitalismo mais humano”. Este, como os outros modismos reformistas, não passa da elaboração teórica e política de setores das classes médias apartados da luta concreta dos trabalhadores.
O processo de revitalização da figura de Stalin tem as mesmas bases desses modismos que enfraqueceram as lutas dos trabalhadores nas últimas décadas. A versão requentada do stalinismo faz promessas de ação direta, ao reivindicar uma figura que, segundo a retórica difundida, era uma liderança prática e não um teórico, numa tosca comparação entre Stalin e Trotsky. Por outro, esconde o conteúdo político que contém a figura de Stalin, que, apesar de falar em socialismo e revolução, sempre encontrou justificativa para que os trabalhadores não tomassem o poder ou, se o fizessem, que procurassem como aliados setores “progressistas” em outras classes. Na versão reformistas criada pelo stalinismo, o proletariado nunca está pronto para tomada do poder e, por isso, deve sempre procurar novas alianças e garantir que a democracia burguesa seja defendida. Essas foram as justificativas para destruir por dentro a Revolução Espanhola e procurar controlar a mobilização do proletariado da França, por meio da frente popular, em 1936.
Essa revitalização do stalinismo é um fenômeno que tanto vem chamando a atenção de jovens no Brasil. Por um lado, faz promessas de mobilizações e lutas. Por outro, na medida em que se constitui em uma deturpação contrarrevolucionária do marxismo, o stalinismo ganha espaço de difusão até mesmo na mídia burguesa, inclusive para seus divulgadores nos meios acadêmicos, como no caso de Losurdo. Pode-se afirmar que a revitalização da figura de Stalin não passa de uma nova aparência assumida pelo culto à personalidade, sendo difundido em uma nova roupagem por figuras identitárias que se comunicam por meio de ferramentas tecnológicas. Somente a compreensão do marxismo e o estudo das revoluções dos séculos 19 e 20, bem como de outros processos protagonizados pelos trabalhadores, poderão garantir o combate à proliferação desse stalinismo pretensamente renovado que se alimenta de frases de efeito no Twitter.
Notas:
1 “Glória eterna ao camarada Stalin”, A Classe Operária, 15 de março de 1953.
2 A Classe Operária, 5 de outubro de 1946.
3 John Holloway. Mudar o mundo sem tomar o poder: o significado da revolução hoje. São Paulo: Viramundo, 2003, p. 37.