Detalhe de "Retirantes" (1994), por Cândido Portinari

Os trotskistas e a interpretação marxista sobre o Brasil

O centenário da Oposição de Esquerda (OE), criada contra o processo de stalinização do Partido Bolchevique e impulsionada por Leon Trotsky a partir de 1923, não deve ser apenas um fato comemorativo, mas também de reflexão sobre a história do trotskismo e as contribuições teóricas e políticas da 4ª Internacional. No Brasil, onde a OE começou a se organizar a partir de 1928, essa reflexão passa necessariamente pelo estudo do texto “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil”1. Assinado por M. Camboa e L. Lyon, pseudônimos de Mario Pedrosa e Lívio Xavier, ambos fundadores do trotskismo no Brasil, em meados do ano de 1930, o “Esboço” foi publicado pela primeira vez no jornal A Luta de Classe, em sua edição de fevereiro de 1931. Em 1987, ao apresentar uma coletânea de textos produzidos pela primeira geração de trotskistas do Brasil, um de seus fundadores, Fúlvio Abramo, afirmou que no “Esboço” foi feita, “pela primeira vez no Brasil, um esforço sério para compreender a formação nacional a partir da situação de colônia e, depois, de país independente”, em contraste com o PCB, que “não levantara qualquer estudo sério sobre a caracterização da situação nacional” (p. 36).

Essa ponderação feita por Abramo não é por acaso, afinal o “Esboço” foi elaborado em um contexto de fortes divergências no interior do PCB que culminou na formação de oposições à direção do partido, no final dos anos 1920. Neste processo foi construído o Grupo Comunista Lênin (GCL), entre 1929 e 1930, em torno de ex-militantes do PCB como Mário Pedrosa, Lívio Xavier e Rodolpho Coutinho, entre outros. Formado inicialmente com o objetivo de conferir homogeneidade teórica e política ao grupo de ex-militantes do PCB, o GCL atuava publicamente por meio do jornal A Luta de Classe. Com a criação da Liga Comunista do Brasil (LC), em janeiro de 1931, o grupo mostrava uma maior organicidade política e organizativa, atuando de forma mais efetiva no movimento operário.

Desse processo de articulação em torno da política da OE em âmbito internacional e, particularmente, das ideias de Trotsky é produto a elaboração tanto de análises sobre a conjuntura, marcada centralmente pela chamada “revolução” de 1930, quanto o estudo da formação brasileira, expresso principalmente no “Esboço”. Embora redigido por Pedrosa e Lívio Xavier, o “Esboço” foi resultado dos debates entre os militantes que formavam o GCL e, depois, a LC, ou seja, é uma elaboração coletiva que traduziu o acúmulo das discussões realizadas por aquele grupo em relação ao caráter da formação social brasileira e, por conseguinte, sobre as tarefas que se colocavam para os revolucionários naquela conjuntura.

Neste sentido, é visível a crítica presente no “Esboço” às teses defendidas pelo PCB sob influência do stalinismo e de capitulação a setores da burguesia e da pequena burguesia. O PCB, até aquele momento, tinha como principal elaboração apenas uma brochura de Octávio Brandão, intitulada Agrarismo e industrialismo, publicada em 1926. Aristides Lobo, também um dos fundadores do trotskismo do Brasil, definia, em 1931, o texto de Brandão como uma tentativa de análise “antimarxista desastrosa” (p. 75). Brandão, expressando as ideias stalinistas em germinação no interior do PCB, defendia que na sociedade brasileira predominavam os “agraristas”, ou seja, os latifundiários aliados aos financistas ingleses, setor contra o qual se insurgiam os “industrialistas”, ou seja, industriais e pequeno burgueses. Caberia ao proletariado, nesse cenário, lutar ao lado dos “industrialistas” contra os “agraristas”, até a vitória destes e a consolidação de uma revolução burguesa no Brasil. Embora ainda em germinação, estavam dadas as bases para as ideias de “revolução por etapas” e de apoio à “burguesia progressista”, desenvolvidas pelos stalinistas ao longo do século 20.

O “Esboço”, desenvolvendo as ideias trotskistas, apresenta uma perspectiva diferente daquela de Brandão e do PCB. Pedrosa e Xavier afirmam que o Brasil, desde o início de sua história, esteve ligado ao mercado capitalista internacional:

“A burguesia brasileira nasceu no campo, não na cidade. A produção agrícola colonial foi destinada desde o começo aos mercados externos. O Brasil foi, no século XVII, o principal produtor de açúcar do mundo. Dos dois eixos de colonização, Bahia – Pernambuco e São Paulo – Rio de Janeiro, o primeiro alcançou sobre o segundo uma vantagem considerável” (p. 64-65).

Partindo dessa perspectiva, pode-se concluir que não havia uma oposição entre industrialistas e agraristas. O Brasil, ao participar no mercado capitalista mundial desde a colonização, deixava de lado qualquer possibilidade de as classes agrárias apresentarem hostilidade ao capitalismo. Além disso, cabe destacar que a relação do Brasil como colônia fornecedora de matérias-primas ao mercado europeu moldou as características que o capitalismo assumiu no país.

Em âmbito interno, Pedrosa e Xavier identificam a nascente burguesia brasileira com os cafeicultores do estado de São Paulo:

“Todas as condições necessárias para a grande produção estavam reunidas: terras virgens, ausência de rendas fundiárias, possibilidade de maior exposição na produção, numa palavra, possibilidades de monocultura. Assim, o cafeicultor faz convergir simultaneamente todos os seus meios de produção para um único objetivo e, por conseguinte, obtém benefícios até então desconhecidos. O tipo de exploração determinou, portanto, prosperidade favorável ao desenvolvimento do capitalismo sob todas as suas formas.” (p. 66)

Pedrosa e Xavier ressaltaram o fato de que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil ocorreu paralelamente à sua integração na economia mundial. Pedrosa e Xavier enfatizam a desigualdade do capitalismo no plano internacional, onde os “países coloniais” possuem seu ritmo próprio de desenvolvimento e certa peculiaridade, definida pela combinação entre os elementos mais avançados do capitalismo e as condições materiais e culturais dos países atrasados. Reforçam esse argumento ao se referirem ao surto industrial e a maior penetração capitalista no Brasil. Em determinado momento do documento, afirmam:

“As lutas políticas que a República conheceu até agora e que se produzem, geralmente, por ocasião das eleições presidenciais, desenrolam-se ao redor dos grupos políticos dominantes no estado de São Paulo. A diferenciação econômica entre os estados da federação acentua-se cada vez mais. A burguesia de São Paulo, aliada à de Minas Gerais, conquistou o governo federal. Os representantes parlamentares dos estados secundários tornaram-se representantes do poder central nos estados, ao invés de – segundo a ficção constitucional – representar os estados juntos ao poder central. Mas o processo econômico estendeu-se pouco a pouco a todo o território brasileiro e o capitalismo penetrou todo o Brasil, transformando as bases econômicas mais retardatárias.” (p. 67)

Portanto, ainda que de forma desigual, as relações de produção capitalista se desenvolveram no Brasil, expressando a inter-relação entre as condições econômicas e políticas nacionais e internacionais. Nesse processo:

“o Brasil integra-se cada vez mais à economia mundial e entra na esfera de atração imperialista. Com a Grande Guerra e o protecionismo, o crescimento industrial acentuou-se, complicando as relações de classe e os problemas decorrentes.” (p. 67-8)

Uma das consequências desses limites no desenvolvimento capitalista e sua relação orgânica com o imperialismo passa justamente pela fragilidade da burguesia, que se mostra incapaz de encabeçar um processo de transformação social. Nesse sentido, afirmam os autores do “Esboço”:

“A penetração do imperialismo é um revulsivo constante que acelera e agrava as contradições econômicas e as contradições de classe. O imperialismo altera constantemente a estrutura econômica dos países coloniais e das regiões submetidas à sua influência, impedindo o seu desenvolvimento capitalista normal, mal permitindo que esse desenvolvimento se realize de maneira formal nos limites do Estado.” (p. 68)

Essas elaborações expressam claramente a influência trotskista, especialmente a teoria do desenvolvimento desigual e combinado. Um de seus desdobramentos disso passa pela incapacidade histórica e política da burguesia em fazer uma revolução e consolidar um regime democrático burguês aos moldes daquele estabelecido na Europa. Pedrosa e Xavier escreveram que, por conta da submissão ao imperialismo:

“a burguesia nacional não tem bases econômicas estáveis que lhe permitam edificar uma superestrutura política e social progressista. O imperialismo não lhe concede tempo para respirar e o fantasma da luta de classe proletária tira-lhe o prazer de uma digestão calma e feliz. Ela deve lutar em meio ao turbilhão imperialista, subordinando sua própria defesa à defesa do capitalismo. Daí, sua incapacidade política, seu reacionarismo cego e velhaco e – em todos os planos – sua covardia.” (p. 68)

Neste caso, não caberia aos marxistas a perspectiva de unidade ou de apoio em relação a quaisquer frações da burguesia. Pelo contrário, contra o etapismo stalinista, os trotskistas colocavam a necessidade da independência de classes para lutar pela revolução socialista, o que necessariamente deveria assumir as tarefas não cumpridas pela burguesia, lutando contra o latifúndio e a burguesia industrial e seus aliados imperialistas.

O exemplo dessa necessidade de independência do proletariado em luta se mostrou na “revolução” de 1930, que não significou nada mais do que a reorganização das frações burguesas no controle do Estado. Pedrosa e Xavier apontavam no “Esboço” que o caráter reacionário da burguesia tinha como consequência um processo de centralização do aparato estatal. Nesse sentido, o levante ocorrido outubro de 1930 revelava que o processo de centralização no Brasil ainda não havia encontrado uma fórmula definitiva:

“O levante atual marca um momento desse processo. Os Estados revoltados procuram resolver pelas armas a violenta contradição que opõe a forma política federativa ao desenvolvimento pacifico das forças produtoras. A burguesia brasileira procura uma forma conciliadora entre a tendência à centralização do governo e a forma federativa, garantia da unidade política do Brasil.” (p. 72)

Os trotskistas, ao se posicionar em relação às disputas entre as frações burguesas sem buscar um fantasioso segmento “progressista”, foram capazes de identificar a tendência ao bonapartismo, que caracterizou o governo de Getúlio Vargas:

“Nos países novos, diretamente subordinados ao imperialismo, a burguesia nacional, ao aparecer na arena histórica, já era velha e reacionária, com ideais democráticos corruptos. A contradição que faz com que o imperialismo – ao revolucionar permanentemente a economia dos países que lhe são submetidos – atue como fator reacionário em política encontra a sua expressão nos governos fortes e na subordinação da sociedade ao poder executivo.” (p. 68-9)

No final do “Esboço”, Pedrosa e Xavier apontaram que qualquer conquista para os trabalhadores viria apenas de sua própria luta e organização. Nesse sentido, sua tarefa mais urgente passava pela “criação de um verdadeiro partido comunista de massas, capaz de conduzi-lo para sua tarefa histórica: a instauração de uma ditadura proletária e a salvaguarda da unidade nacional mediante a organização do Estado soviético” (p. 74).

Com esta e outras elaborações produzidas na década de 1930, os trotskistas brasileiros apresentavam um documento que, apesar das poucas páginas, não apenas explicava os elementos estruturais que marcavam aquela conjuntura como a relacionam ao processo de formação econômica e política do Brasil. Esse primeiro esboço de uma interpretação marxista do Brasil teve a importância não apenas de orientar politicamente os revolucionários, contra a capitulação stalinista do PCB à direção burguesa pretensamente “progressista”, como também influenciou a produção acadêmica. Muitos pesquisadores, entre os quais Caio Prado, Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira, a partir de estudos empíricos realizados posteriormente, demonstraram a correção das teses apresentadas por Pedrosa e Xavier.

Coube à primeira geração de trotskistas, por meio da elaboração coletiva sistematizada por Pedrosa e Xavier, apresentar o método e os elementos centrais de análise, que permitiram compreender o desenvolvimento do capitalismo e o processo de revolução burguesa no Brasil. Hoje, para os marxistas, partindo deste legado político e teórico, cabe entender a dinâmica do capitalismo e seus desdobramentos políticos, organizando os trabalhadores no sentido da revolução e construindo o partido revolucionário.

* ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL TEMPO DE REVOLUÇÃO 28. ASSINE E APOIE A IMPRENSA OPERÁRIA.

1 Nas citações do “Esboço”, foram indicadas apenas as páginas da seguinte edição: ABRAMO, Fúlvio; KAREPOVS, Dainis. Na contracorrente da história: documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940. São Paulo: Editora Sundermann, 2015.