A revolta contra o Novo Ensino Médio (NEM) existe e continua indignando estudantes e trabalhadores em educação em todo o país. Essa é a base real e objetiva que tem o potencial de mobilizar os secundaristas e professores. Ao mesmo tempo, junto com essa indignação operam, por um lado, a Consulta Pública – tática do governo Lula-Alckmin para canalizar o movimento para as instituições, onde eles têm o controle dos instrumentos, que está sendo composta por setores privatistas e que não aborda diretamente a revogação do NEM – e, por outro, a traição das direções do movimento estudantil e sindical – que esvaziaram os atos de rua e a greve nacional da educação e desde o dia 26 de abril não convocaram e organizaram mais nenhuma mobilização junto à base de estudantes e trabalhadores em educação.
Agora, uma nova frente de discussão se abre em torno do Projeto de Lei (PL) 2601/23, que nós consideramos o PL da Revogação do NEM: ainda que não seja a revogação integral da Lei, revoga o central e constrói amarras que impossibilitam a implementação do NEM. Esse PL foi elaborado por pesquisadores do Ensino Médio e apresentado por parlamentares do PSOL e do PV em 16 de maio. A Esquerda Marxista e a Liberdade e Luta apoiam o PL 2601/23 e neste artigo apresentaremos os motivos, bem como nossa perspectiva de como utilizá-lo, com total autonomia e independência de classe.
Qual o conteúdo do PL 2601?
Quando o NEM foi aprovado, alterou-se a LDB (Lei nº 9394 que estabelece as diretrizes e bases da educação). Por isso, o PL tem como objetivo alterar a mesma Lei. Alguns pontos que consideramos centrais:
1. Acaba com os itinerários formativos e restabelece as disciplinas comuns obrigatórias:
O PL mantém a divisão das disciplinas em áreas do conhecimento e restabelece todas as disciplinas como obrigatórias, a saber:
- Linguagens (Língua Portuguesa; Língua materna para populações indígenas; Línguas estrangeiras; Artes em suas diferentes linguagens; Educação Física);
- Matemática;
- Ciências da Natureza (Biologia, Física, Química);
- Ciências Humanas (História, Geografia, Sociologia e Filosofia);
Todos os estudantes voltarão a ter acesso a todas as disciplinas e estas serão obrigatórias. Os itinerários formativos acabam. Haverá uma parte diversificada, caso o PL seja aprovado, que poderá ser definida em cada sistema de ensino, assim como era previsto antes do NEM.
2. Restabelece 2400 horas como carga horária para as disciplinas obrigatórias, como era antes;
Com o NEM, houve uma redução da carga horária, apesar da propaganda do governo dizer que houve aumento. O que aconteceu com o NEM é que a carga horária obrigatória foi reduzida e dividida com os itinerários formativos. Em São Paulo, por exemplo, a carga horária comum obrigatória com o NEM é de 1800 horas durante os três anos e 1350 de itinerários formativos, totalizando 3150 horas. O PL propõe que a carga horária comum obrigatória volte a ser 2400 horas nos três anos e que as demais 600 horas previstas possam ser distribuídas no que chamam de parte diversificada.
3. Restabelece o diploma com certificado nacional;
O NEM implementou uma forma de organização que permite o sistema de créditos (para as disciplinas) bem como um ensino modular. Com isso, é possível a emissão de certificados intermediários e parciais que, grosso modo, significa o fim do Ensino Médio, já que um estudante poderá ter um diploma sazonal que não tem validade nacional.
Ou seja, é a previsão de que a iniciativa privada “treine” jovens para atividades específicas, de regiões específicas e que os diplomas oriundos dessa formação não permitam que ele entre na universidade. Por outro lado, prevê que, a depender da disciplina, podem ser aceitos para eliminar matérias no Ensino Superior, precarizando ainda mais a formação universitária. Isso é o que dá base para uma nova contrarreforma universitária. O PL propõe revogar os pontos II do inciso 6º e os incisos 9º e 10º do artigo 36º da Lei 9.394/96 que estabeleceu esse ataque.
4. O estudante não vai mais precisar escolher entre áreas do conhecimento;
Com o NEM, de acordo com cada sistema de ensino, os estudantes são obrigados a escolher que área do conhecimento querem, supostamente, se aprofundar. Ao escolher ciências humanas, por exemplo, o estudante pode não ter acesso aos conhecimentos de ciências da natureza, por exemplo. O PL propõe revogar esse ataque através da revogação do inciso 12º do artigo 36º da Lei 9.394/96.
5. Os estudantes e professores não vão mais precisar atingir objetivos de habilidades e competências da BNCC;
A Base Nacional Curricular Comum (BNCC) foi aprovada após a reforma do Ensino Médio, em 2018. Ela estabeleceu a mudança da ênfase dos conteúdos das disciplinas para as habilidades e competências em cada área, secundarizando o conteúdo a ser abordado em cada disciplina. O professor precisa reduzir os conteúdos para atingir os objetivos dessas habilidades e competências para supostamente fornecer um ensino técnico e profissional. Isso é uma farsa, pois até mesmo em escolas técnicas houve redução de conteúdo para atingir as tais metas. O PL propõe acabar com a BNCC e com as habilidades e competências através da revogação dos incisos 7º e 8º do artigo 35-A e do inciso 3º do artigo 44º da Lei 9.394/96.
6. Revoga o notório saber;
O NEM estabeleceu o chamado “notório saber”, isto é, profissionais sem licenciatura, um conhecimento específico obtido na graduação universitária para atuar em sala de aula. Mesmo sem licenciatura, esses profissionais podem dar aula, através de contratos precarizados. Na prática, esse ataque promove a destruição da profissão dos professores. O PL propõe acabar com o “notório saber” através da revogação do inciso 4º do artigo 61 da Lei 9.394/96.
7. Barra o avanço da iniciativa privada e da Educação a Distância, o EaD, no Ensino Médio;
O NEM como projeto de educação, alinhado aos interesses do imperialismo e do capital, pretende abrir um novo mercado para a burguesia lucrar. Por isso, está prevista e está sendo organizada pelas organizações patronais a inserção da iniciativa privada, através de parcerias, na educação básica pública. Com o NEM, empresas privadas podem entrar no Ensino Médio com profissionais precarizados e venda de cursos em EaD, seja nos itinerários formativos, seja nas disciplinas da parte obrigatória. O PL propõe revogar as parcerias público-privadas previstas no ponto I do inciso 6º, no inciso 8º e 11º da Lei 9.394/96.
8. Desvincula a referência na BNCC para formação de professores;
O Novo Ensino Médio prepara e já está colocando em curso um ataque às universidades. Além dos diplomas intermediários de um grau inferior serem aceitos para eliminação de matérias em um grau superior do ensino (o que evidentemente rebaixa a formação superior), o NEM também estabelece que os cursos de licenciatura devem ter por referência a BNCC. Daí que cursos de licenciatura que não têm referência na BNCC podem ser sucateados até o fechamento ou sequer oferecidos, como por exemplo a habilitação em alemão e até mesmo espanhol nos cursos de licenciatura em português, já que não são disciplinas previstas pela BNCC.
Para nós, o centro do debate é a defesa da educação pública, gratuita e para todos que o NEM destrói. Esse é o debate fundamental e a bandeira que levantamos. O projeto de lei em seu conteúdo, portanto, toca na maior parte dos pontos fundamentais no que tange a essa bandeira histórica do movimento estudantil e operário e na reivindicação imediata dos estudantes, a revogação do NEM.
Quais os pontos frágeis do PL?
O PL não resolve todos os problemas da educação brasileira, mas trata centralmente de revogar o NEM. Nesse sentido, há alguns pontos frágeis no conteúdo do projeto de lei e que consideramos pertinentes destacar para abrir o debate.
1. Mantém o Ensino Integral sem política de permanência estudantil;
Associado ao NEM, foi estabelecido o Projeto de Ensino Integral (PEI). Nós somos a favor do Ensino Integral, esta é uma bandeira histórica dos trabalhadores. Entendemos que o jovem até 16 anos tem como principal direito os seus estudos. Contudo, o PEI é profundamente excludente, pois acaba com o turno noturno, sem dar qualquer condição de permanência do jovem trabalhador na escola, aumentando em muito a evasão escolar.
Em nossa concepção, o Ensino Integral deve ser acompanhado de política de permanência estudantil no Ensino Médio, ou seja, associada à bolsa de estudos, para garantir que esse estudante possa se manter estudando naquela unidade escolar, que todo estudante tenha alimentação gratuita no tempo de permanência na escola; que tenha roupas fornecidas pelo Estado; que tenha uma formação politécnica, englobando a ciência, a cultura e o esporte; que a escola tenha estrutura com biblioteca, computadores, laboratórios e todos os materiais necessários. O Ensino Integral não deveria fechar escolas ou turnos, mas ampliar a quantidade de escolas e a contratação de profissionais. A PEI dentro do NEM é uma distorção absoluta dessa concepção e por isso que nos opomos à forma como o projeto é aplicado e concebido.
O PL 2601 mantém o Ensino Integral tal como está e por isso consideramos que este é um ponto bastante frágil do documento.
2. Não há carga horária mínima para cada disciplina e obrigatoriedade em todos os anos;
A carga horária de 2400 horas nos três anos deverá ser distribuída de maneira “equilibrada” entre as disciplinas obrigatórias, segundo o texto do PL. O fato é que essa distribuição será feita pelos governos estaduais podendo atender a interesses quais ou tais dos governos dos estados (leia-se: os interesses da burguesia que aquele estado representa). Outra consequência disso é que não há obrigatoriedade de todas as disciplinas em todos os anos do Ensino Médio. Assim, uma exigência da categoria dos professores reaparece, que é que todas as disciplinas obrigatórias tenham pelo menos dois tempos de aula, que as disciplinas tenham carga horária mínima de norte a sul do país e que sejam obrigatórias em todos os anos do Ensino Médio.
3. A parte diversificada não tem obrigatoriedade presencial;
A parte diversificada não tem especificação sobre a modalidade presencial ou a distância no PL. Isso pode manter a lógica do ensino a distância no Ensino Médio. Nós defendemos a tecnologia para a educação, mas nos opomos ao EaD porque representa um ataque à estrutura do ambiente escolar, aos professores, aos estudantes e sobretudo tira o direito de socialização dos jovens e tenta jogá-los ao mercado de trabalho, com mão de obra barata em virtude da desqualificação.
Os limites da luta parlamentar
A burguesia se utiliza das leis para organizar a sua dominação e quando desobedecemos às leis somos penalizados com o braço armado do Estado, as polícias. Ao mesmo tempo, a luta de classes também passa pelo parlamento e seria um erro sectário se ignorássemos isso. É preciso entender como funciona o parlamento para entendermos os limites da luta parlamentar.
Um projeto de lei pode ser apresentado por qualquer deputado, senador, comissão e até mesmo pelo próprio presidente. Após a apresentação, o projeto de lei tramita na instância em que foi apresentado – neste caso, na Câmara dos Deputados – e depois é revisado pelo Senado. Um projeto de lei pode ser votado em regime de urgência se o plenário aprovar o requerimento e esse pedido pode ser feito inclusive pelo presidente da República, como foi feito por Lula no PL do arcabouço fiscal. Após essa tramitação, o projeto pode ser sancionado ou vetado pelo presidente da República. Em cada uma dessas etapas o PL original pode ser alterado com as emendas, então a versão final pode ser muito diferente daquela apresentada inicialmente, isso vai depender da correlação de forças dentro do parlamento e fora dele, através da mobilização e pressão popular.
Como podemos ver, a tramitação é morosa e no meio do caminho as emendas podem modificar o projeto positivamente ou negativamente, a partir do ponto de vista da classe trabalhadora. É um cabo de guerra, onde a burguesia tem melhores condições de fazer valer sua vontade, seja através da corrupção ativa, seja por engavetar sua tramitação, modificá-lo para pior com emendas e até mesmo derrotar o projeto, já que eles são maioria. Ao mesmo tempo, em situações em que há mobilizações de massa, com manifestações, greves etc., a luta fora do parlamento pode impor a vontade das ruas para dentro do parlamento.
Há setores do movimento operário que pretendem com a apresentação de um projeto de lei, canalizar a luta para dentro das instituições burguesas e, portanto, alimentar ilusões no parlamento e na democracia burguesa. A democracia burguesa não passa da ditadura da burguesia e seu parlamento é uma expressão de seus interesses, seu balcão de negócios. Nós, por outro lado, não temos e não reforçamos ilusões de que a luta parlamentar vai resolver nossos problemas. Reconhecemos que apesar de sermos maioria como classe, somos minoria no parlamento e, por isso mesmo, temos que nos apoiar e acreditar sempre em nossa própria organização. Como explicamos, é apenas com a luta fora do parlamento que temos alguma chance de pressionar pelos nossos interesses dentro de uma instituição organizada para atender aos interesses da classe inimiga.
Nossos métodos de luta
Na nossa luta pela revogação do Novo Ensino Médio é preciso confiar apenas em nossas próprias forças e isso significa aumentar nosso nível de organização em cada local. Isolada nossa indignação não se transforma em força para a luta. Por isso, é fundamental nos organizarmos junto àqueles que querem fazer algo a respeito. Em nossa escola, podemos começar coletando a assinatura de outros estudantes e professores que querem revogar o NEM. A partir daí, convidamos essas pessoas para discutir a situação atual da luta e o que podemos fazer: seja uma atividade pública, seja uma panfletagem ou uma nova coleta de assinaturas.
A partir das pessoas dispostas, podemos organizar um comitê pela revogação do NEM e nos reunir de tempo em tempo para discutir as atualizações da luta, como por exemplo, o significado da consulta pública, outras experiências de comitês e o PL 2601.
Outra forma de lutar é construir ou reconstruir grêmios independentes e de luta nas escolas. O grêmio é a entidade máxima dos estudantes no âmbito da escola e pode cumprir um importante papel na luta pela revogação ao mobilizar a discussão entre os estudantes, organizar assembleias, debates e até mesmo em conjunto com outros grêmios, manifestações pela cidade. Os professores podem ajudar nessa tarefa, mas os estudantes têm que ter total independência para tomar suas decisões e deliberações.
Os professores que estão na luta pela revogação podem organizar reuniões junto aos demais professores e mediar a ponte junto à comunidade de pais e responsáveis, para discutir o problema do NEM com todos os interessados e atingidos por esse ataque. Em seus sindicatos, podem agir em prol da mobilização de outras unidades escolares e até mesmo na construção de greves e manifestações de rua.
O que não podemos é achar que a luta acabou na consulta pública ou com a apresentação de um projeto de lei. Muito pelo contrário. Temos que seguir aumentando o nosso nível de organização se quisermos derrotar o NEM e outros ataques à educação pública.
Lula, revogue o NEM!
Lula pode revogar o NEM a qualquer momento. Contudo, ele já disse repetidas vezes que não vai revogar, que vai “discutir” primeiro e depois vemos o que fazer. Na verdade, ele não está comprometido com a revogação e isso precisa ser dito. Os interesses que ele está defendendo são contra a revogação do NEM e por isso ele não toma uma atitude a respeito.
A apresentação de um projeto de lei tira a pressão de Lula? De certa forma sim, pois o PL redireciona o debate e a deliberação para o Congresso Nacional. Por outro lado, isso obrigará que deputados e senadores do PT e dos partidos que se reclamam da classe trabalhadora a se posicionarem, o que é positivo, pois assim conheceremos suas posições.
Ao mesmo tempo, Lula pode revogar o NEM e a pressão sobre ele não deve diminuir ou arrefecer diante da apresentação de um projeto de lei. Por isso, devemos continuar também agitando a palavra de ordem “Lula, revogue o NEM” entre jovens e trabalhadores. Essa consigna é fundamental para responsabilizar Lula e ao mesmo tempo ela também unifica o movimento.
Consulta Pública
A farsa da consulta pública termina em 06 de junho. Até lá, há seminários esvaziados e com debatedores pró Novo Ensino Médio e questionários capciosos sendo aplicados pelo governo. Nada disso nos interessa. Não há uma pergunta direta aos estudantes e trabalhadores se são a favor ou contra a revogação. Em 06 de junho o governo deverá apresentar um relatório final da consulta, cuja finalidade será manter ou modificar umas poucas vírgulas no modelo vigente. E pior, tendo o véu de um suposto debate com a comunidade. É possível também que o governo prolongue a farsa por mais 90 dias. É por isso que rechaçamos a consulta pública e denunciamos a farsa que ela representa. Leia mais sobre no último editorial do jornal Tempo de Revolução.
Encontro Nacional da Liberdade e Luta 2023: Estamos fartos do capitalismo, exigimos um futuro!
O Encontro Nacional da Liberdade e Luta vai agrupar ativistas e militantes de diversos estados do país para discutir e fazer deliberações sobre a campanha pela revogação do NEM e o projeto de escola que queremos. Vamos discutir a defesa e a história da educação pública, gratuita e para todos no Brasil e no mundo e as contribuições e críticas aos modelos de educação freiriano e popular. Além disso, haverá também um informe sobre as experiências da educação e da pedagogia soviética e socialista. Será um encontro de um dia e meio em São Paulo que contará com presenças internacionais bem como discussão de conjuntura internacional e nacional e de formação teórica sobre os princípios básicos do comunismo. Se você leu até aqui, também deve estar farto do capitalismo e de todos os ataques à educação pública. Você também quer revogar o NEM e quer lutar por um mundo novo. Participe do Encontro Nacional da Liberdade e Luta, nos dias 29 e 30 de julho em São Paulo.