Ilustração: Henry Codex e Evandro Colzani

Por que devemos estudar a Revolução Russa de 1917?

No próximo sábado (30/10), às 15h, ocorrerá a aula aberta online com o tema “A Revolução Russa”. A atividade faz parte da Universidade Marxista Brasil e ocorrerá de forma online (pelo Zoom). Para participar, basta realizar a inscrição pelo link: https://tinyurl.com/UMB-Russa

Em 1924, Leon Trotsky chamava a atenção para a escassez de obras produzidas acerca da Revolução de Outubro: “ainda não dispomos de uma única obra que forneça um quadro geral da Revolução de Outubro, ressaltando os seus principais momentos do ponto de vista político e organizacional”. Trotsky seguia ponderando que, depois da vitória da insurreição do ponto de vista prático, parecia que havia se decidido nunca mais repeti-la, não se esperando nem mesmo “uma utilidade direta do estudo de Outubro e das condições de sua preparação imediata, quanto às tarefas urgentes de organização posterior1.

Trotsky entendia que esse era um problema a ser enfrentado. Essa necessidade ficou ainda mais evidente diante das mentiras e deturpações propagadas pelo stalinismo. Em 1924, no contexto em que estava escrevendo, Trotsky entendia ser preciso “pôr na ordem do dia, no Partido e em toda a Internacional, o estudo da revolução de Outubro. É preciso que todo o nosso Partido e particularmente as Juventudes, estudem minuciosamente a experiência de Outubro, que nos forneceu uma verificação incontestável do nosso passado e nos abriu uma ampla porta para o futuro2.

Para Trotsky, além de permitir conhecer o passado e mostrar possíveis perspectivas para o futuro da União Soviética, a difusão dos materiais e o estudo sobre a Revolução de Outubro era necessário, entre outras coisas, porque o proletariado dos demais países teria “que resolver ainda o seu problema de outubro3. Isso não significava que a experiência russa deveria ser um modelo a ser seguido mecânica e cegamente pelos demais partidos, afinal “cada povo, cada classe e até cada partido se educam principalmente a partir de sua própria experiência4. Para os demais países, como o foi para a Rússia, seria preciso um conhecimento profundo da situação econômica e política concreta, identificando a dinâmica própria da luta de classes e da revolução.

Essas reflexões, presentes no livro As Lições de Outubro, estavam principalmente voltadas para os militantes do partido e da Internacional Comunista. O stalinismo ainda não havia assumido o pleno controle do movimento comunista internacional, embora já começasse a se esboçar o processo que levaria à burocratização do poder soviético e às formulações do socialismo em um só país. Portanto, ao apontar para a necessidade de estudar a Revolução de Outubro como parte da luta dos trabalhadores nos demais países, Trotsky chamava a atenção também para a premente necessidade de defesa do internacionalismo.

Os argumentos apontados por Trotsky para destacar a importância de se estudar a Revolução de Outubro estão relacionados às especificidades do próprio período. Mas, ainda que expressem os dilemas e perspectivas de uma época específica, o estudo sobre a experiência da Revolução Russa ainda hoje pode contribuir para as lutas dos trabalhadores. No estudo sobre a Revolução de Outubro e seus desdobramentos, é de fundamental importância levar em conta algumas questões metodológicas:

“Uma história da revolução, como toda a história, precisa antes de tudo relatar o que aconteceu e como. Isso, contudo, não é suficiente. Da própria narrativa é necessário que se torne claro porque os fatos aconteceram deste e não de outro modo. Os eventos não podem ser considerados uma série de aventuras nem inseridos num fio de moral pré-concebida. Eles precisam obedecer a suas próprias leis. A descoberta destas leis é a tarefa do autor.”5

Na busca por essas leis, a importância da experiência soviética para os militantes que se colocam na luta pela revolução pode ser verificada em diferentes sentidos. Um primeiro sentido passa por localizar a Revolução de Outubro no contexto do século 20, não sendo exagero afirmar que todos os fenômenos políticos posteriores – ascensão do nazismo, Segunda Guerra Mundial, revoltas de libertação nacional, Guerra Fria, entre outros – de alguma forma se conectam direta ou indiretamente com a Revolução Russa ou com seus desdobramentos políticos. No atual contexto, portanto, fazer um balanço da Revolução Russa está ligado diretamente a analisar a própria dinâmica social e política da história do século 20.

Por outro lado, um olhar descuidado sobre a Revolução Russa pode conter alguns riscos. Um primeiro risco seria o fato de se fazer a comemoração pela comemoração, como se fosse um mero fato heroico e seus personagens fossem algo distante e quase fictício. Mesmo que não seja necessariamente intencional, essa construção narrativa faz com que o processo revolucionário se torne uma mera anedota para os dias de festas, como o fazem os reformistas. Essa forma de olhar para a Revolução Russa, enquanto algo um tanto quanto idílico, tira do processo o seu conteúdo político e, principalmente, faz com que sua relevância para a atual situação social e histórica seja colocada em segundo plano ou mesmo esquecida.

O segundo risco é o de transformar as reflexões acerca da Revolução Russa em algo excessivamente acadêmico, ou seja, encará-la apenas como um objeto de pesquisa. Com isso, não se realiza uma reflexão que possa ter um impacto político, fazendo com que a Revolução Russa se resuma a um conjunto de citações de livros e artigos que pretendem corroborar certa interpretação acadêmica acerca de algum aspecto relacionado àquele processo político e social. O estudioso da revolução não se vê como parte de um processo político ligado à transformação radical da sociedade, mas como um observador externo. Trotsky afirmava, se referindo à suposta imparcialidade na escrita da história da revolução:

“O leitor crítico e sério não irá querer uma imparcialidade desleal, que ofereça a ele a taça da conciliação com uma boa dose de ódio reacionário no fundo, mas de uma científica escrupulosidade, que, por suas simpatias e antipatias – abertas e indisfarçadas – procura apoio num estudo honesto dos fatos, na determinação de suas verdadeiras conexões, uma exposição das leis motivadoras e seu momento”6

Por fim, o terceiro risco é aquele de as diferentes facções das esquerdas ficarem nas suas disputas vazias de interpretações. Para tanto, de um lado, elas procuram selecionar arbitrariamente quais os heróis que devem ser seguidos e quais de suas ideias serão efetivamente consideradas mais importantes. Por outro lado, discute-se fatos do passado e balanços históricos com a mesma virulência com que são feitas as disputas atuais. Não se discute as experiências que podem servir à reflexão, mas os fatos em si, de forma descritiva e mecânica, como se ter uma interpretação pretensamente correta do que ocorreu décadas atrás fosse o mais importante para compreender a luta pela revolução na atualidade. Trotsky dizia que “as leis da história não têm nada em comum com o esquematismo pedantesco7.

Portanto, os riscos em grande medida podem ser vistos como a possibilidade de esvaziar a importância política do processo revolucionário. Certamente é preciso celebrar a revolução e seus grandes heróis. Claro que é importante realizar pesquisas acadêmicas que ajudem a elucidar o processo em sua dinâmica e complexidade. E, certamente, os debates travados nas décadas passadas podem nos ajudar a elucidar nossos próprios dilemas políticos atuais. Contudo, sempre é preciso ter em mente que uma revolução é, “antes de tudo, a história da entrada violenta das massas no domínio de decisão de seu próprio destino8. Portanto, ainda que os fatos ocorridos há mais de cem anos possam inspirar muitas das ações e reflexões no presente, são os próprios trabalhadores de hoje que farão a revolução, tendo o partido revolucionário e a teoria marxista como orientação.

Deve-se olhar para a Revolução Russa não como um passado cheio de histórias sem interesse para o presente, mas como parte das lutas que travamos ainda hoje. O processo revolucionário russo ainda permanece de alguma forma nas diferentes manifestações de esquerda ou na forma de organização dos trabalhadores. O proletariado em âmbito internacional ainda não derrotou o sistema econômico que apenas produz miséria. Por isso, ao olharmos para as lutas dos revolucionários russos de cem anos atrás, precisamos compreender quais são as tarefas que ainda hoje persistem para aqueles que queiram derrubar o capitalismo, transformar radicalmente a sociedade e construir o socialismo.

Referências:

1 Trotsky, “As Lições de Outubro”
2,3,4 Ibid.
5 Trotsky, “História da Revolução Russa”
6,7,8 Ibid.