A crise grega se aproxima de um salto qualitativo. Antes das eleições de 17 de junho, se difundiram muitas palavras tranquilizadoras, mas todos sabem que estão sendo preparados os planos para a saída do euro numa tentativa de minimizar as consequências e lançar a culpa sobre a “irresponsabilidade” dos gregos.
[Artigo escrito em 14 de junho, três dias antes das últimas eleições gregas]Os timoneiros da Europa capitalista (e, na realidade, do mundo inteiro) se encontram à beira de um abismo profundo e insondável, e estão indecisos sobre o que fazer. Até há pouco, os diferentes guardiães do “rigor” ladravam contra os gregos “irresponsáveis” com a ameaça de abandoná-los a sua sorte se não seguiam estritamente os ditados da Troika (Banco Central Europeu, União Europeia e Fundo Monetário Internacional). Agora, no entanto, os espíritos quentes se acalmaram um pouco, ao começarem a se dar conta de que a saída da Grécia não seria um incidente isolado, e sim o início de uma reação em cadeia, cujos efeitos ninguém pode prever.
Não se veem alternativas, contudo: se se permite que a Grécia se desvie dos acordos, todos os demais países endividados exigirão o direito de também o fazer, e isto causaria uma generalizada perda de credibilidade da moeda única e da viabilidade de todos os títulos de dívida pública e privada emitidos em euros.
Eurobônus: solução ou novo problema?
O pesadelo da crise da dívida pública está se movendo diretamente para a Espanha e Itália, levando as contradições ao coração da Zona do Euro. O tamanho das economias e da dívida pública espanhola e italiana não deixa lugar à ilusão de se poder conter a crise sem que esta afete à moeda única em seu conjunto. A rigidez do governo alemão está causando crescente preocupação e dando lugar a protestos, levando à formação de uma frente política entre Itália, França e Espanha, apoiados pela Grã-Bretanha, e mesmo pela administração Obama, que trata de aliviar a austeridade, de aumentar o prazo de devolução das dívidas e de encontrar uma forma de gastar algum dinheiro em investimentos. A nova palavra da moda é: eurobônus.
A proposta consiste na emissão de bônus que já não mais estariam garantidos pelos Estados individualmente, e sim de forma conjunta por todos os países da Zona do Euro através de um fundo especial ou de um banco, e com isto se evitaria o problema dos rendimentos diferentes que atualmente estão obrigando os países mais débeis a pagar altas taxas de juro, enquanto que a Alemanha logra colocar seus bônus a preços abaixo de um ponto percentual. No papel, tudo isto é muito lógico: o mais forte se encarrega de ajudar ao mais débil, enquanto que os mais débeis ficam submetidos a uma gestão comum do problema da dívida. Na atualidade, as propostas neste terreno constituem uma autêntica Torre de Babel. A mais radical destas propostas é a de transformar o total das dívidas nacionais em uma só dívida pública europeia. A versão menos radical propõe que os eurobônus substituam a dívida pública nacional até uma quantidade determinada, por exemplo, a parte que exceda os 60% do PIB. Outras propostas mais modestas sugerem financiar alguns investimentos em infraestrutura através destas emissões de bônus, descontando-os da dívida total. Merkel propõe um mecanismo diferente no qual os países mais endividados seriam mais responsáveis uns com os outros.
Supondo que algo disto seja possível, quais seriam as consequências? Em primeiro lugar, não fica totalmente claro porque um fundo, garantido por países com finanças públicas e economias radicalmente diferentes, como a Itália e a Alemanha, deveria ser capaz de pedir emprestado a taxas especialmente acessíveis. Os mercados poderiam facilmente determinar que os “virtuosos” correm o risco de ser infectados pelos “maus” e pedir taxas de juros mais altas. Em segundo lugar, se se cria um mercado dual, dividido entre os bônus nacionais e os eurobônus, isto inevitavelmente reproduziria as mesmas diferenças que hoje vemos entre os diferentes países. A contradição que hoje se encontra nas taxas de risco adicionais que castigam a Itália ou a Espanha se manifestaria sob uma nova forma. Em outras palavras, os eurobônus, em vez de repartir o risco entre os países, reduzindo-o, bem poderiam representar outro meio de contágio da crise da dívida.
A crise do euro e a crise da Europa
A raiz do problema não está em tecnicismos ou nas disputas mediante as quais os diferentes governos tratam de se culpar mutuamente. Em vez disto, temos que entender a crise do euro não como um fenômeno que surge por si mesmo, e sim como uma manifestação específica da crise capitalista mundial. A crise da dívida e as crescentes dificuldades na gestão da moeda única não são as causas e sim as formas pelas quais se expressam contradições fundamentais. Os países europeus são demasiado pequenos para competir em uma economia capitalista em que a produção e as finanças já há muito tempo superaram os limites do Estado nacional, sobretudo quando se trata de Estados relativamente pequenos, como os da Europa. Durante sessenta anos, a burguesia europeia tratou de resolver esta contradição fundamental através do processo de integração europeia. A crise deste processo confirma a tese marxista segundo a qual tanto a propriedade privada dos meios de produção quanto também os limites dos Estados nacionais, que são muito pequenos, constituem os principais obstáculos para se fomentar um desenvolvimento geral e harmonioso das forças produtivas da humanidade.
O ex-vice-chanceler e ministro de relações exteriores da Alemanha, Joschka Fischer, numa entrevista publicada em Corriere della Sera (26 de maio), coloca, a partir de seu ponto de vista, o dedo na ferida: ou a Europa se converte em um Estado federal único ou a crise terá um caráter catastrófico. Estas são algumas passagens interessantes de sua entrevista: “Ou o euro cai, dando lugar a renacionalização que desintegraria a União Europeia, o que daria lugar a uma dramática crise econômica mundial, algo que nossa geração nunca viveu, ou os europeus avançam em direção à união política e fiscal da Zona do Euro. Os governos e os povos dos Estados membros já não podem mais suportar a carga da austeridade sem crescimento. E não temos muito tempo, falo de semanas, talvez de uns poucos meses”. Fischer propõe para a Alemanha um governo de unidade nacional que se baseasse na proposta dos eurobônus para avançar para “a união fiscal e política da Zona do Euro”. O primeiro passo seria a europeização “da dívida pública (…) em um momento em que o papel dos países da zona do euro é decisivo. Os líderes dos governos nacionais já agem de fato como se fosse o executivo europeu, enquanto que os parlamentos nacionais mantêm a soberania sobre o orçamento. Devemos dar passos concretos em direção a uma federação: em 1781, houve uma situação similar nos EUA. E o que fez Alexander Hamilton? Converteu a dívida dos Estados, que estavam em bancarrota devido aos custos da revolução contra os britânicos, em dívida federal. Se não o tivesse feito, a jovem Confederação não teria sobrevivido. Isto é o que temos que fazer também aqui e agora”.
Fischer, além de ser um ex-ultra-esquerdista convertido em homem de Estado, passa também por ser um grande conhecedor e amante da História. Propõe-se a fazer na Europa, com mais de 200 anos de atraso, a revolução burguesa que os EUA fizeram em 1776.
Em um artigo de 1929, intitulado O desarmamento e os Estados Unidos da Europa, León Trotsky tratou do mesmo tema, em uma polêmica com Gustav Streseman, então ministro alemão de Assuntos Exteriores, que defendia uma política exterior de conciliação:
“Comparando a Europa atual com a velha Alemanha, onde dezenas de pequenas nações alemãs tinham suas próprias fronteiras comerciais, Streseman tentou encontrar na unificação econômica da Alemanha o antecedente da federação econômica europeia e mundial. A analogia não é desdenhável. Mas Streseman se esquece de assinalar que, para se lograr sua unificação – e unicamente sobre uma base nacional – a Alemanha teve que passar por uma revolução (1848) e três guerras (1864, 1866 e 1870), para não mencionarmos as guerras da Reforma. Enquanto isto, ainda hoje, depois da revolução “republicana”, a Áustria alemã continua fora da Alemanha. Nas condições atuais, é difícil acreditar que alguns almoços diplomáticos serão o bastante para se lograr a unificação econômica de todas as nações europeias” (León Trotsky, O desarmamento e os Estados Unidos da Europa, outubro de 1929).
Será que tem algum sentido a comparação histórica proposta por Fischer (e na Itália, em termos similares, por vários membros da centro-esquerda, incluindo Romano Prodi)?
O nascimento dos Estados Unidos da América foi um grande acontecimento relacionado à ascensão revolucionária do capitalismo. Foi um acontecimento especialmente traumático, uma revolução cujo resultado teve que ser confirmado quase um século depois, com a sangrenta guerra civil (1860-1865), que colocou precisamente como ponto central a alternativa entre “confederação ou federação”. Nesse período histórico, não era somente a burguesia emergente, como também a classe operária que tinha todo interesse em apoiar o processo revolucionário, assim como na Europa, ela também tinha interesse em apoiar a formação de estados nacionais, o ambiente natural para o desenvolvimento da economia capitalista.
E hoje? Hoje a burguesia não tem nada a propor. A integração europeia, mesmo antes da atual crise, já significava para a maioria das pessoas apenas inconvenientes, tais como: precariedade, privatização, dissimulação do poder aquisitivo dos salários, cortes no estado de bem-estar social e, hoje em dia, tudo isto é levado ao extremo com as políticas de austeridade que afligem o continente.
A burguesia, por seu lado, está profundamente dividida: uma parte se beneficiou em grande medida desde o nascimento do euro e do mercado único, em particular a indústria e as finanças alemãs, enquanto que uma grande parte das pequenas e médias empresas, particularmente nos países periféricos (incluindo a Itália) ficou arruinada e marginalizada pelos mercados e perderam toda a capacidade de influenciar nas condições econômicas e políticas. De onde se poderia gerar uma força de massas que fosse capaz de impor a unificação do continente sobre a base do capitalismo, o que seria uma repetição das grandes revoluções burguesas com um atraso de dois séculos?
De um ponto de vista teórico, a unificação europeia é uma necessidade para o desenvolvimento das forças produtivas. A questão, contudo, é uma tarefa do tipo que não se pode realizar no contexto de um modo de produção que hoje manifesta sua decadência. Sobre tais bases, as tentativas de unificação ou fracassarão ou assumirão características completamente reacionárias. Não é nenhuma casualidade que o avanço do processo de integração europeia nas últimas décadas teve consequências reacionárias em todos os terrenos: na situação social, no estado do bem-estar, nos direitos sindicais e democráticos em geral, tudo piorou. Não somente é impossível mobilizar o apoio das massas para este projeto, como também se deve proceder com métodos cada vez mais autoritários como o demonstra o caso da Grécia.
Esta é a contradição básica que leva ao fracasso as diferentes receitas para se administrar a crise dentro da Zona do Euro. A proposta de “federalizar” as dívidas públicas da Europa significa, em última instância, criar uma Zona do Euro unificada no nível orçamentário. Um orçamento único, um sistema fiscal único, um modelo tributário único… ou seja, um Estado único unificado… Contudo, no contexto da atual crise capitalista mundial, a Europa fica encalhada na mesma rocha de sempre.
O papel do reformismo
As burocracias reformistas sempre acompanham a burguesia e, para sermos exatos, a burguesia mais poderosa. Apoiaram o processo de integração nas últimas décadas, com a esperança de que se criassem as bases para uma política de reforma social. Aferram-se ao capital alemão hoje, implorando-lhe para que não se mostre “irresponsável e egoísta” e que salve os países mais débeis – e, sobretudo, para que salve suas confortáveis cadeiras parlamentares, de forma que garantam uma aparência de concertação social. Na ausência de resultados apreciáveis neste terreno, se amontoam por trás de Monti, Hollande e Rajoy, com a esperança de persuadir Berlim a suavizar sua intransigência.
Durante décadas, a ideia da integração europeia dominou as principais forças políticas da Europa: o Partido Popular Europeu, o Partido dos Socialistas Europeus e o Grupo Liberal Democrático, com exceção de algumas circunstâncias nacionais específicas, apoiaram todos os passos básicos do processo e continuam a fazê-lo. “Isto é o que a Europa exige” foi sempre o argumento inapelável para silenciar e condenar qualquer tipo de oposição e para castigar à menor crítica e oposição (escassas, seja dita a verdade) que viessem das burocracias sindicais, que se veem obrigadas de vez em quando a manifestar o mal estar dos trabalhadores diante dos processos de precarização, privatização e destruição do estado do bem-estar social. Esta cooperação também se baseava em um crescimento econômico relativo que permitiu administrar até certo ponto as consequências sociais deste processo.
A crise questionou esta aliança, causando uma crise no seio das forças políticas que a protagonizavam: os recentes resultados eleitorais representam a confirmação rotunda disto. Na Grécia, os partidos que assinaram o Memorando, o pacto para o estrangulamento dos gregos (definindo-o de forma mais apropriada), foram esmagados nas urnas, sobretudo o PASOK (socialistas). Pelo contrário, a vitória do socialista François Hollande, na França, foi aclamada por meio de uma subida no mercado de valores: os “mercados” não se assustam muito diante das promessas eleitorais de justiça social, mas esperam que o colapso do eixo Merkel-Sarkozy refresque as políticas de “crescimento”, como se fosse possível recompor a credibilidade da União e de uma moeda única cada vez mais impopular entre milhões de pessoas.
Saída do euro?
Os êxitos eleitorais de Mélenchon e da Frente de Esquerda, na França, de SYRIZA, na Grécia, e de Izquierda Unida, na Espanha, indicam a busca, por parte do eleitorado, de uma alternativa à esquerda do Partido Socialista Europeu e é um voto que reflete as grandes mobilizações de rua que sacudiram estes países. Contudo, temos que admitir que as lideranças destas diferentes alternativas de esquerda em nível europeu carecem de uma compreensão clara do problema do euro e da relação que guarda com a crise.
A perspectiva de um simples retorno às moedas nacionais sobre a base do capitalismo não representa nenhuma solução aos problemas das massas. Um estudo publicado em setembro pelo banco suíço UBS resume os resultados de uma possível saída do euro por parte da Grécia: “Tendo em conta todos estes fatores, um país que se separa do euro deve esperar um custo de 9.500 a 11.500 euros por pessoa (…) e, em seguida, um custo adicional de 3.000 a 4.000 euros ao ano (…). Trata-se de estimativas conservadoras. As consequências econômicas da desordem civil, do colapso do país etc., não estão incluídas nestes custos” (ver: http://bruxelles.blogs.liberation.fr/UBS%20fin%20de%20l%27euro.pdf).
Não há “independência nacional” alguma que possa resistir à pressão da crise global. Tomemos o exemplo da Grã-Bretanha, que se manteve fora do euro e que tem uma moeda com muito mais credibilidade que uma hipotética nova lira ou novo dracma: a diminuição dos níveis de vida, segundo alguns estudos poderia ser proporcionalmente pior que a crise dos anos 1930.
Igualmente perigosa é a ideia de que, de alguma forma, é possível reformar a estrutura da Europa capitalista e permanecer dentro da moeda única, ao mesmo tempo em que se adotam políticas econômicas alternativas que evitem o massacre social, a chamada Europa “social, dos povos, democrática” com a qual, durante anos, encheram a boca e que não se materializou nos anos de crescimento econômico, e que ainda menos pode fazê-lo agora na dureza desta crise. Uma crise da qual, transcorridos quatro anos desde o seu início, ninguém nas lideranças da esquerda conseguiu medir o alcance e suas consequências. Esta ilusão é compartilhada pelos grupos dirigentes da esquerda alternativa europeia, incluindo os que defendem a posição de SYRIZA de “não ao Memorando, mas sem sair do euro”.
A crise está levando à clássica ruptura dos elos mais fracos, o que significa que, apesar de ser um processo único, terá diferentes momentos e etapas nas diferentes regiões e países do mundo. Hoje na Grécia e amanhã na Espanha ou Itália, as forças da esquerda poderão se ver muito rapidamente obrigadas a dar respostas concretas a milhões de pessoas que buscam uma alternativa. Esta é uma das mais importantes lições que podemos aprender da experiência grega, onde um partido como SYRIZA, que há somente alguns anos corria o risco de se quebrar em pedaços e que lutava por não desaparecer do parlamento, pôde se encontrar em poucas semanas a ponto de formar um governo.
Para não acabar esmagado em tal situação, terá que tomar medidas drásticas: a abolição do Memorando, a suspensão dos pagamentos da dívida, o bloqueio imediato dos movimentos de capitais, a nacionalização dos bancos, como primeiros passos para tomar o controle das alavancas indispensáveis à defesa das condições de vida das massas.
Se um processo como este ocorresse em um país hegemônico como a Alemanha, então seria possível inclusive supor que a existência da moeda única se convertesse em um veículo para a generalização da ruptura revolucionária. Contudo, o processo real segue por um caminho diferente agora e qualquer política econômica verdadeiramente alternativa gerará, inevitavelmente, enfrentamentos com a moeda única.
Sobre estes pontos fundamentais é urgente abrir um debate no movimento dos trabalhadores. Tudo indica que a situação pode se precipitar, como ocorreu na Grécia, muito antes do que se pensa, mesmo em países como Espanha e Itália.
Sobre a base da ruptura da União Europeia capitalista se poderá construir uma verdadeira união; sobre a base de uma economia finalmente arrancada do controle do capital será possível avançar sobre bases democráticas e socialistas para uma verdadeira fusão dos povos não somente na Europa, como também em todo o mundo.