No início do século 14, o sistema feudal atingiu seus limites e a peste acelerou o processo de decomposição da velha sociedade / Imagem: domínio público

A Peste Negra: a pandemia que mudou o mundo

A Peste Negra do século 14 desferiu um golpe mortal no sistema feudal, que estava em decadência antes mesmo da peste chegar. Da mesma forma hoje, a pandemia de Covid-19 revelou a falência do capitalismo e a necessidade do socialismo.

A atual pandemia de Covid-19 é um evento verdadeiramente revolucionário. Sua disseminação rápida e mortal expôs impiedosamente os governos, levou os serviços de saúde ao ponto de ruptura e desencadeou a crise mais profunda do capitalismo desde os anos 1930 – senão de todos os tempos.

Em todo o mundo, a vida das pessoas foi alterada de forma dramática. À medida que o choque inicial começa a diminuir, uma enorme onda de raiva e repulsa começou a varrer o sistema capitalista e suas instituições. Em todos os lugares há uma profunda sensação de que as coisas nunca mais serão as mesmas.

Diante de tais eventos, os comentaristas naturalmente buscaram analogias históricas para o período em que entramos. Para muitos, a comparação mais próxima pode ser encontrada não nos tempos modernos, mas na praga mortal que varreu a Europa e a Ásia no século 14, matando mais de um terço da população da Europa: a Peste Negra.

Essa analogia é altamente significativa – não porque haja um paralelo entre a pandemia de hoje e os efeitos biológicos da praga, mas devido às suas enormes consequências sociais.

A Peste Negra é considerada o pior desastre natural da história europeia. Mas o impacto que teve na sociedade foi muito além do século 14. Os processos desencadeados ou acelerados pela devastação da peste iriam, com o tempo, mudar completamente as relações sociais, acabando por lançar as bases da Europa moderna.

Um exame mais detalhado da Peste Negra – e do impacto que ela teve na sociedade feudal – não é um exercício acadêmico. Apesar de todas as diferenças importantes entre os séculos 14 e 21, têm uma coisa em comum: ambos são tempos de transição, em que uma ordem velha e podre começa a desmoronar enquanto novas forças sociais lutam para nascer.

O que foi a Peste Negra?

O que ficou conhecido como Peste Negra foi uma pandemia causada por cepas mortais da bactéria yersinia pestis, que vivem no ventre das pulgas transportadas por vários roedores na Ásia e na África.

Entre 1347 e 1351, essa pandemia varreu as rotas comerciais da Rota da Seda na China, Oriente Médio e Europa, matando milhões de pessoas. Ela voltaria periodicamente, mas em escala reduzida, no século 18.

O triunfo da morte, de Pieter Bruegel (1562)

A mais famosa dessas cepas foi a peste bubônica, assim chamada por causa dos bubões redondos e pretos formados pelo inchaço dos nódulos linfáticos da vítima. Até 60% das pessoas que contraíram a doença morreram como resultado. Esta cepa ainda pode ser encontrada viva e presente em partes da China até hoje, com um caso suspeito de peste bubônica relatado na Mongólia Interior recentemente, em julho.

Ainda mais mortal foi a peste pneumônica, que era transmitida através do ar de pessoa para pessoa e se revelou fatal em pelo menos 95% dos casos. Por fim, a peste septicêmica – causada pela infecção do sangue – era muito menos comum, mas sempre fatal.

O que não é tão conhecido é que a chegada da Peste Negra no século 14 foi na verdade a segunda vez que a peste visitou a Europa. A primeira pandemia atingiu o Império Romano do Oriente no século 6, quando o imperador Justiniano tentava reconquistar o Ocidente.

Acredita-se que tenha matado cerca de metade da população da Europa na época, contribuindo tanto para o declínio do Império Romano no Oriente quanto da Idade das Trevas na Europa.

É interessante notar como a chegada de ambas as pandemias coincide de perto com dois dos maiores pontos de inflexão da história europeia: a primeira, com o declínio e queda do Império Romano; e a segunda, com o declínio do feudalismo.

Sem dúvida, a morte e o pânico causados ​​pela peste teriam abalado a sociedade em seus próprios alicerces, psicológica, política e economicamente.

Mas para compreender a transformação que ocorreu na sociedade europeia após a chegada da Peste Negra, não podemos olhar apenas para este fator. É preciso entender como a sociedade se organizava no século 14; e como o imenso choque externo da pandemia interagiu com sua dinâmica interna.

A sociedade em 1347

A primeira coisa a se ter em mente ao considerar a sociedade europeia em 1347 é que ela era organizada sobre uma base completamente diferente da sociedade capitalista urbana de hoje. A esmagadora maioria da população (até 90% na Inglaterra) vivia e trabalhava no campo. A unidade básica da sociedade não se encontrava na fábrica ou na cidade – embora cidades medievais cada vez mais prósperas certamente existissem – mas na herdade senhorial, o feudo.

O feudo era essencialmente uma aldeia, na qual os camponeses alugavam terras do “senhor do feudo” em troca de uma parte de seu produto e de serviços de trabalho forçado no “domínio” do senhor, que era a terra que ele possuía diretamente. Esta forma de exploração, chamada servidão, formou a base sobre a qual todo o sistema feudal se apoiava.

Sob o feudalismo, a classe mais poderosa da sociedade não eram os banqueiros e industriais que governam a sociedade hoje. Nessa fase, a burguesia industrial não existia realmente. O mais próximo disso eram os artesãos das guildas, que viviam e trabalhavam nas cidades. O sistema bancário existia apenas sob uma forma muito primitiva. Os mercadores formavam a camada mais poderosa e influente da burguesia. Mas a avassaladora Idade de Ouro do capitalista mercantil ainda não havia surgido.

A classe dominante era composta pela nobreza militar feudal e pela Igreja: “os que lutam” e “os que rezam”. Mas, além de lutar e orar, a nobreza também possuía quase todas as terras, exceto as terras comuns, como florestas etc.

Como detentores dos meios de produção mais importantes da época – a terra – os sacerdotes e nobres naturalmente detinham o monopólio das instituições políticas, intelectuais e espirituais da sociedade.

Não havia classe trabalhadora como a reconheceríamos hoje. Os trabalhadores ou trabalhavam por conta própria, ou eram camponeses não-livres que trabalhavam para os senhores, chamados de “servos”, do latim “servus“, que significa escravo.

Em vez da luta entre os trabalhadores assalariados e seus patrões por salários, jornadas e condições de trabalho, a luta de classes no campo feudal era travada principalmente pelos servos, que lutavam pela libertação do trabalho forçado e por arrendamentos mais baixos.

Esse sistema, por mais antiquado que pareça hoje, desempenhou um papel progressivo na retirada da Europa da Idade das Trevas. Entre os séculos 10 e 13, a população da Europa quase triplicou para cerca de 80 milhões – o maior número em quase mil anos.

Tendo quase desaparecido durante a Idade das Trevas, o comércio interno dentro da Europa começou a ressurgir, junto com as cidades medievais e a burguesia. Enquanto isso, florescia mais uma vez o comércio exterior com a África e a Ásia. Em uma amarga reviravolta do destino, seria essa extensão do comércio que iria causar a propagação da praga de forma tão rápida, dentro e por todo o continente.

Limites do feudalismo

No entanto, nenhum sistema social é capaz de desenvolver uma sociedade indefinidamente. Em determinado estágio, as relações sociais que serviram para estimular o progresso e o desenvolvimento se transformam em grilhões para um desenvolvimento ulterior. A sociedade feudal havia chegado a esse ponto antes mesmo da praga atacar.

No início do século 14, o sistema feudal atingiu seus limites. A expansão da agricultura em terras virgens – que havia impulsionado o crescimento da produção e da população no período anterior – chegou ao fim. O excedente de alimentos, portanto, começou a diminuir em relação à população. A produtividade do trabalho não conseguia acompanhar, contida pela produção restrita do feudo e pelo consumo voraz dos senhores.

A maioria camponesa estava ficando cada vez mais pobre enquanto os senhores feudais pressionavam ainda mais fortemente. Uma terrível fome em toda a Europa – considerada a pior da história da Europa – eclodiu em 1307, matando 10-25% da população.

Pior ainda, os camponeses estavam ficando sem terra. Sem terras virgens, alguns filhos ficaram sem herança, o que os privava de seu sustento e abria caminho para uma profunda crise social. Robert Gottfried, em seu livro, The Black Death, observa:

“No passado, o camponês tinha garantido o direito, por assim dizer, de ser camponês; depois de 1250, isso estava se tornando cada vez mais difícil. O antigo sistema senhorial estava desmoronando, e os senhores, que agora pareciam estar trazendo pouco benefício real, estavam ficando mais ricos”.

Essas linhas lembram o que Marx e Engels escreveram no Manifesto Comunista: que a sociedade não pode mais viver sob a burguesia, “porque ela é incompetente para assegurar a existência de seu escravo dentro de sua escravidão”. A velha ordem já estava enferma. A praga deu a essa enfermidade uma expressão tangível e horrível.

A praga golpeia

Pensa-se que a praga surgiu no deserto de Gobi na década de 1320. Levada por mercadores e por cavaleiros mongóis por toda a Eurásia, chegou à China na década de 1330 e matou cerca de um quarto da população.

Tão grande foi a escala da devastação que, tanto no Ocidente quanto no Oriente, muitas cidades não recuperaram suas populações anteriores à praga até o século 16 / Imagem: domínio público

Em seguida, espalhou-se pelo Ocidente, com um cronista afirmando: “A Índia foi despovoada; a Tartária, a Mesopotâmia, a Síria, a Armênia estavam cobertas de cadáveres; os curdos fugiram em vão para as montanhas”.

Tal como acontece com a atual pandemia de Covid-19, o primeiro país europeu atingido foi a Itália. Comerciantes genoveses – negociando ao longo da costa do Mar Negro – involuntariamente contraíram a praga e a transportaram para casa, bem como para o resto do Mediterrâneo. A partir desse momento, ela se espalhou rapidamente pela Europa cristã e pelo mundo muçulmano.

Cairo era uma das maiores cidades do mundo na época e foi atingida de maneira particularmente dura. No auge da pandemia, o número de mortos diários no Cairo chegou a sete mil. A escassez de caixões fez com que muitas pessoas fossem enterradas em valas comuns, em cenas semelhantes às testemunhadas em Nova York no início deste ano.

O famoso erudito e historiador Ibn Khaldun, que perdeu seus pais para a peste, escreveu na época:

“A civilização tanto no Oriente como no Ocidente foi visitada por uma praga destrutiva que devastou nações e fez com que as populações desaparecessem. Ela engoliu muitas das coisas boas da civilização e as eliminou …

“Era como se a voz da existência no mundo tivesse clamado pelo esquecimento e pela restrição e o mundo respondesse ao seu chamado”.

Ao final da pandemia, 200 mil pessoas morreram de peste apenas no Cairo – mais do que a população total de quase todas as cidades cristãs da época. A escala da devastação foi tão grande que, tanto no Ocidente quanto no Oriente, muitas cidades não recuperariam suas populações anteriores à praga até o século 16.

Desespero

Não é difícil imaginar o horror e o desespero que dominaram a sociedade no início de tais cenas apocalípticas, que pareciam cair sobre a humanidade do nada. Nenhuma das práticas usuais para evitar e tratar doenças – como tomar banho – ofereceu qualquer defesa contra a peste. A profissão médica se viu completamente impotente ante a propagação da doença.

A praga também serviu para expor as instituições da Igreja, cuja proteção espiritual se mostrou completamente ineficaz contra uma calamidade que muitos consideraram ser um sinal claro da ira de Deus.

A praga serviu para expor a Igreja, cuja proteção espiritual se mostrou ineficaz contra uma calamidade que muitos tomaram como um sinal da ira de Deus / Imagem: domínio público

Houve muitos casos de padres locais fugindo para escapar da peste, deixando seus rebanhos abandonados e sem o consolo de seus últimos ritos. Isso provocou uma desconfiança e um questionamento generalizados com relação à Igreja estabelecida – embora não do cristianismo ou da religião como um todo – e deu origem a muitos movimentos religiosos novos.

Um desses movimentos foi o das seitas flagelantes, que se espalhou pela Europa e foi particularmente forte no mundo de língua alemã e holandesa.

Flagelantes vagavam de cidade em cidade em grupos de 50 a 300, por 33 dias e um terço, simbolizando o tempo de Cristo na Terra. Durante esse tempo, eles estavam proibidos de falar, de se lavar ou de dormir em camas macias. E ao chegarem a uma cidade, eles se ajoelhavam no chão e se chicoteavam em penitência pelos pecados da humanidade, na esperança de que isso acabasse com a praga.

Nos primeiros estágios desse movimento, a chegada de um bando de flagelantes era frequentemente bem recebida pelos habitantes, que os viam como uma defesa espiritual genuína contra a peste – em oposição à Igreja, que estava amplamente desacreditada. No entanto, com o passar do tempo, o movimento começou a se fragmentar ao longo de linhas de classe.

Sob a influência das massas pobres que aumentaram suas fileiras, o movimento começou a assumir a forma de uma espécie de seita revolucionária. Muitos flagelantes acreditavam que o antigo Sacro Imperador Romano, Frederico Barbarossa, ressuscitaria, expulsaria o clero e forçaria os ricos a se casar com os pobres, após o que o próprio Cristo retornaria à Terra.

Essas ideias repeliram primeiro os nobres, depois os burgueses mais respeitáveis e, por fim, até mesmo os camponeses em melhor situação. Com o tempo, o movimento foi reduzido às camadas mais pobres e destituídas da sociedade. Uma vez isolados, os flagelantes remanescentes foram posteriormente esmagados pelo Estado.

Outro produto do desespero que surgiu durante a peste foi a onda de pogroms contra os judeus por toda a Europa, que assumiu proporções horríveis nesse período. Em muitos lugares, especialmente nas cidades, os judeus foram acusados de espalhar deliberadamente a peste ou envenenar os poços. Como resultado, milhares foram massacrados.

A Igreja e as autoridades feudais realmente tomaram pequenas medidas para proteger os judeus, rejeitando as acusações contra eles. Mas isso fez pouco para conter a maré de derramamento de sangue. Eventualmente, isso provocou uma grande migração de judeus, fugindo da perseguição para o Oriente e para a Polônia, em particular, onde foram convidados a se estabelecer pelo rei Casimiro III.

Crise econômica

Além da profunda crise psicológica e moral infligida pela peste, a economia feudal foi paralisada. Isso provocou uma crise intensa e duradoura para a classe dominante que teria importantes ramificações.

Um bom indicador da escala da crise pode ser encontrado na Inglaterra, país em que a praga chegou pela primeira vez em setembro de 1348. Em Cuxham Manor, perto de Oxford, de propriedade do prestigioso Merton College, a queda dramática da população deixou as terras da faculdade sem ninguém para trabalhá-las. Isso causou uma queda generalizada nos arrendamentos, afetando a receita do feudo. Ao mesmo tempo, trabalhadores assalariados tiveram que ser trazidos para trabalhar na propriedade por altos salários.

Este golpe duplo – no contexto da queda da demanda e dos preços das culturas alimentares básicas, como o trigo – cortou permanentemente os “lucros” do feudo. Estes últimos caíram de uma média de 40 libras ao ano, até 1349, para menos de 11 libras, em 1354-55, o primeiro ano após a Peste Negra em que todos os lucros eram registrados.

No geral, estima-se que a renda da aristocracia feudal em toda a Inglaterra tenha caído em mais de 20%, entre 1347 e 1353. Junto com o colapso do sistema senhorial, a alta taxa de mortalidade também deixou muitas famílias nobres desprovidas de herdeiros varões, o que significa que muitas famílias que antes eram grandes simplesmente desapareceram.

A profunda crise da classe dominante foi acompanhada pelo início do que viria a ser conhecida como a “Idade de Ouro dos Trabalhadores”. Em 1349, os salários dobraram em muitas propriedades. Em Cuxham Manor, um lavrador recebia 10 xelins e 6 pence, em 1350, por um trabalho que lhe renderia apenas 2 xelins em 1347. Os humildes trabalhadores diaristas até desfrutavam de almoços de “tortas de carne e cerveja dourada“, além de seus salários mais altos.

Mas não foram apenas os trabalhadores que ganharam, desde que sobrevivessem à praga; a crise provocou mudanças drásticas nas condições e direitos do campesinato também.

A ampla disponibilidade de terras e os baixos arrendamentos significavam que os camponeses tinham mais mobilidade do que, talvez, jamais tiveram. Tornou-se possível para os camponeses de fato “fazer compras”, abandonando seus senhores em favor de outros que oferecessem arrendamentos mais baixos e menos restrições. A servidão neste contexto se tornou impossível e absurda.

Reação e revolução

Como era de se esperar, a classe dominante agiu rapidamente a fim de tentar retornar à velha “normalidade”. Em 1349, Eduardo III introduziu um Estatuto do Trabalho, que pretendia fixar os salários em seu nível anterior a 1348, sem sucesso.

Sabendo muito bem qual era o seu lado da trincheira, a Igreja juntou-se à cruzada dos proprietários contra as tortas de carne e a cerveja dos trabalhadores. Em 1350, o Arcebispo de Canterbury emitiu sua effrenata cupiditas, denunciando a ganância daqueles que cobravam mais por serviços comuns.

Os impostos criados para restaurar a normalidade econômica provocaram uma poderosa revolta camponesa em 1381 / Imagem: domínio público

Um choque de interesses tão óbvio e transparente entre os senhores e as massas camponesas comuns estava fadado a provocar uma reação imensa. Os camponeses e trabalhadores estavam percebendo cada vez mais que os senhores eram pouco mais do que parasitas que existiam apenas para consumir seu trabalho. Eles não tinham intenção de renunciar aos ganhos que haviam feito naqueles anos de peste indescritível.

Por outro lado, a classe dominante não podia tolerar esse estado de coisas. Não apenas o aumento dos salários e a queda dos arrendamentos os estavam deixando sem dinheiro, como também o levantamento de muitas das restrições e dos serviços de trabalho forçado dos ombros do campesinato ameaçava mais do que apenas suas contas senhoriais – ameaçava derrubar toda a ordem social, do topo onde se empoleiravam.

Por décadas, ressentida, a nobreza governante havia tentado retomar os ganhos conquistados pelas pessoas comuns e ressuscitar a servidão. Na Inglaterra, o rei introduziu o infame Poll Tax em 1377, que impôs uma taxa a todos os adultos do reino.

Este imposto foi aumentado mais duas vezes, em 1378 e 1381, colocando um fardo tão pesado sobre as famílias camponesas que muitos acusaram o rei de tentar restaurar a servidão. O pregador radical, John Wycliffe, condenou o imposto, declarando: “Desta forma, os senhores comem e bebem a carne e o sangue dos pobres”.

Em 1381, os camponeses de Essex se recusaram a pagar o imposto, o que gerou a revolta dos camponeses. Um camponês rico chamado Wat Tyler liderou um exército a Londres declarando “matar todos os advogados e servos do rei”.

Outro líder da revolta, um padre desempregado chamado John Ball, pediu “que tudo seja comum e que possamos estar todos unidos e que os senhores não sejam maiores senhores do que nós”. Ele pregou aos rebeldes:

“Quando Adão cavou e Eva mediu,

Quem então era o cavalheiro?”

Esse espírito igualitário seria posteriormente assumido pelos Diggers [Cavadores] da Revolução Inglesa, o setor mais radical das forças revolucionárias de Cromwell.

Quando os rebeldes alcançaram o Tâmisa em Southwark, as massas de Londres baixaram a ponte e os ajudaram a tomar a cidade. Este foi um dos primeiros exemplos da aliança entre a burguesia e o campesinato que desempenharia um papel tão vital nas revoluções inglesa e francesa. Tendo capturado a Torre de Londres, os rebeldes inclusive decapitaram o odiado arcebispo de Canterbury.

Os rebeldes então saquearam as luxuosas residências e palácios da nobreza ao longo da Fleet Street. Mas eles não roubaram quase nada da vasta riqueza de seus inimigos, declarando-se “partidários apaixonados da verdade e da justiça, não ladrões e salteadores”. Em vez disso, os móveis e as joias da classe dominante foram jogados no rio ou destruídos.

O jovem rei Ricardo II foi forçado a ceder às exigências dos rebeldes, prometendo o fim da servidão, terras baratas e livre comércio. Mas, quando os rebeldes ficaram satisfeitos e voltavam para casa, ele mandou matá-los.

Apesar do fato de que a própria revolta foi finalmente derrotada, a servidão nunca voltou à Inglaterra. E nenhuma poll tax seria cobrada na Inglaterra novamente até o experimento malfadado de Thatcher em 1989 – com resultados semelhantes.

Transição

O significado da revolta dos camponeses não pode ser subestimado. O fim da servidão significou efetivamente o fim do feudalismo. A velha ordem estava morrendo, mas uma nova ordem ainda não havia nascido. Este foi um período de transição; uma “época de monstros”, como disse Gramsci. E houve poucas coisas na história tão monstruosas quanto a Peste Negra.

Desenvolvimentos que foram acelerados pela Peste Negra continuaram a transformar a sociedade nos séculos 14 e 15 / Imagem: domínio público

Os desenvolvimentos que foram intensificados e acelerados pela Peste Negra continuaram a transformar a sociedade ao longo dos séculos 14 e 15. O final da Idade Média se tornou a época do rico camponês independente. Enquanto isso, a extinta e decrépita nobreza feudal continuou a se exaurir na Guerra das Rosas.

Gradualmente, as velhas dinastias feudais foram substituídas por uma nova classe de proprietários de terras – geralmente mercadores que haviam comprado seu ingresso na nobreza, e que estavam muito mais focados em ganhar dinheiro do que no cavalheirismo farsesco de seus predecessores.

Em nível de Estado, as várias funções burocráticas e clericais, que haviam sido desempenhadas por padres antes da peste, foram cada vez mais assumidas por uma classe crescente de burgueses educados, advogados etc.

Essa nova relação entre a monarquia feudal e a burguesia urbana apenas se fortaleceu à medida que a monarquia se tornou mais centralizada e dependente de fundos de mercadores ricos, como a família de la Pole, em Hull.

Essas mudanças, que ocorreram gradualmente, acabariam por dar origem à monarquia absolutista do período Tudor. Isso teria um papel importante no desenvolvimento do capitalismo.

No século 16, os senhores se vingariam dos camponeses livres e trabalhadores bem alimentados da Inglaterra. Mas não houve retorno à antiga ordem de 1347.

Em vez de forçar os camponeses a trabalhar para eles, a nova classe de proprietários de terras expulsou os camponeses mais pobres de suas terras e transformou seus campos em pastagens trabalhadas por trabalhadores assalariados para o mercado da lã.

Esta violenta revolução no campo deu origem à agricultura capitalista. Ao mesmo tempo, criou uma classe de indigentes sem propriedade, que acabaria sendo levada para as oficinas e fábricas da Revolução Industrial para se tornar a moderna classe trabalhadora.

Hoje em dia

Os paralelos entre a Peste Negra e a atualidade são impressionantes. O impacto mortal da pandemia de Covid-19 – embora ainda chocante – felizmente não foi tão grande quanto o da Peste Negra. No entanto, ambas as pandemias golpearam sistemas sociais que haviam atingido seus limites e abriram crises que ameaçaram derrubar a ordem existente.

A Peste Negra não causou a crise do feudalismo, que começou décadas antes da yersinia pestis escapar do deserto de Gobi. Da mesma forma, a Covid-19 não causou a crise atual do capitalismo.

Ambos, no entanto, foram enormes choques externos, que serviram para expor e intensificar todas as contradições que vinham se desenvolvendo sob a superfície da sociedade. Ambos foram “acidentes” históricos que deram uma expressão poderosa à vassourada necessária da história.

Mas as semelhanças não param por aí. Como no século 14, a classe dominante fará tudo o que puder para construir sua recuperação nas costas da classe trabalhadora por meio de austeridade e repressão. Mas, como no século 14, também são inevitáveis revoltas em massa contra esse ataque.

Não pode haver retorno ao “normal”. Como antes, a velha ordem está morrendo e arrastando a humanidade com ela. Mas hoje, uma nova ordem está pronta para suplantar a antiga e está lutando para nascer. As lutas que eclodem hoje – como a de Black Lives Matter – são os primeiros tremores do levante revolucionário da classe trabalhadora.

Os trabalhadores de hoje são descendentes dos camponeses rebeldes de 1381, que conquistaram sua liberdade apenas para vê-la arrebatada às gerações posteriores. Na luta contra o capital, herdamos sua luta para cumprir a visão de John Ball – que não haja senhores ou amos, e que todos vivam livres e iguais. Desta vez, vamos concluir esta tarefa.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE

PUBLICADO EM SOCIALIST.NET