Bonde virado pela população na Praça da República durante a revolta Foto: Domínio público

A Revolta da Vacina: Um antídoto para a antidemocrática República burguesa

“A revolta não visava o poder, não pretendia vencer, não podia ganhar nada. Era somente um grito, uma convulsão de dor, uma vertigem de horror e indignação. Até que ponto um homem suporta ser espezinhado, desprezado e assustado? Quanto sofrimento é preciso para que um homem se atreva a encarar a morte sem medo?” (SEVCENKO, p. 50, 2010).

O Rio de Janeiro, a capital federal, proporcionou para a República brasileira uma das suas maiores mobilizações e motins populares da história entre os dias 10 e 20 de novembro de 1904. A Revolta da Vacina tem em sua aparência o combate dos mais pauperizados da classe trabalhadora contra a obrigatoriedade da vacina para a Varíola. Mas em sua essência, as motivações eram muito mais profundas e complexas que um negacionismo dos pobres à ciência, como gosta de vender a burguesia.

Na atualidade, em meio à pandemia da Covid-19 e os milhares de mortos pela crise histórica do capitalismo, também temos de conviver com os putrefatos reacionários, que chegaram ao ponto de defender a medieval teoria da Terra plana e a divulgarem – criminosamente – campanhas antivacinação, como parte de seu sórdido obscurantismo e demonstração da falência material e filosófica deste sistema. Dito isto, é preciso esclarecer que em hipótese alguma a revolta de 1904 pode ser confundida com o delírio antivacina do presente. Por isso, como marxistas, precisamos apresentar a história como ela é, movida pela luta de classes.

Para tanto, antes de iniciarmos essa viagem para a revolta do início do século 20, faz-se preciso compreender que ainda no Império brasileiro, o país enfrentava outra doença que varria com morte a população: a Febre Amarela. Causada pelo Aedes aegypti, provocou um surto no país na metade do século 19, fazendo Pedro II fugir do infectado Rio de Janeiro para Petrópolis, receoso em ser contaminado pela cidade onde as massas morriam com o “vômito negro”. A doença afetou, inclusive, economicamente o país, pois atuou como freio para as embarcações europeias, que, em seus países, faziam publicidade contra os desembarques nos nossos portos, indo diretamente para Buenos Aires, para não correrem riscos no infectado Brasil.

A doença ultrapassou o golpe republicano de 1889. Na verdade, persistiu até a figura de Oswaldo Cruz emergir na história sanitária do país. Paulista, nascido em 1872, estudou na França com grandes sanitaristas internacionais, ganhando fama e sendo convocado pelo terceiro presidente civil do Brasil, Rodrigues Alves. Ao assumir o poder em 1902, Alves havia perdido uma filha para a Febre Amarela e tinha como objetivo “sanear o Brasil”, especialmente a capital.

A composição de seu governo teria Cruz como peça fundamental, tornando-o o patrono burguês da saúde pública. Assumindo o cargo, o sanitarista bradava em todos os cantos que, caso não extirpasse a febre amarela da vida nacional no prazo de um ano, deveria ser fuzilado pelas tropas do Estado. De fato, Cruz não foi fuzilado, como nos mostra a história. Isso porque o sanitarista deu fim à doença – ao menos naqueles anos – com as “Brigadas Mata-Mosquitos”, que invadiam as casas, principalmente nos precários bairros e residências.

Outra doença que assolava o país no início do século 20 era a Peste Bubônica, transmitida pelas pulgas dos ratos. Para combatê-la, Oswaldo Cruz iniciou a campanha da “Caça Aos Ratos” com o governo pagando em moedas por cada animal morto e entregue nos postos de saúde. Esta campanha gerou, inclusive, uma curiosa saída dos pobres para um dinheiro extra no cotidiano: a criação de ratos às escondidas para que se matasse, entregasse e lucrasse com a caça. De qualquer maneira, Cruz obteve sucesso com suas autoritárias e exóticas campanhas, não somente na capital nacional, mas também nas demais cidades portuárias, como Santos.

Junto destas duas jornadas contra doenças infecciosas desde o fim do Império até o começo da República, outro devastador surto foi o de Varíola. Introduzida no Brasil pelos europeus, a doença foi se disseminando com a colonização. A primeira referência foi feita por José de Anchieta, em 1561, e a primeira epidemia registrada data de 1563. A vacina, desenvolvida pelo inglês Edward Jenner em 1796, chegou ao Brasil em 1804, foi colocada como recomendada pela Corte portuguesa durante o século 19, mas foi somente com o surto nos primeiros anos de 1900 que a vacinação obrigatória entrou na pauta do governo.

Como dito, a essência da revolta contra a vacinação não tem relação com o obscurantismo, mas sim com a luta de classes, a perseguição do Estado e a miséria nas condições de vida. Isso quer dizer que não era apenas o programa de governo de Rodrigues Alves que objetivava o saneamento da capital. Esse projeto foi também colocado em prática com a gestão municipal do engenheiro Pereira Passos, que teve mandato no Rio de Janeiro no mesmo período do presidente Alves (1902-1906). O combate às epidemias e ao retrato colonial do Rio de Janeiro tinha como fim a destruição das moradias dos trabalhadores nos centros da cidade para a construção de ruas, avenidas, cafés e praças à la Paris. Isto é, a tentativa de uma incipiente burguesia brasileira em emular ares franceses, transvestir-se de civilizada.

Charge da revista “O Malho”, de 29 de outubro de 1904, antecipava a revolta que se instalaria na cidade poucos dias depois Imagem: Leonidas, Acervo Fiocruz
Assim, como resultado, foi feito o famoso “Bota-Abaixo” para a “higienização da cidade”. Na prática, o que os representantes burgueses chamavam de “processo civilizacional”, significou a destruição de mais de duas mil casas de trabalhadores na região central do Rio de Janeiro para abrir o que hoje conhecemos como a Avenida Rio Branco, cruzando a cidade e sendo o principal marco das reformas de Passos e Alves. São nestas reformas é que consiste o real processo de favelização da capital com os trabalhadores sendo escorraçados de suas propriedades e destinados aos morros, principalmente da Providência e nas demais zonas portuárias, sendo obrigados a construírem precárias moradias. Estes atos estavam imersos em uma profunda crise socioeconômica do início do século, em um país de capitalismo dominado e com desenvolvimento desigual e combinado, que havia há apenas 16 anos abolido a escravidão de 388 anos. Todo esse contexto de uma antidemocrática República fez com que os trabalhadores “se atrevessem a encarar a morte sem medo” colocando-se contra a vacinação, o estopim do momento.

Portanto, a vacinação foi somente a gota que fez o copo transbordar, não um ato anticientífico dos trabalhadores, inclusive pela esmagadora maioria deles estarem completamente à margem da escolarização. Em meio a isso, a Lei da Vacina Obrigatória foi uma condição imposta por Oswaldo Cruz à Rodrigues Alves, que deveria pressionar o Congresso Nacional para oficializá-la. A votação passou por intensas discussões no parlamento, dentre elas os votos contrários de Olavo Bilac e Rui Barbosa, que se negavam a compactuar com uma obrigatoriedade do governo, justificando a defesa da liberdade individual contra o Estado. Apesar das divergências gerais, a lei foi posta em vigor em 31 de outubro de 1904.

Então, se por um lado, nas disputas entre as frações burguesas, a revolta foi, em parte, incitada pelo Partido Republicano Federal e seu dirigente militar Lauro Sodré, que – oriundos da Escola Militar da Praia Vermelha, casa do golpe republicano de 1889 – estava farto da República do Café com Leite, a verdadeira Revolta foi massivamente realizada pelos trabalhadores, explorados e oprimidos devidos os ataques dos governos federal e municipal.

Estourada no dia 10, a revolta recebeu no largo São Francisco, reuniões de grupos contrários à lei de Cruz e Alves. Os passos seguintes foram os conflitos, “distúrbios urbanos” e prisões. Com a pressão, a lei foi suspensa pelo Congresso no dia 11, mas nos dias 12 e 13 as ocorrências continuaram fortes na região da praça Tiradentes. Nos dias 14 e 15, a revolta tomou proporções mais violentas. Cerca de 20 bondes da Companhia Carris Urbanos e muitos lampiões da iluminação pública foram destruídos. A guarda foi reforçada contra a revolta, assegurando o Palácio do Catete, do qual Rodrigues Alves, respondendo tanto o povo, quanto as tropas de Lauro Sodré, dizia que “só sairia morto” – frase reproduzida por Getúlio Vargas nos anos 1950.

A revolta se espalhara pela cidade: Botafogo, Laranjeiras, zona norte, Praça Onze, Tijuca, Gamboa, Rio Comprido, Engenho Novo, Cidade Nova, Vila Isabel e Copacabana. No bairro da Saúde, a revolta dava-se 24 horas por dia com barricadas. Dirigentes dos trabalhadores despontavam, como o Prata Preta, um capoeirista e estivador que se tornou símbolo da resistência dos trabalhadores cariocas. Era a rebelião, o antídoto para a doença capitalista.

Evidentemente que as forças armadas foram mobilizadas com ardor por Rodrigues Alves, mesmo com as cisões internas. O levante golpista da Praia Vermelha tinha traçado tomar o poder no dia 15 de novembro para retomar sua República em um desfile militar no aniversário da Proclamação, mas a revolta popular impediu o ato. Ao saber do golpe arquitetado pela Escola Militar, no início da noite de 14 de novembro, o presidente Rodrigues Alves se reuniu com os ministros da Guerra, Francisco de Paula Argollo, da Marinha, Júlio César de Noronha, da Justiça, José Joaquim Seabra, da Fazenda, José Leopoldo de Bulhões Jardim e da Viação, Lauro Severiano Müller. O Exército, a Marinha, a polícia e os bombeiros foram acionados para fortalecer a segurança do palácio e do presidente, e então, quando os golpistas liderados pelo general Travassos chegaram à rua da Passagem, em Botafogo, se chocaram com uma brigada de ataque enviada pelo governo. Ambos recuaram após um tiroteio, cada qual imaginando sua própria derrota. O general Travassos, gravemente ferido por tiro, viria a falecer oito dias depois, enquanto Lauro Sodré, havia fugido. Aos poucos a notícia da retirada das tropas golpistas chegou ao palácio do governo e a Escola Militar foi bombardeada durante a noite por navios de guerra posicionados na baía de Guanabara, quando na manhã do dia 15 foi ocupada sem resistência dos alunos, que foram presos, expulsos da Escola, embarcados em navios e levados para portos no Sul do país. Assim, o movimento militar do senador Sodré acabou e seu líder foi preso.

Charge de Angelo Agostini, mostra o general Silvestre Travassos ferido mortalmente enquanto os soldados revoltosos fogem Imagem: Domínio público
Contudo, se no dia 15 o golpe militar já havia sido derrotado, a revolta popular continuava. No dia 16 de novembro foi decretado o estado de sítio e a lei obrigatória da vacina passou de suspensa para revogada. Com isso, após amplo massacre das forças do Estado, a revolta começou arrefecer. Alguns mortos e centenas de presos foram enviados para a ilha das Cobras, no interior da Baía da Guanabara. Outros tantos foram deportados para o Norte do país, principalmente ao Acre.

Assim como em nosso tempo, com a pandemia de Covid-19, não sabemos ao certo quantos trabalhadores morreram tanto pelas doenças, quanto durante a Revolta da Vacina. Se na atualidade as mortes são subnotificadas, no início do século 20 elas não eram nem mesmo contabilizadas. Em todos os casos, a vida dos trabalhadores é o que menos importa para o capitalismo, a República brasileira é um exemplo evidente disso. O historiador Nicolau Sevcenko escreveu que:

“Os massacres em geral não manifestam rigor pela precisão. Sabe-se quantos morreram em Canudos, no Contestado ou na Revolução Federalista – para só ficarmos nas grandes chacinas da Primeira República? A matança coletiva dirige-se, via de regra, contra um objeto unificado por algum padrão abstrato, que retira a humanidade das vítimas: uma seita, uma comunidade peculiar, uma facção política, uma cultura e uma etnia. Personificando nesse grupo assim circunscrito todo o mal e toda a ameaça à ordem das coisas, os executores se representam a si mesmos como heróis redentores, cuja energia implacável esconjura a ameaça que pesa sobre o mundo. O preço a ser pago pela sua bravura é o peso do seu predomínio. A cor das bandeiras dos heróis é a mais variada, só o tom do sangue de suas vítimas permanece o mesmo ao longo da história” (SEVCENKO, p. 3, 2010).

Esse sangue das vítimas ao longo da história, no qual fala Sevcenko, é da classe trabalhadora vilipendiada e usurpada de tudo que possuiu e construiu, negada de toda dignidade, instrução e ciência, em prol apenas da produção das riquezas apropriadas pelas classes dominantes. Mas, apesar de tudo, os trabalhadores não são facilmente adestrados e docilizados, mesmo quando as frações burguesas tentam se aproveitar das revoltas populares, como os golpistas de Lauro Sodré. Existe nas massas trabalhadoras a chama da revolução, que a qualquer momento pode encher-se de vigor e provocar a convulsão social que os exploradores tanto temem. A história brasileira, assim como a dos trabalhadores de todos os países, é repleta desses exemplos e permanentes até nossos tempos.

No início do século 20, a burguesia civil republicana buscava realmente “aburguesar” o país, um espírito afrancesado de tentar trazer a civilização para uma terra devastada pela escravidão, que proporcionou as riquezas desses mesmos homens. Mas a Revolta da Vacina explicitou a contradição deste sistema, pois esse processo escancarou urbanamente as desigualdades, a exclusão e a exploração contra os trabalhadores. Isso deixa claro, que a reação popular “não foi contra a vacina, mas contra a história. Uma história em que o papel que lhes reservaram (aos trabalhadores) pareceu-lhes intolerável e que eles lutaram para mudar” (SEVCENKO, p. 65, 2010). Um papel, como quis dizer Lima Barreto, que destinado pela República liberal, “democratizou a senzala”.

Porém, como classe revolucionária, os trabalhadores não se prenderão às correntes, nem aceitarão as migalhas eternamente. Nossa classe se revolta e se põe em movimento com a luta de classes, por isso precisamos construir uma direção capaz de aprender com a história, como a Revolta da Vacina e tantas outras, para que os erros e debilidades do passado não se repitam, para que todo o véu da falsa democracia liberal seja arrancado, pois só assim todas as doenças deste modo produtivo apodrecido terão seu antídoto. Devemos estar prontos para quando o “morro descer e não for carnaval”, nem mesmo uma revolta, mas para uma Revolução Socialista!

Referência:

SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. São Paulo: Cosac & Naify, 1ª ed, 2010.