O recente anúncio de que a água radioativa armazenada em Fukushima seria despejada no oceano, num processo que se iniciaria daqui a dois anos, foi bastante noticiado na mídia. Analisemos os fatos. Uma unidade produtora de energia elétrica do tipo usada em Daiichi Fukushima, funciona do seguinte modo: O combustível consiste em barras cilíndricas de zircaloy, que é nome genérico para uma liga de zircônio comumente usada para esse fim. Cada uma destas barras cilíndricas contém 300 pellets (com dimensões da ordem de 1 cm) de óxido de urânio enriquecido, isto é, radioativo. Uma central pode usar núcleos com até 4600 barras, que devem ser mantidas submersas em água para remover o calor resultante da fissão nuclear. Este calor é usado para produzir o vapor que aciona as turbinas geradoras de energia elétrica. A grande capacidade de geração de energia vem do fato de que o processo de fissão envolve a conversão de massa em energia. As capacidades de geração das centrais de Daiichi Fukushima eram de 460 MW (1 MW = 1000 watts) na unidade 1; 784 MW nas unidades 2 a 5 e 1100 MW na unidade 6. Para que tenhamos ideia, Angra 1 gera uma potência de 640 MW; Angra 2, 1350 MW e Itaipu Binacional, 14.000 MW.
Acidentes em centrais nucleares ocorrem em geral quando, por alguma razão, não há água para refrigerar estas barras. Neste caso, ocorre o superaquecimento, que ocasiona o derretimento do combustível nuclear e dos cilindros, gerando gases radioativos cuja pressão pode provocar explosões capazes de romper tanto o vaso de contenção, quando o próprio edifício da central, com liberação de material sólido e gasoso por uma vasta extensão em torno da central. Para conter o processo de derretimento, água em grande volume é normalmente usada. Esta água, entretanto, não pode ser simplesmente liberada, pois contém material radioativo dissolvido. Ela deve ser armazenada para ser filtrada antes de poder ser despejada.
Em 11 de março de 2011, um terremoto, seguido de tsunami, causou um acidente de grandes proporções em quatro das seis unidades da planta nuclear Daiichi Fukushima, localizada a 63 km da cidade de Fukushima, forçando a evacuação de 470 mil pessoas. Em razão do terremoto e do tsunami, a câmara pressurizada que abriga o reator nuclear teve danos estruturais e houve vazamento de material radioativo no meio ambiente, contaminando água, ar e solo. A água radioativa escoou para o mar em quantidades sem precedentes. Os núcleos radioativos das unidades 1, 2 e 3 ficaram expostos e,sem água de refrigeração, se fundiram no fundo dos vasos retentores.
Os níveis de radiação no mar próximo a Fukushima chegaram a superar o limite máximo aceitável de radiação, de 100 becqueréis, em aproximadamente 1 milhão de vezes. Até hoje, a presença de substâncias radioativas em níveis acima do normal é detectada tanto no solo da região de Fukushima quanto em boa parte da costa japonesa e ilhas do Pacífico. Apesar do processo de remoção da maior parte dos escombros e combustível nuclear ter finalmente terminado em março deste ano, os problemas continuam, como o grande volume de material sólido contaminado, assim como a infiltração de água subterrânea nos edifícios dos reatores. Este problema faz com que a produção de água contaminada continue numa taxa de aproximadamente 140 toneladas por dia. O armazenamento desta água vem sendo feito em mais de mil tanques em torno da usina a um custo anual atual de 900 milhões de dólares. A presente capacidade de armazenamento tem esgotamento previsto para o final de 2022, se novos tanques não forem construídos a uma taxa apropriada. No dia 13 de abril o governo japonês anunciou que 1,23 milhão de tonelada de água radioativa acumulada seá despejada no oceano Pacífico, num processo que teria sua primeira etapa iniciada em 2 anos. Esse é o tempo estipulado para que a Tokyo Electric Power Company (TEPCO) construa os filtros que, segundo o gabinete de ministros, asseguraria que a água a ser despejada contenha níveis seguros de radiação. A TEPCO afirma que todos os 62 elementos radioativos serão filtrados da água a ser descartada, exceto o isótopo trítio, cuja remoção é muito difícil. O trítio é um isótopo radioativo do hidrogênio, com um núcleo de um próton e dois nêutrons. Sua meia-vida (tempo necessário para que metade do material decaia no gás hélio) é de somente 12,3 anos, de modo que não há efeitos cumulativos. Um dos problemas do trítio em Fukushima é a contaminação do lençol freático1. No entanto, não é sabido exatamente quão eficiente será a filtragem de elementos potencialmente muito perigosos, tais como estrôncio-90 e iodo-129. A concentração de radionuclídeos armazenados nos tanques não é exatamente conhecida.
A empresa operadora da planta nuclear, TEPCO, anunciou, no fim de 2011, que a localidade estaria descontaminada em aproximadamente 30 ou 40 anos, sendo transformada em um “campo verde”. No entanto, como observou o engenheiro nuclear, Satoshi Sato2, especialista em segurança nuclear no Japão, tal declaração era de caráter político, destinado, acima de tudo, para apaziguar ânimos exaltados da população afetada. Naquele momento, na verdade o que existia era um dificílimo problema de engenharia, sem soluções no horizonte. As declarações oficiais do governo japonês têm em geral um teor que faz com que a população acredite que o problema seja resolvido sem a presença de fatores probabilísticos associados às incertezas, especialmente com um problema sobre o qual a engenharia possui pouca experiência3. A ideia das incertezas envolvidas no processo de despejo de água contaminada no oceano Pacífico, sem o conhecimento do quão efetivo será o processo de filtragem, deve ser motivo de preocupação, principalmente quando altos custos estão envolvidos.
Referências:
1 Shozugawa, K., Hori, M., Johnson, T.E. et al.Landside tritium leakage over through years from Fukushima Dai-ichi nuclear plant and relationship between countermeasures and contaminated water. Sci Rep 10,19925 https:/www.nature.com/articles/s41598-020-76964-9.pdf
2 Satoshi Sato, Fukushima Daiichi Decommissioning Time for a new long term strategic plan. Shaun Burnie, Greenpeace East Asia, March 2021.
https://www.greenpeace.org/static/planet4-japan-stateless/2021/03/20cf92ab-decomrep_final2.pdf
3 Fukushima Daiichi Accident, World Nuclear Association, https://bit.ly/3dp7yJs
Fernando Deeke Sasse é doutor em Matemática Aplicada pela universidade de Waterloo, professor do departamento de matemática da UDESC Joinville e apoiador da Esquerda Marxista.