No último domingo (19/4), Bolsonaro participou de um ato público que pedia intervenção militar, fechamento do Congresso, fim do isolamento social e reabertura de empresas e comércio. Essa atitude do presidente causou a indignação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), de deputados e senadores – incluindo o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM) –, de setores empresariais, da mídia, entre outras camadas da burguesia.
Bolsonaro não apenas compareceu ao ato como realizou fala e afirmou não querer “negociar nada” com o Congresso e, se utilizando da sua tradicional demagogia, disse que “agora é o povo no poder“. O episódio ajudou a aprofundar ainda mais o isolamento que o governo já vinha sofrendo diante da população e de camadas da própria burguesia.
As tensões só se intensificaram nos dias subsequentes. Quando questionado por jornalistas sobre a sua participação nos atos, Bolsonaro atacou a imprensa, disse que nunca atentou contra a democracia e concluiu com uma frase atribuída, mas nunca comprovada, ao mais poderoso rei absolutista da França, Luís XIV, ao declarar “Eu sou realmente a constituição”.
No entanto, como disse Marx, se “os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes” (O 18 de brumário de Luís Bonaparte), é preciso acrescentar que “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. A frase “L’État c’est moi” (O Estado sou eu), sendo ou não do próprio Rei Sol, pelo menos dava a dimensão de todo o poder da monarquia absolutista francesa e a força do Estado moderno que nascia. Já no caso de Bolsonaro, é mais um grito de desespero, de um candidato a Bonaparte fracassado que precisa disputar com as demais instituições e até com seus ministros para governar.
São dois os elementos centrais que contribuem para o aumento das tensões. Em primeiro lugar, a divergência sobre como lidar com a pandemia da Covid-19 e suas consequências sociais e econômicas e, em segundo lugar – se relacionando com a crise do coronavírus –, a crise econômica que já impacta e irá impactar ainda mais no Brasil.
A pressão gerada pela atual conjuntura está fazendo o Executivo se chocar diretamente com os demais poderes. Trata-se de uma queda de braço para ver quem manda no país. Esta disputa já existia antes, por exemplo, na questão da liberação de “emendas parlamentares”, do dinheiro para a realização de obras aprovadas pelo Congresso – se continuariam a ser responsabilidade do Executivo ou se passariam a ser controladas pelo próprio Congresso. Também a disputa existia com o Judiciário nos diferentes processos que envolvem membros do antigo partido de Bolsonaro, o PSL, justamente da ala que saiu com Bolsonaro e seus filhos por corrupção ou envolvimento com a milícia. Agora, tudo se precipita.
Bolsonaro é um ferrenho crítico das medidas de isolamento social, mesmo sendo medidas completamente irrisórias se compararmos com os lockdowns de países como China, Itália e Alemanha. Com esse discurso, ele busca se distanciar das consequências econômicas da crise e, ao mesmo tempo, dialogar com uma base de pequenos e médios empresários, setores do comércio etc. que estão falindo por conta da quarentena organizada pelos estados.
No início de abril, Bolsonaro já havia sofrido uma derrota quando o STF proibiu o Planalto de adotar medidas revogando decisões de governadores e prefeitos, que determinaram isolamento social, com fechamento de escolas e comércio, no combate à disseminação do coronavírus.
No Congresso Nacional, a última derrota de Bolsonaro foi a aprovação do auxílio de R$ 90 bilhões para socorrer os estados e municípios da pandemia. O auxílio foi elaborado pela Câmara dos Deputados, contra a vontade do presidente, na forma de um reembolso aos estados e às prefeituras dos impostos que deixarão de ser cobrados em função das medidas de quarentena e isolamento social. É preciso lembrar, entretanto, que apesar dos conflitos, o Congresso apoia as medidas econômicas do governo de ataques aos trabalhadores, libera o Banco Central para fazer “negociatas” envolvendo títulos podres no mercado financeiro e, no mesmo projeto de Emenda Constitucional, abriiu um crédito ilimitado sob controle direto de Bolsonaro para “combater a epidemia”. O problema é que Bolsonaro quer muito mais que isso.
O STF, por sua vez, apesar da flagrante inconstitucionalidade, valida a medida provisória que permite a redução de salários com redução de jornada e a suspensão do contrato de trabalho, com salário desemprego extremamente reduzido. Já são três milhões de trabalhadores com vínculo formal que foram atingidos por essa medida (do total de 33 milhões com vínculos formais – carteira assinada), ou seja, aproximadamente 10% dos trabalhadores. O número dos que perderam emprego ainda não tem estatística divulgada, mas deve ser maior que isso. E toda a burguesia pressiona para que esta medida continue “após a crise”.
Paladinos da democracia
A burguesia compreendeu o recado de Bolsonaro e está desde domingo vociferando contra o presidente. Em seu editorial de 23 de abril, o Estado de S. Paulo explicou seu ponto de vista:
“A democracia é ameaçada quando um presidente usa a visibilidade e a importância institucional de sua cadeira para fazer carga contra outros Poderes, como faz Bolsonaro; é ameaçada quando militantes virtuais, alguns com assento no Palácio do Planalto, confundem a opinião pública com mentiras as mais diversas para desmoralizar a oposição e o contraditório, imprescindíveis para a saúde democrática; e é ameaçada quando o presidente sistematicamente criminaliza a política, sugerindo que a ‘vontade do povo’ é exclusivamente por ele representada e deve ser atendida sem qualquer discussão.” (Bolsonaro e a democracia, 23/4)
Outros jornais, também preocupados com a “vontade do povo”, citada no discurso do presidente, dedicaram seus comentários à explicação de que o Congresso Nacional já representa essa vontade. Esse raciocínio, compartilhado por praticamente toda a imprensa tradicional, expressa uma ideia central: é preciso preservar a “democracia”, ou seja, as instituições burguesas.
O impeachment de Bolsonaro voltou a tomar conta das pautas dos jornais, mas também era unânime a preocupação dos comentaristas em relação a quem assumiria no seu lugar. Todos têm dúvidas de como seria um governo Mourão e não conseguem visualizar um substituto capaz de controlar a situação. A burguesia não descarta essa possibilidade e ela poderá ser utilizada caso seja a única saída para salvar as instituições e o sistema.
Nessa tarefa, a classe dominante conta com importantes aliados e o principal deles se chama Luiz Inácio Lula da Silva. Lula, que até ontem defendia que não era hora do “Fora Bolsonaro”, não só está propondo aderir a essa palavra de ordem, como estará junto com Fernando Henrique Cardoso “no palanque” durante o 1º de maio para discursar contra Bolsonaro, mas em defesa da democracia, é claro. O giro do PT é importante, pois ele busca fechar o espaço para uma manifestação independente dos trabalhadores e dos jovens, criando uma barreira contra a explosão revolucionária que todos estão prevendo. A mensagem de Lula é direta:
“É preciso começar o ‘fora, Bolsonaro’ porque não é possível a gente permitir que ele destrua a democracia. As instituições já deveriam ter reagido.” (Folha de S. Paulo, 23/4)
Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) aderem ao “Fora, Bolsonaro” por puro oportunismo, pois buscam salvar as instituições – assim como a burguesia quer –, porém por outro caminho, supostamente mais radical. O objetivo real desse traidor da classe operária é se utilizar de sua autoridade para canalizar a insatisfação popular contra Bolsonaro e salvar o Estado burguês. A manobra tem como objetivo construir uma “frente democrática”, que agindo dentro das atuais instituições, busque o afastamento do Presidente pela via parlamentar (“impeachment”), cortando passo para que uma revolução coloque tudo abaixo.
Os atuais dirigentes da classe operária estão indo cada vez mais à direita e esse é o único caminho que seguirão, por mais que “revolucionários” que pareçam.
O bom burguês e a classe operária
Em meio a toda crise que se instaura, o discurso de que é hora de pensar no país, na pandemia etc. é utilizado por elementos burgueses supostamente preocupados com a população. É preciso compreender que essa burguesia mais “racional” não é um lado bom da história, o que ela busca apenas é se salvar e, por isso mesmo, não está imune às pressões do mercado e dos próprios empresários locais.
Governadores como João Doria (PSDB), de São Paulo, só tentaram aplicar o isolamento social, para amenizar o impacto da pandemia, além de saberem que seus nomes e carreira política estão em jogo, sabem também que se conseguem conter a explosão social, muitos morrerão, mas o capital fixo, as máquinas e equipamento estarão lá, não sofrerão com a crise e poderão voltar a funcionar. Doria, nesse caso, adota uma política do tipo “morde e assopra”. Anuncia uma proposta para a retomada das atividades de comércio e pequenas empresas e, ao mesmo tempo, diz que, em função do aumento do número de mortes, é preciso esperar mais para tomar essa decisão.
Em Santa Catarina, o governador Carlos Moisés (PSL) foi mais longe e voltou a permitir o funcionamento de shoppings e outras atividades comerciais que irão resultar em aglomerações e irão criar um ambiente propício para a contaminação pelo vírus. O governador do Distrito Federal importou testes do vírus e agora começa a ensaiar uma retomada. No Rio de Janeiro, depois de anunciar uma retomada parcial, o governador é obrigado a voltar atrás, pelo número de mortes anunciadas.
O que os move é, antes de tudo, salvar o capitalismo. Eles contam para tal com a manobra do PT e com a passividade das direções sindicais, que assinam e convalidam os acordos para redução de salário.
Empresários que podem parar agora, em algum momento irão sentir o impacto da queda da economia mundial e precisarão voltar a funcionar para sobreviver e, com ou sem pandemia, irão tentar retomar suas atividades.
A maior preocupação dessa camada da classe dominante é o impacto político que pode gerar essa pandemia. Nenhum burguês sensato está disposto a enfrentar a fúria generalizada daqueles que estão perdendo seus empregos, perdendo familiares, amigos ou arriscando suas vidas para manter o lucro dos empresários, como explicamos anteriormente:
“Dadas essas condições, a “gripezinha” dos trumps e bolsonaros, para citar apenas duas manifestações políticas da decadência burguesa, está impondo considerações de tal ordem que já não se trata apenas de admitir e contabilizar uma queda temporária dos lucros, mas sim de evitar de imediato e a qualquer custo uma ruptura social desastrosa, em escala nacional e internacional. E, além das mortes que poderiam ter sido evitadas, além do sofrimento pelo desemprego que já está disparando, no médio e longo prazo, a conta a pagar ainda será apresentada aos trabalhadores.” (A pandemia e o capitalismo, Ruy Penna)
Imagens como as covas abertas rapidamente por retroescavadeiras em Manaus, no Amazonas, impactam profundamente na consciência das massas. Essas imagens lembram de imediato as cenas dos caminhões do exército, carregando os mortos pelo coronavírus na Itália ou as imagens dos corpos jogados nas ruas do Equador, porque a quantidade de vítimas pela doença é maior do que suporta não só o sistema de saúde, mas também o funerário.
Todo esse sofrimento será colocado na conta do capitalismo e os patrões sabem disso.
Moro sai do governo
Na terça-feira, 21, o Judiciário iniciou uma nova investida quando o ministro do STF, Alexandre de Moraes, decidiu atender ao pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, e abriu um inquérito para apurar “fatos em tese delituosos” envolvendo a organização dos atos de domingo. É sabido desde o início das investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Fake News que os filhos de Bolsonaro estão diretamente ligados com a criação e fomentação de páginas pró Bolsonaro que atacam o Judiciário, o Congresso e convocam as manifestações pró-governo.
Dois dias depois, o ministro do STF, Celso de Mello, estabeleceu um prazo de 10 dias para que Rodrigo Maia apresente informações sobre um pedido de impeachment contra Bolsonaro que não foi apreciado até hoje.
No mesmo dia, 23, Bolsonaro decide demitir o diretor-geral da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo, principal nome de confiança do ministro da Justiça, Sérgio Moro. A demissão foi concretizada na manhã de hoje (24) e algumas horas depois, o ministro que dava maior legitimidade para o governo, pediu demissão. As consequências políticas podem ser desastrosas para o governo Bolsonaro.
O discurso de Moro traz ainda mais elementos fundamentais para compreender o que se prepara. O ex-ministro da Justiça elogiou a autonomia que deram os governos anteriores à PF, ou seja, os governos Lula e Dilma. A grande aliança nacional em defesa do Estado Democrático de Direito, isso significa, o Estado burguês, está se configurando com PT, com PSDB e até com Moro.
A crise mundial do capitalismo catalisada pela pandemia do coronavírus está chacoalhando o mundo inteiro. Não há estado nacional que sairá ileso dessa situação. Enquanto a burguesia se divide na tentativa de salvar o seu regime, a classe trabalhadora sofre com o aumento do desemprego, da miséria, com as mortes por Covid-19 etc.
A tarefa dos marxistas, neste período em que as direções procuram semear a confusão e impedir as massas de se organizarem de maneira independente da burguesia, é justamente a de ajudar as massas a se organizarem. Para isso, devemos nos empenhar na construção dos comitês Fora Bolsonaro, organizar o encontro online da Liberdade e Luta, nos preparar e ganhar o máximo de jovens e trabalhadores para participarem das atividades da Esquerda Marxista. Estamos falando de um período de revolução e contrarrevolução, em que a única saída para a juventude e os trabalhadores é a revolução socialista. Nossa tarefa é preparar a direção que irá, junto da classe trabalhadora, acabar com o Capital.