Jessica Bernardo, Agência Mural

Contra a Privatização das Casas de Cultura e o modelo de “gestão compartilhada”

Mais uma vez, segundo a longa tradição de desmonte e privatização mobilizada pela burguesia nacional, um serviço público de excelência encontra-se na berlinda, em vias de ser entregue à iniciativa privada. Porém, não se trata da tradicional concessão ou da venda, a preço de bananas, de um serviço superavitário, a fim de enriquecer rapidamente os bolsos de um determinado grupo empresarial que, ao pegar uma máquina de fazer dinheiro pronta (como uma Vale, por exemplo), explora-a indefinidamente, com investimento inicial mínimo, mas sim de um outro modelo um tanto mais nefasto e que, em última instância, visa não à exploração de um serviço notadamente lucrativo, mas sim à extinção de um serviço considerado pelas governanças como supérfluo ou mesmo, em alto e bom som, inconveniente.

Trata-se, hoje, das Casas de Cultura, equipamento cultural criado, em São Paulo, pela ex-prefeita Luíza Erundina, durante seu mandato pelo PT no final da década de 80 e início da década de 90, e cujas 20 unidades, atualmente sob gestão direta da Prefeitura Municipal, tiveram sua terceirização sinalizada pela primeira vez em junho de 2022 e novamente agora, em fevereiro de 2023, após a secretária de Cultura Aline Torres (MDB) publicar o “novo modelo de gestão das Casas de Cultura” em seu perfil do Instagram.

E qual seria o “novo modelo de gestão das Casas de Cultura”? Ora, de novo não tem nada. Trata-se do já conhecido modelo de “gestão compartilhada”, predominante na área da Cultura, no qual a Prefeitura cede, via edital e contrato, o controle de determinados equipamentos públicos a uma entidade da sociedade civil, conhecida nesse modelo como Organização Social (OS), que ficará responsável por toda a administração propriamente dita daquele equipamento: o zelo e a conservação do patrimônio, os contratos de trabalho e a gestão dos recursos humanos, a organização das atividades-fim daquele equipamento, enfim – tudo. Exceto, é claro, por uma coisa, e é aqui que a fórmula para a catástrofe se desvela: o orçamento a ser administrado pela OS é determinado pela Prefeitura.

A primeira consequência desse modelo é a perda significativa de qualidade dos empregos gerados pelo equipamento em questão. Acaba-se com a estabilidade garantida pelos concursos públicos, reduz-se os salários, as demissões são facilitadas e prevalece o acordado sobre o legislado nas relações de trabalho. Ou seja, é o serviço público destituído de funcionários públicos. Em seu post no Instagram, a secretária Aline Torres, ao tentar usar o fato de que 30% do quadro de funcionários das Casas de Cultura se aposentarão em breve como justificativa para implementar o novo modelo, só faz deixar claro que seu compromisso é com a extinção desses cargos no serviço público, uma vez que há candidatos aprovados em concurso para preenchê-las desde 2016.

A longo prazo, porém, as consequências são ainda piores. Desde o fim da Ditadura Militar, as políticas culturais são baseadas principalmente em mecanismos de renúncia fiscal e parcerias público-privadas, sendo a Lei Rouanet o modelo mais famoso dessa política. Com as OS, não é muito diferente. Pois veja-se: é sabido que a tendência das governanças tem sido justamente a austeridade e o corte de gastos, começando sempre pela Cultura. Sendo a Prefeitura responsável pela determinação do orçamento destinado a cada OS, não deve surpreender a cada um de nós que a cada ano ele seja menor, explicitamente (devido a um corte, de fato) ou implicitamente (reajustado abaixo da inflação), cabendo às OS captar junto à iniciativa privada os recursos que certamente faltarão para manter os equipamentos de sua responsabilidade em pleno funcionamento (ou quase). Ou seja, o Estado, cujo orçamento seria plenamente capaz de abarcar a totalidade das necessidades dos equipamentos culturais, caso não estivesse comprometido até os ossos com o odioso pagamento da dívida pública, se abstém de financiá-los, e obriga as OS a se desdobrar para complementar o repasse cada vez menor de recursos.

E diante da inevitável falta de dinheiro, o que se espera é justamente o abuso, por parte das OS, daquela fragilidade que os contratos de trabalho têm neste modelo, em comparação à administração direta: dissídios abaixo da inflação, demissões injustificadas, degradação do patrimônio por falta de manutenção e, consequentemente, das condições ambientais de trabalho. Além disso, a necessidade de captar recursos junto às empresas privadas, obriga as direções das OS a colocar toda a estrutura e os serviços prestados pelos equipamentos em função disso, atrelando-os às ações de marketing dessas empresas, comprometendo a qualidade e, muitas vezes, desvirtuando a própria finalidade do serviço entregue aos usuários.

Um primeiro exemplo, mais recente. Em apenas dois anos de gestão do Complexo Theatro Municipal, a OS Sustenidos alegou um rombo de R$ 13 milhões no orçamento, devido ao parco reajuste do repasse anual da Secretaria Municipal de Cultura. Mas não para por aí, antes de vir a público expor esta situação, a OS tentou impôr uma avaliação com potencial demissório a todos os corpos artísticos do Complexo, cujo impacto orçamentário é coincidentemente o maior, a começar pelo Coro Lírico (um dos únicos coros especializados em ópera no país), a fim de reduzir o número de coralistas à quase metade de seu efetivo atual. Diante da repercussão extremamente negativa da estratégia inicial, a Sustenidos suspendeu o processo. Não nos enganemos diante dos nomes, uma OS é uma empresa e, como empresa, ao sentir-se ameaçada assediará, de pronto e sem dó, os seus trabalhadores.

E, por fim, o exemplo derradeiro e a súmula do que é e aonde vai o modelo de “gestão compartilhada” é justamente o da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo (BSESP), a única de seu gênero na América Latina e cuja atividade foi encerrada abruptamente após 27 anos de existência e tradição. Em janeiro de 2017, os músicos integrantes receberam do Instituto Pensarte, OS responsável pela Banda à época, a informação de que seriam demitidos, e o grupo, extinto. O contrato da OS se encerraria naquele mês e não seria renovado.

Ao saber disso, os trabalhadores da Banda se mobilizaram, entre concertos-protesto e publicações nas redes sociais, através da página “SOS Banda Sinfônica” e, com a solidariedade de todos os seus admiradores, apoiadores e demais trabalhadores da cultura, garantiram que a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovasse uma emenda destinando à OS um repasse de R$ 5 milhões, o que salvaria, temporariamente, o grupo. Entretanto, o então governador e atual vice-presidente Geraldo Alckmin (então PSDB e atual PSB) recusou-se a liberar o repasse, que foi prontamente congelado. A Banda ainda realizou, em condições precárias, um ou outro concerto, mas em 6 de fevereiro de 2017, o pior concretizou-se: os músicos foram convocados à sede do Instituto Pensarte para assinar suas demissões.

Portanto, é preciso barrar o projeto de terceirização/privatização das Casas de Cultura, que, como podemos ver, pode ser o princípio do fim de um importante equipamento cultural público. Não apenas assinar a petição pública “Manifesto contra a privatização das Casas de Cultura em São Paulo – SP” do movimento “SOS Casas de Cultura” e segui-los nas redes sociais, mas somar ao movimento, que organiza um ato para o dia 27 de março, com local e horário ainda a definir. É preciso sair da defensiva e assumir a luta política contra todas as privatizações, que virão com tudo também a nível estadual, sob a gestão Tarcísio (Republicanos). Nesse sentido, parabenizamos a frente única que vem sendo formada entre o “SOS Casas de Cultura” e o “Comitê contra a Privatização da CPTM”, um passo importante para conquistar um salto de qualidade na lida, rumo à luta política, cujas pautas imediatas são:

  • Pela suspensão definitiva do processo de terceirização das Casas de Cultura.
  • Pela estatização de todo o serviço público e contratação imediata dos trabalhadores atualmente terceirizados.
  • Pela convocação imediata dos aprovados no concurso público de 2016.

E mais!

  • Abaixo a EC 95 – Teto de Gastos.
  • Abaixo a Lei da Terceirização Irrestrita e as contrarreformas da Previdência, Trabalhista e Administrativa.
  • Pelo fim do pagamento da dívida pública e que todo o dinheiro seja revertido para os serviços públicos (cultura, educação, saúde e assistência social).