A Fúria de Aquiles, de Charles Antoine Coypel (1737)

Filosofia, ciência e misticismo (Filosofia da História – parte 3)

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 17, de 15 de outubro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

ÍNDICE

Filosofia, ciência e misticismo (parte 1)

Filosofia, ciência e misticismo (parte 2)

Filosofia, ciência e misticismo (Parte 2 – Continuação)

Filosofia, ciência e misticismo (Filosofia da História – parte 1)

Filosofia, ciência e misticismo (Filosofia da História – parte 2)

Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Essa frase representa o super-herói Homem-Aranha. Mas ela poderia representar todos os grandes super-heróis de quadrinhos. Na verdade, ela é expressão máxima de uma Filosofia da História. E a história é feita pelos grandes homens, pelos heróis, pelos reis, imperadores etc.

Essa é a filosofia que encontramos em Heródoto e em Suetônio. É assim que vemos a história da Grécia como a história de deuses, semideuses, reis e grandes realizadores. Suetônio, por sua vez, faz da história de Roma a história de seus imperadores. Última análise viva, a história é reduzida aos desejos, impulsos, vontades e visões destes grandes homens. Esta mesma interpretação encontra-se na história chinesa (muito mais antiga), na história das “dinastias”, dos “reinos”, dos acordos e desacordos que constroem a China.

Na Bíblia encontramos o mesmo tipo de história. Os profetas, os juízes, as heroínas e os reis “constroem” a história do povo judeu. Neste caso, há um elemento a mais: todos eles agem por “inspiração” divina, seguindo a vontade de Deus. E quando não a seguem, o castigo é terrível. Ou seja, a explicação para os insucessos dos seus “grandes homens” encontra-se na capacidade destes de seguir a Deus, suas leis e vontades.

O problema destas duas filosofias da história é sua “inutilidade” em termos de construir previsões e determinar o curso das ações a serem seguidas pelos líderes e pelos povos. Os adivinhos e astrólogos da antiguidade, ao fazerem suas predições, tinham mais utilidade prática.

E, num mundo onde o cristianismo era o padrão (a Idade Média europeia, resultante da derrubada do Império Romano), uma nova categoria de “sábios” se impôs: os astrólogos, que através da observação dos astros, dos céus, adivinhavam o que seria o porvir. Kepler, além de cônego e astrônomo, era astrólogo real, “posição” que lhe garantia o sustento. Regularmente produzia relatórios astrológicos, com previsões sobre safras, clima, situação dos reinos e outras nações próximas. Em outras palavras, produzia o que hoje chamaríamos de análise de conjuntura política e econômica, com previsões que guiavam as decisões reais. E foi a sua habilidade nesta atividade que lhe garantiu o emprego.

Mas, qual o método, qual a filosofia da história que utilizavam estes senhores? Através da prática, eles foram além da história dos “grandes homens”. Usavam o que podemos chamar hoje de “fatores” históricos, econômicos e políticos para fazer suas previsões.

O final do feudalismo (Idade Média), tanto na China quanto na Europa, foi conturbado. Além das inquietações e movimentações da burguesia, as guerras entre os senhores feudais e as revoluções camponesas varriam os países. Na China, já vimos, terminou com a derrota da burguesia. Na Europa, a burguesia conseguia sua primeira grande vitória, com a Revolução Inglesa (século 17).

A vitória da burguesia e a “nova ciência”

Os homens que fizeram esta revolução eram imbuídos de uma filosofia segundo a qual o mundo era governado por Deus e cabia a eles estabelecerem as leis divinas na Terra. Neste sentido, um determinismo histórico de que seu destino já estava traçado e cabia a eles executá-lo. Claro que este tipo de filosofia tanto serviu à nova burguesia na Inglaterra, como também aos feudais islâmicos que impediam o desenvolvimento do capitalismo em seus domínios.

A burguesia necessitava de uma nova filosofia, adaptada aos novos tempos, e o Renascimento (a “volta” aos clássicos) foi, na verdade, uma nova filosofia às vezes com velha roupagem. Vico, em sua “Ciência Nova” (século 18), explica que são os homens que fazem a história, embora não tenha chegado às leis que governavam este fazer. A Revolução Francesa (1789) já se faz com outra roupagem filosófica, desprezando a religião e aceitando o primado da ciência. Michelet, para explicar a revolução, toma a filosofia de Vico e acrescenta que o povo constrói sua própria pátria.

A vitória da Revolução Francesa e depois a ditadura de Napoleão (que invade a maior parte dos países europeus varrendo uma boa parte da nobreza) e as revoluções de 1830 e 1848 vão varrer a Europa e consolidar na maioria dos países a vitória da burguesia. Contudo, essa vitória só se completará no final do século 19, com as unificações da Alemanha e da Itália, a guerra civil dos EUA (que eliminou a escravidão) e a Revolução Meiji no Japão).

Mas com a sociedade burguesa nascia também o proletariado, a classe que nada possuía e só trabalhava para a riqueza da burguesia. Analisando esta situação, dois jovens alemães, Marx e Engels, juntaram-se e construíram uma filosofia da história: o materialismo histórico (ou marxismo, como ficou conhecido).

Partindo do conhecimento acumulado da humanidade — científico, filosófico, histórico e econômico —, o materialismo histórico explica a história da humanidade como conflitos entre as classes sociais. E que estes conflitos têm sua origem última na luta pela sobrevivência (como explicou Vico em “Ciência Nova”), mas se estendem por toda a sociedade, em termos políticos, culturais, filosóficos. As classes sociais em luta têm resultados muito diferentes: a classe oprimida pode ser derrotada seguidamente (como foram derrotadas as revoltas de escravos no Império Romano), pode ter suas lutas interrompidas por um inimigo externo. Como exemplos temos as cidades gregas, que saíram vitoriosas quando atacadas pelos persas, ou que foram derrotadas pelos macedônios que souberam explorar as divisões internas; o Império Asteca, derrotado pelos espanhóis que souberam explorar as revoltas dos povos conquistados contra os Astecas; as dinastias chinesas destruídas pelos mongóis etc.

No caso dos chineses, dos gregos e posteriormente dos romanos, o esgotamento das classes em lutas levou a que um inimigo externo com uma cultura menor conseguisse explorar as divisões e destruir uma antiga civilização. Tanto na China como na Europa isso fez nascer um novo sistema econômico, o feudalismo. Neste, uma classe social nova, nascente, a burguesia, conseguiu dirigir a raiva de todas as outras classes, derrubar os feudais e construir um novo sistema social: o capitalismo.

Materialismo histórico e “fatores históricos”

Ao se erguer como classe dominante, a burguesia teve que interromper uma série de avanços que iam além de seus interesses e levavam ao questionamento de seu domínio. Assim, depois do racionalismo da Revolução Francesa, a religião é reintroduzida e favorecida em todos os Estados burgueses, formalmente “laicos”. A filosofia regride e também regride a história que é interrompida na explicação dos “fatores” históricos, negando a luta de classes ou colocando-a como irrelevante.

Para a burguesia e todas as suas variantes filosóficas (tanto as materialistas como as idealistas), o materialismo histórico é simplesmente parte de uma filosofia que coloca a economia como o “principal fator” que explicaria a história.

Esta “explicação” nega o princípio que construiu a grande Revolução Francesa, de que são os homens que fazem a sua própria história. E que para tal eles se organizam, defendem ideias, práticas, culturas e combatem contra todo o antigo sistema. Após a vitória da Revolução Francesa (final século 18) e após a consolidação do seu domínio em todos os campos, a burguesia volta suas armas contra o proletariado, assustada com o seu armamento político e filosófico. Se a revolução de 1848 mostrou pela primeira vez o proletariado agindo de forma independente, a Comuna de Paris mostrou que na guerra de classes o nacionalismo é o primeiro sacrificado, com o Império alemão vitorioso contra o Estado francês, retirando-se da França, rearmando os prisioneiros franceses e ajudando a burguesia francesa a massacrar o proletariado parisiense. Toda a coragem que a burguesia e a pequena burguesia francesa não souberam mostrar contra os alemães, mostraram contra o proletariado parisiense.

O materialismo histórico era vitorioso no proletariado, com a construção de partidos e organizações operárias que questionavam o domínio burguês. Por sua vez, a burguesia retraía-se em termos culturais, políticos e científicos.

E, como explicamos, o combate político entre as classes é muito mais que econômico. O revisionismo nascia no seio do proletariado, as ideologias burguesas encontravam frestas por onde passar e o próximo texto é sobre este combate.