Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 11, de 23 de julho de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.
História do Peru: da colonização à independência (1532-1824)
Nesta nova série de artigos, abordaremos a história de um dos países mais importantes do continente latino-americano: o Peru. Centro histórico de antigas e esplendorosas civilizações, o território peruano sempre exerceu considerável influência sobre os destinos de partes distantes da América do Sul pré-colombiana. A partir da conquista espanhola, no começo do século XVI, a região foi transformada no centro do vice-reinado do Peru, que tinha como capital a cidade de Lima.
Após a independência, os acontecimentos políticos e sociais peruanos, sobretudo no que diz respeito à luta de classes, seguem repercutindo muito em todo o contexto sul-americano. Por isso, para entendermos as origens da dramática realidade atual do Peru e do subcontinente, é necessário um estudo sobre as origens das estruturas sociais que foram herdadas do passado e que marcam seu presente.
Muitos séculos antes da chegada do primeiro navio europeu, a cordilheira dos Andes foi habitada por uma grande diversidade de povos. As imponentes montanhas, o clima rigoroso e a pouca quantidade de terras férteis fizeram com que, desde os primórdios, a vida fosse possível apenas nos estreitos vales que se esgueiram pela cadeia montanhosa. Para garantir a produção agrícola, os povos locais desenvolveram sistemas de irrigação e técnicas de plantio em solos montanhosos. Com o desenvolvimento das forças produtivas locais, surgiram as primeiras sociedades.
Foi no território onde hoje está localizado o Peru que surgiu a primeira civilização de que se tem conhecimento nas Américas. Conhecida como Norte Chico, esse sofisticado povo se organizava em mais de 30 centros urbanos, construídos entre 3100 a.C. e 1800 a.C. Após a decadência dessa, outras civilizações desenvolvidas, como a Chavín e a Mochica, prosseguiram desenvolvendo-se sob bases similares.
O apogeu da região viria com a formação do Império Inca, a partir do século XV. Surgido a partir de um pequeno grupo étnico, os Quechuas, o império rapidamente se expandiu para assumir o controle de quase toda a cordilheira andina. Por quase um século, os incas mantiveram o controle sobre uma população estimada em 12 milhões de pessoas, cuja imensa maioria era camponesa, explorada pela aristocracia por meio de um sistema de servidão conhecido como “mita”.
Tão rápido quanto surgiram e conquistaram seus vizinhos, os incas terminaram eles próprios vítimas de uma rápida expansão. Mas não foi uma outra civilização que surgira nos Andes que os sucedeu. Os espanhóis, poucos anos após destruírem o Império Asteca, desembarcaram na costa do Peru em 1532. Os invasores, liderados por Francisco Pizarro, primo de Hernán Cortés, responsável pela derrota dos astecas, não tardaram a perceber como o Império Inca se encontrava enfraquecido por uma guerra civil, por doenças e o descontentamento dos povos sob seu domínio. Assim como haviam feito na região da Meso-América, atual México, os espanhóis souberam dividir os nativos e, assim como os astecas, os incas não demoraram a ser subjugados, com a captura e a execução do imperador inca Atahualpa sendo o grande marco da conquista.
Após concluir a conquista, os espanhóis trataram de consolidar o domínio sobre as novas terras. A nova colônia, inicialmente batizada de Nova Castilha em 1532, mudou de nome para Vice-Reinado do Peru em 1544. Com sede em Lima, o poder colonial espanhol passou a usar a mita dos Incas como forma de exploração sistemática da população local, e a esse sistema foi acrescentada a encomienda, nome dado à concessão de determinados grupos de nativos, submetidos à servidão perpétua, a um nobre espanhol e seus descendentes. As jornadas longas e exaustivas de trabalho, somadas às doenças trazidas pelos colonizadores, dizimaram a população nativa local.
Em seus domínios, os espanhóis criaram um elaborado sistema de castas, que dividia a população conforme sua origem étnica. No topo estavam os espanhóis natos, chamados de peninsulares, que ocupavam as funções administrativas mais importantes. Logo abaixo estavam os criollos, nome dado aos descendentes de espanhóis nascidos na colônia. Esses eram os donos das terras, comerciantes e funcionários de médio e baixo escalão. A seguir se encontravam os mestiços entre espanhóis e nativos, chamados de mestizos, que não tardaram a constituir maioria da população. Pouco depois dos mestiços estavam os remanescentes da antiga população indígena, enfraquecida e dispersa. Ocupando a parte mais baixa da pirâmide social estavam os escravos africanos, que, apesar de nunca terem sido muito numerosos, eram submetidos às piores condições de vida.
Essa rígida divisão da sociedade colonial marcou profundamente toda a história posterior do Peru. Para os nativos e os mestizos, a vida se resumia à intensa exploração de trabalho nas fazendas e nas minas de ouro e prata, principal fonte de renda da metrópole espanhola. O único “ganho” que obtiveram dos colonizadores foi a conversão, muitas vezes à força, ao catolicismo. E assim como ocorria na própria Espanha, a inquisição estava presente nas colônias para garantir que os nativos seguissem à risca sua doutrina. A Igreja Católica desempenhou um papel fundamental em roubar desses povos a sua cultura e os laços com seu passado, etapa elementar de qualquer processo colonial.
Para essas massas, desprovidas de poder político e submetidas à intensa crueldade do domínio espanhol, pouco lhes importava se esses vinham da metrópole ou se eram nascidos na colônia. Afinal, se peninsulares e criollos tinham seus desentendimentos ocasionais, ambos tinham em mente o mesmo objetivo principal: manter os povos dominados sob controle. E na região do Peru, de longe a que concentrava o maior número de indígenas em toda a América do Sul, a necessidade de mantê-los submissos garantiu uma coesão entre metrópole e elite colonial que não se viu em outras partes do Império Espanhol.
Provavelmente por esse motivo o Vice-Reinado do Peru permaneceu fiel à coroa espanhola até o derradeiro instante. Ao contrário do que se viu em outras partes, como a região do rio da Prata e a Grã-Colômbia, não houve ali uma indisposição da elite local com a metrópole, mesmo quando esta se enfraqueceu enormemente durante as Guerras Napoleônicas (1798-1815). A região só seria definitivamente separada da Espanha quando Símon Bolívar e José de San Martin, os dois principais generais das elites criollas, derrotaram os espanhóis na batalha de Ayacucho, em 1824, e consolidaram a independência que haviam declarado anos antes, em 1821.