Um artigo mostrando o real significado da restauração do capitalismo no Leste Europeu e as perspectivas da luta pelo socialismo.
Recentes pesquisas de opinião revelam que a maioria do povo húngaro considera a vida tão miserável que gostaria de viver em qualquer outro país. Muitos consideram que a vida era muito melhor antes de 1989, quando o povo desfrutava de pleno emprego e de um avançado sistema de bem-estar social. O capitalismo destruiu tudo isso. Contudo, como nosso correspondente aponta, o que existia antes não era um socialismo genuíno, mas um regime estalinista a que o povo se opunha. O que se exige são a posse estatal dos bens e o planejamento, mas sob o controle democrático dos próprios trabalhadores.
“O povo já não desfruta de pleno emprego. A pobreza e o crime aumentam. O povo trabalhador já não tem acesso à ópera ou ao teatro. A TV caiu de qualidade assombrosamente – ironicamente nunca tivemos o Big Brother… mas agora o temos”.
A que país e a que período se refere esta citação? Grã-Bretanha, América, qualquer um da Europa? Há quarenta, há vinte anos ou hoje? Podia referir-se a todos ou a
alguns deles, mas é de um artigo que apareceu na edição da internet do The Daily Mail. Mail on-line em outubro de 2009 e se refere à Hungria.
Naquele mês, a imprensa celebrava o 20º aniversário da “queda do comunismo” na Europa central e do leste, mas Zsuzsanna Clark, autora do artigo, ofereceu um relato muito diferente da cobertura usual. Ela explicou o que seria tornar-se adulto na Hungria nas décadas de 70 e 80 do século passado comparando-se favoravelmente com a vida dos jovens nos dias de hoje na Hungria capitalista ou mesmo em sua adotada Grã-Bretanha, onde ela se estabeleceu em 1999.
Ela escreveu:
Quando me perguntam o que era crescer por trás da Cortina de Ferro na Hungria nos anos 70 e 80, a maior parte das pessoas espera ouvir relatos sobre polícia secreta, filas para comprar pão e outras coisas desagradáveis da vida num estado de partido único. Ficam invariavelmente desapontadas quando eu explico que a realidade era completamente diversa, e a Hungria comunista, longe de ser o inferno na terra, era na verdade um lugar agradável de viver. Os comunistas garantiam emprego para todos, boa educação e assistência médica gratuita. Crimes violentos virtualmente não existiam…
“Mas provavelmente o melhor de tudo era sensação geral de camaradagem, um estado de espírito ausente em minha adotiva Grã-Bretanha e, na verdade, presente todas as vezes que, hoje, eu volto à Hungria. As pessoas confiavam umas nas outras, e quem tinha partilhava…
“Uma das melhoras coisas era acesso ao lazer, o descanso estava ao alcance de todos… Meus pais trabalhavam em Dorog, uma cidade próxima de Hungaroton, numa indústria estatal de discos, de maneira que ficávamos na área de lazer do lago Balaton, ´o mar Húngaro`…
“O governo compreendia o valor da educação e da cultura. Antes do advento do comunismo, as oportunidades para os filhos dos camponeses e dos trabalhadores urbanos, tais como eu, subir na escala educacional era restrito. Tudo mudou depois da II Guerra Mundial. `…
“Os comunistas não precisavam restringir as coisas boas da vida para as classes superiores e médias – todos podiam usufruir o melhor da música, da literatura e da dança. Isto significava generosos subsídios para instituições – orquestras, óperas, teatros e cinemas. Os preços dos bilhetes eram subsidiados pelo estado, tornando a frequência à ópera e ao teatro acessível”.
Ela não está isolada em externar esses sentimentos hoje. O resultado de uma recente pesquisa de opinião húngara sobressaltou as audiências radiofônicas com 53% dos indivíduos expressando ou o desejo de deixar o país ou a disposição de aproveitar qualquer oportunidade para trabalhar no exterior. E isto apenas um ano de governo do governo de Viktor Orbán e seu FIDESZ/KDNP que galgaram o poder com a esmagadora maioria de dois terços e foi considerado o “mais popular político húngaro que a Hungria jamais vira”.
Os últimos doze meses na Hungria têm constituído um choque tanto para os adeptos do governo quanto para seus opositores. Orbán denominou sua eleição de “revolução de cabine eleitoral”. Ele chamou a si a tarefa de aproveitar sua maioria de dois terços para reescrever a constituição, remover a palavra “república” da denominação do país, “reformar” o sistema de pensões, inclusive abolindo o direito de aposentadoria por invalidez até mesmo para aqueles que já se beneficiavam dessa prerrogativa.
Ele também afrontou muitos setores da sociedade, a começar pela mídia, agora amordaçada por nova lei de imprensa, sob a qual um órgão não eleito formado inteiramente de adeptos do FIDESZ/KDNP, decide que artigos, programas de TV ou publicações são anti-húngaras ou não. As punições capituladas nessa lei incluem cortes parciais que ameaçariam a existência de tudo, excetuados as estações de rádio e TV mais prodigamente financiadas ou jornais. Muitos comentaristas têm comparado essa lei à caça às bruxas macarthista (a) na década de 1950.
O último segmento social que o governo enfrentou são os soldados, a polícia e os bombeiros, cujos direitos a pensões e aposentadorias especiais estão sob ameaça juntamente com suas condições de trabalho.
Regalias de segurança social estão sendo reduzidas e anuladas, exceto quando as mais espúrias condições são satisfeitas. Pensões por invalidez são revistas mediante cancelamentos após longos períodos de inatividade, salvo se os prejudicados estiverem em condições de reintegrar-se a esquemas de trabalho voluntário.
A assistência à saúde é alvo de severas reduções, especialmente no campo onde muita gente acha-se incapacitada de viajar a lugares distantes em busca de tratamento, uma vez que seus passes também foram cancelados.
A lista é infinita. Os débeis, os pobres, as minorias étnicas são os grandes perdedores por causa das tentativas de acerto de contas do governo de Orbán. Mesmo com menos austeridade, a maior parcela do povo, não se levando em conta suas afiliações partidárias, provavelmente olharia o passado “comunista” com nostalgia.
Eu cresci sob o mesmo sistema que Zsuzsanna, posto que duas décadas antes dela. Eu concordaria de todo coração com seus comentários de louvor às realizações do regime de Kádár e até mesmo de seus antecessores no tocante ao pleno emprego, à educação, à assistência à saúde e à segurança de que muitos desfrutavam naqueles dias. A tétrica desesperança que o capitalismo produziu e está aumentando diariamente na Hungria e nos demais países da Europa central e do leste contrasta inteiramente com a memória da ausência de desemprego, tempo suficiente para dedicar à vida familiar, a passatempos e à esperança de um futuro melhor, que as famílias conseguiam no passado.
O que o artigo de Zsuzsanna não menciona, porém, é que a despeito de uma vida melhor para a maioria, com que muitos sonham agora, os anos entre o fim da II Guerra Mundial e a queda do que ela chama “comunismo” eram anos de totalitarismo, ditadura de partido único, onde uma burocracia privilegiada dominava e os direitos da classe trabalhadora para organizar e administrar a sociedade inexistiam. A Hungria, e todos os demais países da região que foram libertados pelo Exército Vermelho do domínio nazista, assistiram ao estabelecimento de regimes à imagem da União Soviética, não a União Soviética oriunda da Revolução Russa de 1917, não a União Soviética dirigida pelos sovietes, liderada por Lenin e Trotsky, mas a nação estalinista degenerada em que se transformou após a falência de todas as outras revoluções socialistas daquele período e seu subsequente isolamento no mundo.
No pós-II Guerra Mundial, o Partido dos Trabalhadores Húngaros governava – em teoria, em nome da classe trabalhadora, – mas os sindicatos se tornaram parte do aparato estatal e dissensões eram brutalmente suprimidas. Foi exatamente por esta razão que a Hungria – ao mesmo tempo em que a Polônia, a Alemanha oriental e outros – se levantou e tentou livrar-se dessa burocracia e colocar o poder nas mãos do povo comum nos anos 50, estabelecendo o básico de um governo popular, uma milícia e conselhos de trabalhadores em todas as esferas da vida. Foi precisamente por este motivo que foi brutalmente derrubado como, distintamente da Polônia e da Alemanha do leste, nenhum compromisso podia-se assumir com um povo armado a um passo de tomar o poder.
Janos Kádár (b), o pai do comunismo “goulash” (c) muito querido da Zsuzsanna Clark, participou da revolução, porém logo traiu milhares de trabalhadores que combatiam abandonando-os à própria sorte para que morressem nas câmaras de tortura da polícia secreta. Nenhuma subsequente liberação ou ´comunismo goulash ´ podia maquiá-lo´. Todavia, exatamente o fato de que mesmo um estado opressor e de partido único, administrado sem democracia pudesse realizar tais avanços na economia, na produção industrial, na educação, na saúde, no transporte e na segurança baseado nos meios de produção estatais e um plano, como o fez a Hungria estalinista, deveria estimular todos os socialistas e comunistas dentro ou fora da Hungria de hoje.
Imagine-se o que se poderia realizar por meio de uma genuína democracia de trabalhadores, em todos os aspectos da vida, da indústria, da agricultura, da cultura, da educação, da saúde, do transporte e dos serviços em geral, sob direção popular, sob a responsabilidade de todos e de cada um numa sociedade harmoniosa! Não é utopia! É o único caminho do progresso humano. A posse comum dos bens de produção, administrando-se a sociedade democraticamente e em benefício da maioria não é castelo no ar; é o único meio de livrar-se dos Orbáns e das multinacionais, dos exploradores, dos escroques, dos banqueiros e outras sanguessugas hodiernas que obstaculam o caminho do progresso, da paz e de nosso futuro.
Numa Hungria socialista ninguém necessitaria emigrar, ninguém temeria o futuro para si e para seus filhos. O socialismo é o único sistema capaz de satisfazer a todos e, estabelecido em escala mundial, a humanidade pela primeira vez em sua história, poderia considerar-se civilizada.
Tradução de Odon Porto de Almeida do artigo Hungary: The disastrous consequences of capitalism, da autoria do correspondente em Budapeste do web site britânico In Defence of Marxism/http://www.marxist.com.
Notas do trad. – (a) Atitude de pressão político ultrarreacionária em atividade nos Estados Unidos na década de 50 do século que passou. Sua denominação deve-se ao senador republicano Joseph Reymond McCarthy (1908-1957), durante algum tempo presidente do Comitê de Atividades Antiamericanas. Acusou inúmeras personalidades civis e militares de agentes comunistas, infiltrados nos Estados Unidos. Sua virulência, caracterizada por um “anticomunismo absoluto”, segundo N. Bobbio (Dicionário de Política, Universidade de Brasília, 1986, p. 725) produziu inúmeras vítimas. O estilo “paranóide” dos discursos e entrevistas de McCarthy, indivíduo de baixo estofo moral, aterrorizou a opinião pública americana durante anos. Não resta dúvida que a histeria macarthista, agravada pela conivência da mídia manipulada, também alimentou o imperialismo americano e sua indústria bélica que perdia mercados no pós-II Guerra Mundial, favorecendo a corrida armamentista, entre outros males
(b). János Kádár (1912-1989), Político húngaro. Afiliou-se ao Partido dos Trabalhadores Húngaro em 1931. Ocupou o ministério do interior de 1948 a 1951, adotando medidas repressivas. Ascendeu à função de 1º secretário do Partido em 1956. Suas reformas, embora tivessem significado maior desenvolvimento econômico do país, não conseguiram angariar a simpatia do povo que via seu governo como instrumento da intervenção armada soviética de 1956.
(c) Palavra húngara, significando carne de pastor. É um guisado de carne e vegetais muito temperado, mais comum nos ambientes campestres húngaros,