Ambrosius Holbein, ilustração da "Utopia", de Thomas Morus (1518)

Liberdade e escravidão: o nascimento do capital (parte 2)

A revolução agrária

Em 1516, o famoso escritor e advogado Thomas More observou:

“sim e certos abades, homens sagrados sem dúvidas… Não deixam terras para os lavradores, se cercam em pastagens, derrubam as casas, colocam abaixo as cidades e não deixam nada de pé, apenas a igreja para ser transformada em um celeiro” (Citado em Morton, A People’s History of England).

O que ele estava descrevendo foi uma revolução, travada pelos ricos contra seu próprio povo.

O fim da servidão foi um duro golpe para o poder dos senhores, mas eles ainda detinham a propriedade de grandes extensões de terra.

E foi a partir desta posição que os antigos mestres começaram sua contraofensiva contra os camponeses livres da Inglaterra.

A expansão do comércio no século 14 também criou uma demanda crescente de lã, da qual a Inglaterra era a maior exportadora. Para atender esta demanda, os senhores de terra começaram a despejar forçadamente seus servos a fim de converter vilarejos inteiros em campos para a criação de ovelhas. A importância deste comércio lucrativo para a nobreza inglesa pode ser vista ainda hoje nos sacos de lã sobre os quais o Lord Speaker está sentado na House of Lords.

O resultado deste roubo descarado foi a desapropriação de milhares de camponeses, muitos dos quais não tiveram escolha senão vagar pela terra à procura de trabalho ou caridade. O problema já tinha se difundido tanto que em 1489 Henrique VI decretou o primeiro de uma série de Atos que procurava a conter o despovoamento do país.

A descoberta das Américas e o gigantesco crescimento do mercado que veio com ela somente adicionaram combustível ao fogo.

Ao longo do período Tudor, a produção agrícola foi trocada pelas colheitas pelo dinheiro para o mercado, com uma nova geração de fazendeiros capitalistas empregando pobres sem-terra como trabalhadores.

Mesmo este novo modo de produção se provou insuficiente para absorver a enxurrada de pobreza. Eventualmente, a classe de “vagabundos” pauperizados se tornou tão grande que fez com que a Rainha Elizabeth I introduzisse uma especial “Taxa aos Pobres” já 1601, enquanto ao mesmo tempo previa que “mendigos não licenciados” fossem executados “sem misericórdia” como criminosos.

Nos séculos 17 e 18, a expropriação e o deslocamento das massas rurais tomaram uma forma oficial através do decreto de uma série de Atos de Fechamento no Parlamento. Isto foi catastrófico para a população rural, levando o campesinato inglês à extinção no século 19, mas também forneceu um enorme exército de trabalhadores sem propriedade para as indústrias em crescimento nas cidades e arredores. E foi este processo de roubo legalizado que deu origem aos “direitos de propriedade” capitalistas tão admirados pelos defensores modernos do capitalismo.

O Estado

Outro mito que rodeia o nascimento do capitalismo é que ele foi alcançado pela atividade econômica pioneira do empreendedorismo individual, em oposição à mão morta do Estado. Este conto de fadas normalmente é contado quando o Estado moderno é forçado a implantar reformas para pressionar os trabalhadores. Mas nada pode estar mais longe da verdade. Em todos os pontos, nossos futuros capitães da indústria e do comércio dependeram da mais brutal repressão do Estado para proteger seus interesses de classe.

O absolutismo surgiu das contradições da moribunda sociedade feudal: uma monarquia feudal baseada alternadamente nos proprietários de terra, na burguesia ou no campesinato. Com uma das mãos colocou freio na expropriação do campesinato, mas com a outra, geralmente agindo em seu próprio interesse, na verdade apressou o desenvolvimento do capitalismo.

A venda de terras expropriadas da Igreja após a Reforma Protestante a preços baixos, por exemplo, foi um enorme presente para os nascentes agricultores capitalistas do século 16. Da mesma forma, o estabelecimento de monopólios coloniais por todas as monarquias absolutistas da Europa Ocidental deu a proteção essencial para o desenvolvimento prévio da manufatura.

Porém, por causa precisamente desta natureza transicional e contraditória, em certo ponto esta forma de Estado entrou em um conflito duro com os interesses da burguesia. Assim que a burguesia alcançou o domínio, ela deveria ser capaz de governar pelos seus próprios interesses. E por isso o último vestígio do sistema político feudal se tornou somente outro grilhão no grande impulso pela acumulação que estava se enraizando.

Começando com a Guerra da Independência Holandesa, uma onda de revoluções varreu a Europa com a burguesia tomando a estrada para o poder político. Nesta luta contra a velha ordem, se uniu tudo que era saudável e progressista na sociedade atrás do seu chamado por “liberdade”. Varrendo o particularismo do passado, os revolucionários limparam o caminho para o desenvolvimento de um verdadeiro mercado nacional. No lugar dos privilégios arbitrários do absolutismo, eles pediam o “governo da lei”, que na prática sempre significou o governo da burguesia.

Mas a grande e trágica contradição de todos estes movimentos está no fato que, como na Revolução Inglesa, em última instância entregaram o poder não para os camponeses e artesãos que formavam o braço de ferro dos exércitos revolucionários, mas para uma nova, e ainda mais poderosa, classe de exploradores – alguma coisa que os nossos amantes modernos da liberdade tendem a esquecer.

Em seguida ao enterro do absolutismo, o Estado entrou totalmente em posse de uma nova aristocracia fundiária, a “bancocracia” e grandes manufatureiros, seja na forma de uma república ou, mais comumente como uma monarquia “constitucional” (isto é, domesticada).

Qualquer um que duvide do significado deste desenvolvimento do capitalismo precisa somente olhar as medidas tomadas pelo Parlamento Inglês após a assim chamada Revolução Gloriosa em 1688. Gabinetes foram transformados de um abuso generalizado para uma política deliberada; o Banco da Inglaterra foi criado junto com a “Dívida Nacional” – uma dívida para nenhum outro senão os especuladores capitalistas; uma legislação para impor um “salário máximo” foi imposta, enquanto combinações de trabalhadores para negociar melhores pagamentos e condições foram, de fato, proibidas.

O poder concentrado do Estado foi usado “para acelerar, como se fosse uma estufa, o processo de transformação do modo de produção feudal para o modo capitalista e encurtar a transição”, Marx escreveu no Capital (Vol 1), adicionando: “A força é a parteira de toda velha sociedade grávida com uma nova. E é ela mesmo uma força econômica”.

Também pode ser notado que nesta Era Dourada de Liberdade e Iluminismo, nenhum único trabalhador ou camponês pobre teve um voto ou representação política de qualquer forma. Na realidade a ascensão capitalista dos proprietários de terra e manufatureiros necessitou do poder do Estado para “regular” salários e estender o dia de trabalho.

Na verdade, é apenas quando sua própria tirania em miniatura no local de trabalho é assegurada que a classe capitalista irá tolerar qualquer liberdade política por parte dos trabalhadores, e ainda assim, estas são limitadas de modo a não infringir o direito sagrado a “propriedade privada”, que é o fruto de séculos de roubo.

O nascimento da classe trabalhadora

O desenvolvimento da sociedade é em última instância determinado pelo desenvolvimento das forças produtivas. Mas em sua própria tecnologia é incapaz de mudar a sociedade – ela mesma é determinada socialmente. Os antigos gregos tinham descoberto o poder do vapor muito antes da burguesia europeia. Mesmo o inventor alemão Anton Müller produziu uma máquina capaz de tecer diversas peças de roupa ao mesmo tempo já em 1529. O resultado não foi a Revolução Industrial, mas o assassinato do inventor pelo conselho local da cidade.

Na Inglaterra, a revolução agrária e política do século 16 e 17 ergueu as bases para a revolução industrial. Sem a criação de um “excedente” populacional de proletários, a produtividade crescente da agricultura e as bênçãos gigantescas garantidas aos capitalistas pela sua conquista do poder político, tal transformação social enorme seria inimaginável.

O proletariado recém-nascido foi rapidamente colocado para trabalhar, normalmente sob o chicote da repressão brutal, mas um obstáculo para a liberdade capitalista ainda permanecia: as guildas. Impondo regras estritas e restrições na indústria do sistema de guildas, que eram um produto próprio da luta da antiga burguesia, se tornou um grilhão sufocante para o livre desenvolvimento do modo de produção capitalista. De fato, a primeira manufatura de roupas de lã do século 16 foi fechada pelas guildas locais precisamente porque isto ameaçou o seu monopólio.

A primeira fiação de algodão realmente foi estabelecida fora de qualquer cidade grande, em Royton, Lancashire, a fim de evitar a resistência do que sobrava das guildas em 1764. Isto rapidamente estabeleceu um padrão para o que deveria se tornar o sistema de fábricas. Como um escritor escreveu em 1773.

“Os trabalhadores foram retirados de seus chalés e forçados a irem para as vilas para procurar emprego; mas então um excedente maior foi obtido e, portanto o capital foi aumentado” (J Arbuthnot, citado em Marx, Capital, Vol. 1).

Aqui está o segredo do capital: não é a iniciativa privada, mas o trabalho suado dos outros; não é o direito à propriedade, mas a negação da propriedade para muitos.

Eventualmente, as limitações de salário que tinham sido impostas por séculos foram finalmente repelidos em 1813. Eles eram agora uma “anomalia absurda” de acordo com Marx, já que os capitalistas podiam ditar livremente os salários e condições de seus trabalhadores como quisessem. O avanço da produção capitalista (auxiliada pelo punho armado do Estado) finalmente desenvolveu “uma classe trabalhadora que pela educação, tradição e hábito cumpre os requisitos desse modo de produção como leis naturais evidentes”.

Como essa mais nova, mais “civilizada”, forma de exploração tomou mais e mais esferas de produção, a classe dominante britânica de repente descobriu que os escravos trabalhando nas plantações coloniais eram seres humanos também. Mas quando finalmente aboliu a escravidão em suas colônias em 1833, o governo britânico pagou 20 milhões de libras esterlinas para compensar não os escravos, mas as 3.000 famílias que tinham possuído escravos pela perda de sua “propriedade”. Esta quantia representou em termos atuais em torno de 16,5 bilhões de libras esterlinas; um enorme presente para os proprietários de escravos, que eles prontamente colocaram para uso nas fábricas inglesas, fazendas irlandesas e plantações indianas.

A escravidão não foi abolida porque era amoral, foi abolida porque não era lucrativa. Seria tolice persistir em tal empreendimento custoso e improdutivo quando um astuto investidor poderia espremer um lucro nunca visto antes do sangue dos “escravos nascidos livres” da Grã Bretanha e suas colônias.

Mas a criação da classe trabalhadora foi um duplo presente para os capitalistas. Não somente criou seus lucros a partir do trabalho excedente dos trabalhadores; esta também criou os meios pelos quais estes lucros poderiam ser realizados – o primeiro mercado de consumo verdadeiramente de massas.

O camponês médio nunca tendia a comprar muita comida ou roupas porque ele moía seu próprio milho e costurava sua própria roupa. A desapropriação do campesinato significou que eles não eram somente dependentes dos capitalistas para o trabalho e salários, eles também têm que gastar aqueles salários nas necessidades básicas como comida e roupas de nenhum outro que os mesmos capitalistas (visto em uma escala nacional).

Depois, no século 19, o Estado Britânico usou tarifas para destruir a indústria de fiação doméstica indiana e inundar o mercado com roupas, frequentemente com o algodão indiano. A posição da Índia como uma colônia foi trocada de ser somente uma fonte de saque (que ela ainda permanece sendo) para ser também um enorme mercado cativo. E desta maneira, as massas Indianas, como suas contrapartes britânicas, pagam duas vezes por sua exploração pelos capitalistas britânicos.

Isto desempenhou uma importante posição na elevação do capitalismo britânico e a luta pela independência indiana. Em 1921, o Congresso Nacional Indiano adotou uma bandeira contendo uma roda girando para simbolizar a indústria doméstica destruída pela competição manipulada com a Inglaterra. Esta roda girando sobrevive (em parte) na bandeira da Índia ainda hoje, embora tenha sido trocada por uma roda de Chackra Budista.

A importância do consumo de massa para o capitalismo pode ser visto hoje em uma escala ainda maior. O efeito disto na nossa cultura é o amplo consumismo e a dívida que pesa sobre os indivíduos como uma força na natureza. Nós devemos não somente trabalhar; nós devemos comprar. E, neste sentido, o fornecimento determina a demanda mais do que a demanda determina o fornecimento.

Uma nova luta

O capital emergente, completamente formado e “gotejando sangue de todos os poros” (para usar a expressão de Marx). Desde então, a liberdade do capital tem continuado a encontrar este reflexo e fonte na ausência de liberdade dos seres humanos. Mas isto também ergueu as bases para uma nova e grande luta.

Assim como a burguesia, uma classe nascida da luta entre os senhores feudais e os servos, foi capaz de tomar o poder, transformar o Estado para seus próprios fins e empunhá-lo para eliminar a velha ordem, também pode a classe trabalhadora, criada pelo infinito impulso do capitalismo para explorar a força de trabalho.

Como os servos medievais, os trabalhadores de hoje doam a maior parte de suas vidas para uma classe parasítica de proprietários. Mas ao tomar as imensas forças produtivas criadas pelo seu próprio trabalho para as mãos da sociedade como um todo, os trabalhadores do mundo podem pôr um fim a opressão de classes para sempre e inaugurar uma nova era de liberdade genuína para toda a raça humana.

LEIA A PARTE 1

TRADUÇÃO DE JOSÉ GUTERRES.

PUBLICADO EM MARXIST.CO.ZA