O ano de 2024 ficará marcado no Brasil como aquele em que se aprovou no Parlamento um dos mais perversos mecanismos de assalto ao fundo público de nossa História. A entrada em vigor da Lei Complementar 208/2024 atribui um novo patamar ao sistema que há mais de 30 anos enche os bolsos dos capitalistas que especulam com a dívida pública federal no Brasil, ao mesmo tempo em que intensificam a lógica da austeridade permanente sobre os trabalhadores do país. Neste texto, exploram-se os detalhes desta nova legislação e suas consequências.
Antes de tratar especificamente da situação brasileira, é pertinente fazer uma breve incursão histórica para ilustrar como se deu a estruturação contemporânea do ciclo atual de endividamento público das economias capitalistas. Este processo remonta ao encerramento do ciclo de expansão capitalista após a 2ª Guerra Mundial, que fez com que os Estados Unidos rompessem com o padrão ouro-dólar definitivamente em 1973. Como já ocorrido em hegemonias capitalistas passadas, ao renunciar ao lastro em ouro para a emissão de moeda, os EUA pavimentaram o caminho para a explosão de sua dívida pública.
Para um país que debutava no concerto das grandes nações imperialistas, o caminho deste novo ciclo de endividamento não significava ainda um problema. Aliás, ao longo d’O Capital, Marx explica como a dívida pública representa uma sofisticada forma de acumulação originária, inclusive permitindo com que uma hegemonia decadente financie lucrativamente a próxima liderança capitalista. Testemunhando o caso inglês, Marx explicitou como o endividamento público é um grande negócio para os capitalistas:
“O Banco da Inglaterra começou emprestando seu dinheiro ao governo a juros de 8%; ao mesmo tempo, foi autorizado pelo Parlamento a cunhar moedas utilizando o capital emprestado ao governo. Passou então a emprestar o mesmo capital ao público sob a forma de bilhetes de banco, tendo sido autorizado a utilizar esses bilhetes para descontar letras, emprestar com garantia de mercadorias e comprar metais preciosos. Não passou muito tempo para o banco fazer empréstimos ao Estado nessa moeda fiduciária que fabricava e para pagar com ela, por conta do Estado, os juros da dívida pública. Não bastava que o banco recebesse muito mais do que dava; ainda recebendo, continuava credor eterno da nação até o último centavo adiantado. Progressivamente, tornou-se o guardião inevitável dos tesouros metálicos do país e o centro de gravitação de todo o crédito comercial.”1
Com um novo ciclo de endividamento público estabelecido a partir dos EUA, nasce também um novo sistema internacional de crédito que cumpre função de acumulação primitiva. O aumento expressivo da disponibilidade de dólares no mercado internacional nos anos 70 fez com que a ditadura no Brasil, muitos outros países dominados e suas respectivas burguesias tomassem empréstimos internacionais. Tais créditos eram tomados a juros baixos – porém, flutuantes – para financiar investimentos e simular, de forma ilusória, uma elevação das condições materiais de seus modelos econômicos, a fim de prolongar sua dominação política.
A elevação das taxas de juros dos EUA em 1979 mergulhou todos estes países em uma profunda crise de dívida externa, inclusive fazendo com que os Estados nacionais dominados assumissem as dívidas feitas por capitais privados, pois o Direito Internacional que rege tais contratos prevê que o Estado é corresponsável pelo crédito tomado por seus capitalistas. No caso do Brasil, o saldo desta mudança na política econômica dos EUA foi o derretimento da popularidade do regime militar, mergulhado em corrupção, dívida externa e inflação.
Na transição para um regime “democrático” é promulgada no Brasil, em outubro de 1988, sua nova Carta Magna, inspirada na experiência europeia do Estado de bem-estar social (direito à saúde, educação e assistência social públicas e universais, por exemplo). Entretanto, procurou-se garantir juridicamente que tais conquistas sociais só poderiam se efetivar se não ameaçassem o processo de acumulação de capital. Assim, se estabeleceu que o pagamento da dívida externa brasileira, acumulada na década anterior, era o gasto prioritário no orçamento federal. Somente após o acerto da remuneração dos credores da dívida é que algum direito social poderia ser atendido.2
Como já se poderia esperar, tais garantias sociais eram totalmente incompatíveis com um país dominado, assolado por dívida externa e hiperinflação. Na esteira destes acontecimentos o Brasil aderiu em 1994 ao Plano Brady que, entre outras coisas, convertia a dívida externa ilegítima (contraída num regime de exceção) em dívida pública interna.
Quando discute os verdadeiros elementos da acumulação originária dos capitalistas, n’O Capital, Marx afirma que a dívida pública representa uma extraordinária alavanca para a acumulação de capital. Por isso afirma que “uma nação é tanto mais rica quanto mais está endividada”. A partir dela, os capitalistas se estruturam às custas do fundo público e expandem seus negócios. Num passe de mágica, diz Marx, a dívida pública dota o dinheiro de capacidade criadora, transformando-o em capital, sem que seja necessário que seu detentor se exponha aos riscos e aborrecimentos inerentes às aplicações industriais e usurárias. Tal como escrito n’O Capital:
“A dívida pública criou uma classe de capitalistas ociosos, enriqueceu de improviso os agentes financeiros que servem de intermediários entre o governo e a nação. As parcelas de sua emissão adquiridas pelos arrematantes de impostos, comerciantes e fabricantes particulares lhes proporcionam o serviço de um capital caído do céu. […] Desde a sua origem, os grandes bancos ornados com títulos nacionais não passavam de sociedades de especuladores particulares que cooperavam com os governos e, graças aos privilégios recebidos, ficavam em condições de adiantar-lhes dinheiro.”3
Porém, no caso brasileiro, a dívida pública interna não cumpriu exatamente o papel clássico de acumulação originária. Por aqui, a dívida pública serviu como instrumento de proteção da propriedade privada dos capitalistas submetidos à competição internacional da abertura econômica dos anos 90, bem como garantiu remuneração extraordinária aos investidores estrangeiros que aportaram no Brasil seus capitais, remunerados a taxas de juros estratosféricas no início do Plano Real e seus anos subsequentes.
Os mecanismos de remuneração da dívida pública brasileira se mantêm há mais de 30 anos. Quatro deles assumem condição estrutural e recorrente na economia política nacional desde 1994, atravessando todos os governos até a atualidade:
- Transferência de propriedade pública para o capital privado nacional e estrangeiro, através de privatizações;
- Rolagem da dívida pública, emitindo dívida nova para remunerar os papeis antigos prestes a vencer;
- Assalto ao fundo público mediante a retirada dos direitos sociais que podem representar salário indireto do trabalhador e;
- Grande elevação da carga tributária, que saltou de 25,7% do PIB em 1996 para 32,4% do PIB em 2024.
É por isso que a questão tributária assume centralidade para a burguesia brasileira na atualidade. A reforma tributária ocorrida recentemente no Brasil aprofundou a desigualdade tributária. Em nenhum momento o debate público discutiu a natureza da tributação brasileira, ou seja, se a matriz de arrecadação tributária do Estado deveria incidir mais sobre a propriedade, a renda ou o consumo. No caso da propriedade, os tributos são praticamente inexistentes aos grandes capitalistas, uma vez que a grande parte da tributação sobre imóveis e veículos são financiados pela classe trabalhadora. No caso da renda, as rendas do capital, assim como os juros e os aluguéis praticamente não recolhem tributos, enquanto as rendas do trabalho (salários e ordenados) são pesadamente taxadas.
A agenda burguesa concentrou a discussão sobre o IVA, fazendo com que a reforma tributária no Brasil se dedicasse quase que exclusivamente a debater a tributação sobre o consumo. Em geral, o novo regime fiscal brasileiro se molda sobre os meios de subsistência dos trabalhadores para sustentar a proteção da propriedade privada capitalista sob a forma de dívida pública. Fica evidente, desta maneira, que a pesada carga tributária com a qual lidamos os assalariados brasileiros não decorre da irresponsabilidade fiscal de um governo gastador, muito menos de um Estado inchado que não arrecada o suficiente para fazer frente aos seus compromissos sociais, mas sim de um perverso mecanismo de transferência de valor do fundo de salários para o fundo de acumulação capitalista através da dívida pública. Nas palavras de Marx: “a tributação excessiva não é um incidente; é um princípio.”
Tratando da situação contemporânea, não bastasse o ataque sofrido pela Reforma Tributária, um escândalo ainda maior marcou o primeiro semestre de 2024 no Brasil. A Câmara dos Deputados aprovou, no dia 4 de junho de 2024, o Projeto de Lei Complementar 459/2017, que trata da chamada “Securitização de créditos públicos”. Através desta legislação, parte das receitas estatais (da União, estados, municípios e DF) não chegará aos cofres públicos, pois será desviada durante o seu percurso pela rede bancária, para a remuneração dos credores do Estado.
A Lei prevê a criação de empresas estatais que administrariam os créditos de difícil cobrança por parte do poder público, classificados na chamada Dívida Ativa. Acontece que estes créditos podem ser negociados com bancos e outros agentes financeiros à revelia de controle social, sob circunstâncias nada republicanas. Mais do que isso: quando os tributos são recolhidos pelo governo (seja ele municipal, estadual ou federal), parte do dinheiro arrecadado vai direto para o credor da dívida pela rede bancária, sem sequer entrar nos cofres públicos ou ser contabilizado no orçamento.
Esta lei autoriza, portanto, que os recursos recolhidos pelo governo junto aos contribuintes sejam desviados para uma conta pertencente à empresa pública criada para administrar os créditos, vinculada ao esquema. É importante registrar que esta manobra é vedada pela Constituição Federal e pelo Código Tributário Nacional. Tal prática é vedada até pela Lei que mais protege os credores da dívida pública no país, a Lei n. 101/2000, a malfadada “Lei de Responsabilidade Fiscal”.
Depois de passar no Congresso, a medida tinha 30 dias para ser apreciada pelo Executivo. Lula não fez nenhum movimento e deixou a tramitação transcorrer livremente, apesar da campanha pelo veto conduzida pelo grupo da Auditoria Cidadã da Dívida, que desde 2017 alerta para os riscos da aprovação desta medida. Neste meio tempo, o plano de securitização de créditos foi implementado nos municípios de Belo Horizonte e no estado de São Paulo ao arrepio de qualquer base legal em âmbito nacional, fazendo explodir a dívida pública e colocando estes dois entes públicos em gravíssima situação fiscal.
Trata-se do mesmo artifício que colocou a Grécia em colapso financeiro após a crise internacional de 2008, assolando o país com miséria, desencadeando manifestações massivas e alçando ao poder o Syriza contra a troika de Frankfurt e Bruxelas. Eleito com forte mobilização popular e após um referendo em que a população percebia que a dívida contraída pela Grécia era absurdamente ilegal e ilegítima, os dirigentes do Syriza, na condição de governo, acovardaram-se e cederam às pressões da União Europeia. Esta capitulação à alta finança provocou a frustração de milhões de gregos dispostos a lutar por um governo dos trabalhadores no país.
Com a aprovação da lei no Brasil, o esquema corrupto que assalta o fundo público se espalhará por todo o país e dará guarida àqueles já existentes, agravando ainda mais a situação crítica dos serviços públicos no Brasil, com sucessivos ataques à saúde e à educação, a precarização da segurança pública, a calamidade nos transportes e o descaso na prevenção dos desastres naturais cada vez mais recorrentes.
O projeto permite que a receita tributária brasileira se mova diretamente para os cofres dos credores da dívida pública brasileira, sem sequer caírem na conta do Tesouro Nacional. Trata-se do Estado brasileiro legislando contra o seu próprio caixa, permitindo a tomada de recursos que emanam majoritariamente dos trabalhadores. O governo Lula-Alckmin se presta, desta forma, a realizar o serviço sujo da burguesia parasitária que nem Temer e Bolsonaro conseguiram emplacar em seus mandatos.
Sem qualquer chamado à mobilização popular e ignorando solenemente os pedidos de veto, o presidente assumiu o lado dos burgueses em mais uma batalha dos trabalhadores. A entrada em vigor da Lei sem qualquer oposição estabelece um futuro tenebroso para as políticas sociais brasileiras e os trabalhadores não devem esquecer de mais um duro golpe em suas demandas históricas. Lula oferece um banquete aos capitalistas, avaliza o assalto ao fundo público e configura cada vez mais como um inimigo de classe dos trabalhadores brasileiros.
Referências:
1 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 26ª ed, Livro I, vol. 2. Trad. Reginaldo Sant’Anna. p. 876.
2 Tais diretrizes estão estipuladas nos artigos 163 a 167 da Constituição Federal e, sobretudo, nos elementos posteriores que contemplam a Lei n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a Lei n.200/2023, que estabeleceu o chamado Arcabouço Fiscal atual.
3 [Idem]