O fim da União Soviética foi o coroamento de uma tempestade onde as massas populares foram pondo fim, um a um, aos Estados burocraticamente deformados criados segundo o modelo stalinista.
Foto: Manifestantes celebram derrubada do Muro de Berlim, marco do processo de dissolução da União Soviética
Em 26 de dezenbro de 1991, a declaração 142-H do Soviete Supremo da União Soviética dissolveu a URSS, reconhecendo a independência das antigas repúblicas soviéticas e criando em seu lugar a Comunidade de Estados Independentes. Essa declaração foi a resposta da maioria do aparato burocrático ao “Putsch de Agosto”, aonde um setor conservador do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) apoiado por forças da polícia política, a KGB tentou tomar de assalto do poder com o objetivo de deter as reformas empreendidas e destituir o presidente da URSS, Mikhail Gorbachev.
Esta tentativa de golpe vai deslocar de vez o PCUS e precipitar a dissolução do país. Em 25 de dezembro de 1991, um dia anterior à declaração do Soviet Supremo, o presidente, o oitavo e último líder da União Soviética, renunciou, declarou seu cargo extinto e entregou seus poderes – incluindo o controle dos códigos do arsenal nuclear soviético – para o presidente russo, Boris Iéltsin. Naquela noite, às 19h32, a bandeira soviética foi baixada do Kremlin de Moscou pela última vez e substituída pela bandeira russa pré-revolucionária.
Acabava assim o regime burocrático totalitário implantado desde os anos 1930 por Stalin na União Soviética que degenerou o Estado dos trabalhadores constituído com a revolução de outubro de 1917, expropriando o poder da classe operária e ursupando as ideias do socialismo e do marxismo. A História se vingava assim dos crimes de Stalin e de seus epígonos no Kremlin.
A queda do Muro de Berlin
O fim da União Soviética foi o coroamento de uma tempestade, um furacão político que abalou o Leste da Europa, onde as massas populares foram pondo fim, um a um, aos Estados burocraticamente deformados criados segundo o modelo stalinista soviético, regimes burocráticos implantados pelo stalinismo que impediram uma verdadeira revolução socialista ao final da Segunda Guerra Mundial.
Os tanques e as tropas soviéticas foram os fiadores das “democracias populares” implantadas no Leste europeu, que, de acordo com os tratados com as forças aliadas na Segunda Guerra, eram zonas destinadas ao protetorado soviético. A esquerda stalinista chamou durante muito tempo esses países como “campo socialista” quando na realidade eram Estados deformados de acordo com o modelo soviético: partido único totalitário, burocracia previlegiada controlando a economia e a sociedade, repressão política contra o movimento operário e toda e qualquer dissidência política. O “panzer comunismo” de Moscou, os tanques e as tropas soviéticas reprimindo pela força bruta a classe operária, associados a expurgos em todo lugar, até mesmo nos partidos stalinistas no poder, foram gerando tensões que mais cedo ou mais tarde iriam se transformar em rebelião das massas.
Mas foram as reformas da burocracia da União Soviética, que tiveram início em meados dos anos 1980, como veremos mais adiante, que acenderam o pavio de uma explosão social sem precedentes.
E o epicentro do furacão foi na Alemanha dividida desde o fim da Segunda Guerra Mundial e o famigerado Muro de Berlin que cercava as zonas da antiga capital alemã, onde havia um enclave controlado por americanos, ingleses e franceses dentro do território da ex-Alemanha Oriental. A divisão da Alemanha foi o símbolo da “guerra fria” entre os Estados Unidos e a União Soviética e que dividia o proletariado mais numeroso da Europa.
A tempestade começou em 29 de novembro de 1989, quando, depois de 25 anos de existência, o Muro de Berlin começou a ser derrubado por milhares e milhares de jovens. A polícia que patrulhava o muro foi retirada. Estava acabando ali a ordem mundial herdada dos acordos de Yalta e Potsdan entre os Estados Unidos e seus aliados com a União Soviética. A queda do muro foi o começo do fim do stalinismo.
Uma corrente elétrica varreu todo o leste da Europa, impulsionando as massas a sairem nas ruas, a decretarem greve geral, a ocuparem os prédios públicos e até a pegarem em armas como na Romênia. Polônia, Tchecoslováqujia, Hungria, todos os regimes pró soviéticos desabaram como um castelo de cartas. As massas começaram, a partir da sua intervenção direta, uma revolução política anti-burocrática que colocou abaixo até a própria União Soviética. Mas não tiveram forças para ir até o fim e garantir um verdadeiro socialismo democrático. Décadas de severa repressão efetuada pelos regimes, pelas constantes purgas das famigeradas polícias políticas, inviabilizaram uma oposição comunista de massas. Aproveitando o vazio à esquerda nessa tempestade política, os partidos stalinistas no poder manobraram para uma saída à direita.
Na ausencia de uma oposição comunista que preservasse as conquistas sociais obtidas pela expropriação do capitalismo nas “Repúblicas Populares” do Leste Europeu e implantasse uma verdadeira democracia operária, o aparato conservador dos partidos pró-soviéticos no poder trocou a camisa do velho stalinismo pela da social democracia. Assim, vamos assistir na Alemanha Oriental, na Polônia, na Tchecoslováquia, na Bulgária e na Romênia, para fazer frente à intervenção das massas, os velhos stalinistas passam a defender a restauração do capitalismo, a excomungar o socialismo como ultrapassado e a defender a instauração de um Estado burguês.
Massas sem direção são capazes de iniciativas formidáveis, mas não levam os processos históricos até o fim. Podem correr para a esquerda, correr para a direita, como uma manada desgovernada, mas acabam domesticadas pela primeira força política a ocupar o vazio de uma liderança. As greves operárias na Alemanha Oriental em 1953, o levante na Hungria, a Primavera de Praga em 1968 e o Sindicato Solidariedade na Polônia, ou foram duramente reprimidas com prisões e expurgos ou geraram lideranças oportunistas como o Lech Walessa do Soliariedade. Assim os partidos stalinistas “renovados” manobraram para se legitimarem em eleições de cartas marcadas, dando uma fachada de “democratização” aos regimes burocráticos para então restaurarem o capitalismo e inclusive desmembrando muitos dos antigos Estados, como na separação da Tchecoslováquia. Na Iugoslávia, vai explodir uma guerra civil sangrenta entre as facções da burocracia que vão tentar pilhar a propriedade social e executar políticas de “limpeza étinica” entre as diversas nacionalidades.
A Glasnost e a Perestroika na URSS
A União Soviética era um Estado “operário” degenerado burocraticamente desde a era de Stalin. Na realidade um Estado burguês sem a burguesia, fiador de uma brutal desigualdade social onde todo o excedente produzido pela classe trabalhadora ia para o sustento do aparato burocrático, do exército, da KGB e do partido stalinista no poder. Durante décadas essa situação foi deteriorando a economia e a sociedade soviética. Na “era Brejnev”, como ficou conhecido o governo de Leonid Brejnev (1964-82), a burocracia adquiriu proporções assustadoras e a face burguesa deste Estado totalitário não parou de crescer. A ideia de Stalin de que a União Soviética tinha chegado ao “socialismo” era uma farsa: o aparato burocrático aumentava os previlégios da “nomenklatura” em detrimento de uma brutal exploração do proletariado. Era a face burguesa do Estado que existe para garantir a opressão de classe. O que vai gerar um crescente colapso da economia.
O governo de Leonid Brejnev vai suceder ao de Nikita Kruschev, que tentou uma “desestalinização” limitada e parcial no 20º Congresso do PCUS. As refromas econômicas de Kruschev não deram certo e vão precipitar a sua queda. Com Brejnev, depois de um interregno de uma direção colegiada na URSS, a burocracia e a nomenklatura vão tentar um regime de “estabilidade” e de contra-reformas. Chega-se a pensar em reabilitar Stalin, levado ao mundo dos malditos com a denuncia secreta feita por Kruschev dos seus crimes. O pacto de Varsóvia, pacto militar do bloco soviético, vai manter as “democracias populares” dentro do protetorado de Moscou. A burocracia soviética passa assim por uma fase de falsa estabilidade assegurada por um equilíbrio com o imperialismo norte-americano aonde ela atua como uma “correia de transmissão” da contra-revolução no mundo inteiro. Esta é a razão porque o Partido Comunista Francês, alinhado com Moscou, atuou para desmobilizar a maior greve geral que a França já conhecera, no famoso Maio de 1968.
Mas a economia não ia bem. No início de 1980, a situação agravara-se de tal maneira que os seus efeitos catastróficos, provocados pela gestão burocrática de uma economia que sugava toda produção social para manter os previlégios do aparato. A situação era dramática na véspera da implantação da Perestroika. Com dados do FMI sobre a situação economica da URSS e as suas recomendações (1990), temos o seguinte quadro resumido:
- O fornecimento de energia de base da União Soviética estava em graves dificuldades na década de 1980.
- A produção siderúgica e de petróleo estagnaram no período 1980-1984.
- Instalações de geração e linhas de transmissão foram ultrapassados e faltava manutenção, como evidenciado pelas frequentes avarias ou interrupção de energia elétrica (para não mencionar o caso de Chernobil).
- O setor agrícola de produção de grãos, adaptados às condições climáticas, não se registrava qualquer aumento na década anterior, apesar dos grandes investimentos.
- Dois terços dos equipamentos de processamento agrícola utilizados na década de 1980 eram inúteis, pois muito boa parte do mesmo procedia a partir da década de 1950 e 1960.
- Entre 20% e 50% das culturas de cereais, batata, beterraba e frutas estragaria antes de chegar às distribuidoras. Mesmo quando os abastecimentos eram necessários, os atrasos nas entregas causavam escassez temporária, gerando filas, acúmulo de bens e racionamentos ocasionais.
- Entre 1970 e 1987, a produção por unidade de insumo declinou a uma taxa superior a 1% ao ano.
- Para resumir a situação nas vésperas da Perestroika, todos, começando com Gorbachev, concordavam que o crescimento econômico per capita era igual a zero ou negativo. Tal como explicado por Marvin Harris, é apresentado um quadro ainda mais sombrio da ineficiência da infraestrutura soviética depois de 1970, se subtrai-se os custos da poluição e destruição ambiental do produto nacional (PIB).
- Estavam presentes todas as formas imagináveis de poluição e esgotamento de recursos em tais quantidades enormes que constituem uma ameaça à vida, incluindo as emissões descontroladas de coberto dióxidos de enxofre, despejos de resíduos perigosos e nuclear de todos os tipos, intoxicação por erosão do solo do lago Baikal (na opinião de Poiniting 1991, provavelmente o pior desastre ecológico do século XX) e os mares Negro, Báltico e Cáspio, e a seca devastadora do mar de Aral.
- Como explica Feshbach (Feshbach, Murray, 1983, “Issues in Soviet health problems”, en Soviet economy in the 1980s: Problems and Prospects), a expectativa de vida para os homens soviéticos foi diminuindo na véspera da Perestroika.
Assim, em 1986, Mikhail Gorbachev assume o governo da URSS. Apoiado por uma ala “reformadora” da burocracia, começa a empreender a “Perestroika” (restruturação) e a “Glasnost” (abertura) com o claro objetivo de sair do impasse do fracasso do último Plano Quinquenal (1981-1985), quando a taxa de crescimento da economia soviética foi zero. O que Gorbachev fez foi uma manobra. Acenou com uma esperada “democratização do regime”, reabilitação das vítimas do terror stalinista, uma limitada liberdade de opinião, como forma de aprovar uma restruturação econômica e reformas que iam no sentido de restaurar a economia de mercado e o capitalismo. Ao fazer isso, Gorbachev liberou forças centrífugas na sociedade soviética que ele não pode mais controlar.
A União Soviética estava com os dias contados.
O anátema de Trotsky
Não foi à toa que a primeira vítima do terror de Stalin a ser reabilitada pela glasnost foi Bukarin, o teórico que queria construir o socialismo expandindo a economia de mercado. As teses de Bukharin eram bastantes convenientes para aplicação de uma política de introduzir a economia de mercado em detrimento da planificação econômica. Os burocratas usavam as péssimas condições da produção soviética como argumento em defesa do mercado. Junto com Bukharin foi reabilita grande parte dos líderes do partido que foram expurgados e assassinados por Stalin. Muitos deles eram da fração stalinista mas que caíram em desgraça e foram vítimas do Terror dos anos 1930.
Mas o silêncio abateu-se sobre as centenas e centenas de jovens operários e estudantes que pertenceram a Oposição de Esquerda e que morreram fuzilados nos campos de concentração. Esses não capitularam, não transigiram com o regime stalinista e morreram de pé, fuzilados, cantando a Internacional. Defenderam até o fim o legado deixado pela Revolução de 1917. Eram espectros que assombravam a burocracia e o maior de todos os fantasmas ninguem cogitou reabilitar. Era o espectro de Leon Trotsky.
O homem que foi Presidente do Soviet de Petrogrado, que junto com Lênin liderou a revolução de 1917, o comandante do Comitê Militar Revolucionário que dirigiu a inssureição de Outubro, o fundador do Exercito Vermelho que venceu a guerra civil, o defensor da revolução permanente mundial e o fundador da IV Internacional era um fantasma assustador demais para os burocratas do Kremlin.
Trotsky lancou sobre Stalin e a burocracia soviética uma profecia que se transformou numa maldição: ou a classe trabalhadora derruba a burocracia e passa a construir o socialismo ou a burocracia vai querer se transformar em uma nova classe possuidora e restaurar o capitalismo, destruindo a União Soviética.
Era o anátema de Trotsky que a História confirmou.