Imagem: "O Curso do Império: Destruição", de Thomas Cole

Olhando para nossa época através da história da decadência da República Romana

Os elementos mais comuns de serem atribuídos a uma época de decadência sistêmica são a escassez material e a miséria humana. Mas não devemos nos contentar com essa imagem parcial. Tanto a história da decadência de Roma e seu modo de produção baseado no trabalho escravo quanto a decadência do capitalismo e seu modo de produção baseado no trabalho assalariado apresentam elementos de abundância concentrada na classe dominante.

Vemos hoje capitalistas como Elon Musk (Tesla), Bezos (Amazon), Branson (Virgin Atlantic), entre outros, investindo somas bilionárias em empresas de exploração espacial, lançando milhares de satélites em órbita para variados fins econômicos e criando um ramo do turismo exclusivo para ricaços que querem ir ao espaço sideral. Isso, em certa medida, tem aquecido iniciativas espaciais de governos: Coréia do Sul vai tentar lançar seu primeiro satélite e a Rússia realizou teste de míssil contra estruturas no espaço, destruindo um satélite próprio e entrando no “clube” dos países com armas desse tipo.

Parece que tudo vai bem para os grandes capitalistas, que exibem não só atitude “empreendedora” ou serviços extravagantes, especialmente quando pensamos nas iniciativas básicas da qual a humanidade precisa, mas também a força de suas armas. Personificadas nas forças militares dos Estados nacionais, as armas da burguesia servem para amedrontar tanto seus colegas de classe em outros países quanto os trabalhadores de todo o mundo. Enquanto isso, milhões de pessoas morrem de fome, pela pandemia de Sars-Cov-2 ou por doenças perfeitamente curáveis, bolhas se ampliam no mercado financeiro trazendo o prelúdio de um “apocalipse”, e a produção industrial segue sem saltos.

Podemos traçar um paralelo da exuberância destes senhores interestelares com a classe dominante romana no período de decadência da República Romana. Por volta de II a.C., as legiões de guerreiros se lançavam na obtenção de conquistas territoriais ultramarinas, trazendo para Roma despojos, escravos e novos territórios com pagadores de impostos e guerreiros para as legiões. O magistrado romano, que eram os governantes superiores eleitos pelos cidadãos (homens e não-escravos), viviam tempos de glória. Antes das crises econômicas e políticas que assolaram a República, a democracia romana alcançava até mesmo os membros da plebe, que podiam chegar às mais altas posições na magistratura, apesar dessa participação não dissolver, por exemplo, a diferença entre plebeus enriquecidos e patrícios (aristocracia que fundou Roma nos tempos monárquicos).

Os principais beneficiados com a expansão, os latifundiários e políticos de destaque, competiam entre si construindo palácios, montando latifúndios com números nunca antes vistos de escravos e ornamentando luxuosas residências rurais. Roma, a capital da República, estava sendo reconstruída com recursos oriundos do afluxo interminável de riquezas. Obras ousadas de engenharia, que intrigam até hoje os especialistas por sua complexidade, eram realizadas por todos os lados.

Imagem: Maquete de Roma Antiga feita pelo arqueólogo Italo Gismondi

Para os latifundiários, principalmente aos que se entregavam à vida política, tudo estava indo muito bem. A expansão da República, assim como a expansão do capitalismo depende da conquista incessante de novos mercados, dependia da guerra.

Muito diferente do que ocorre no capitalismo, os ricaços de Roma não podiam simplesmente delegar as funções políticas e militares como classe politicamente dominante a um corpo político destacado, como é feito hoje com relação ao Estado burguês.

Se um burguês que queira se manter no topo ou se tornar um dos maiores sabe que precisa se envolver com o mercado financeiro, incluindo suas mais pérfidas manobras especulativas e crimes, um membro da classe dominante romana sabia que precisava se envolver na política e na guerra para ascender vertiginosamente. Como o crescimento da riqueza da classe dominante estava atrelado à expansão da República por vias militares, era comum que os membros dessa classe comandassem tropas pessoalmente.

Contudo, na medida em que o território romano crescia também aumentava a necessidade de bases militares distantes da capital, o que era extremamente custoso em termos humanos. As tropas da República não eram formadas por combatentes assalariados, como os exércitos modernos. Com conquistas territoriais mais próximas, os pequenos fazendeiros romanos se lançavam à guerra, na expectativa de enriquecer com os despojos de guerra e galgar posições políticas. Com conquistas territoriais próximas, os fazendeiros ficavam no máximo alguns poucos anos fora de suas terras, por consequência, distantes apenas por breves períodos da administração dos escravos e negócios.

A guerra permanente empreendida pela República, para ser sustentável, precisava ser veloz, fulminante e muito lucrativa. Na medida que essa pretensão se realizava, maior prestígio ganhava o guerreiro quando retornava para a capital. Com o distanciamento territorial das conquistas, e com ele a demanda por bases militares, os serviços passaram a durar até 10 anos, o que levava à ruína as pequenas propriedades e frustrava a luta pela ascensão na carreira política. O fluxo de interessados no serviço militar diminuiu, comprometendo o vigor da expansão e abrindo uma época de derrotas.

Nessa situação, o poder político e o enriquecimento rápido pela guerra se tornavam cada vez mais exclusivos a poucos membros da aristocracia, que podiam bancar com sua riqueza as legiões. A concentração de terras também se tornou evidente. O fantasma do fechamento do regime pairava sobre a cabeça dos romanos, gerando discussões nas assembleias populares e no Senado. Sobretudo os mais ricos temiam uma restauração monárquica por parte de algum político-latifundiário que se tornasse muito popular entre a plebe.

Sendo assim, a realidade de seguidas vitórias, ao invés de aumentar o poderio da República Romana, o debilitou. Diminuía rapidamente o número de cidadãos aptos a servir no exército, ou seja, aqueles capazes de bancar equipamentos e conduzir tropas, visto que os pequenos fazendeiros estavam indo à falência por seus longos serviços no estrangeiro. Estava aberta uma época em que a ampliação das riquezas de poucos e restritos membros da aristocracia passou a conviver lado a lado não com a prosperidade dos cidadãos romanos e a possibilidade generalizada de ascensão social, mas com o empobrecimento das massas e com conflitos políticos nas cúpulas. A escalada de conflitos políticos e o derramamento de sangue era questão de tempo.

Dizendo de outra maneira, a ampliação das conquistas militares, o aumento no número de escravos, de terras, o crescimento das empresas comerciais e da arrecadação de impostos vieram junto com a ruína da República.

O que começou pelo debate público sobre a desigualdade na distribuição das terras, terminou em medidas ilegais, acusações, deposições e assassinatos políticos. Graco Tibério, tribuno da plebe defensor da “reforma agrária” – propositor da Lex Semprônia Agraria – e mais 300 aliados foram assassinados e lançados no rio Tibre em uma ocasião de grande tensão entre a plebe, que reivindicava uma redistribuição mais justa das terras, com o Senado, que temia que políticos como Graco se tornassem tão populares ao ponto de figurarem maiores que a própria República. Em nome da república e da democracia, a República e as liberdades democráticas estavam sendo destruídas.

Dentre muitas coisas que podemos aprender com a história da decadência da república romana, destaco aqui o perigo da ideia de que a “democracia” deve ser defendida dos seus “agressores”, como se o indivíduo falasse por si mesmo independentemente da história do modo de produção do qual faz parte. Roma estava em uma verdadeira rua sem saída para sua economia. Nenhuma classe social na República tinha capacidade de desenvolver forças produtivas e substituir os latifundiários escravagistas do comando da sociedade, tampouco vislumbrava no horizonte qualquer tipo de relação de produção outra que não a baseada na exploração do trabalho escravo.

Se a gigantesca revolta insurrecional liderada pelo escravo Espártaco tivesse como objetivo a tomada do poder, de fato poderíamos ter uma redistribuição de terras, isto é, a realização de um programa democrático. Contudo, Espártaco não tinha ambições políticas, nunca pretendeu organizar uma revolução política. A maioria dos historiadores acredita que a revolta foi uma tentativa desesperada de organizar uma fuga em massa de escravos em um período de intensa crise econômica.

Alguns dizem que Espártaco queria primeiro marchar sobre Roma em uma empreitada “vingativa” antes da fuga e dispersão. Outros, hipótese que consideramos menos provável, afirmam que Espártaco queria libertar Roma da escravidão. Ora, colocando que tipo de modo de produção no lugar do escravagismo? Ou, como os escravos poderiam se emancipar sem um projeto de poder político e uma organização política que pudesse liderar sua realização?

Em Roma, o medo geral difundido pelo Senado do retorno à monarquia ou de uma iminente ditadura pessoal, seja de um político aristocrata tradicional ou de um tribuno da plebe, serviu como arma de intimidação a qualquer um que defendesse os anseios por redistribuição das terras e dos espólios de guerra. Ou seja, serviu para aumentar a opressão sob as classes dominadas e para proteger a acumulação desenfreada de riquezas.

Igualmente, nas principais nações capitalistas, a “defesa da democracia” tem servido para manter a concentração de poder econômico e a exploração sob o manto das mais singelas intenções de luta contra os “autoritarismos” “populistas”. Se no século XX a ameaça autoritária estava encarnada nos partidos comunistas e movimentos trabalhistas, hoje o alvo são os políticos “populistas”. Na prática, a defesa da “democracia” pela classe capitalista significa que a classe assalariada deve defender ordem existente para proteger as liberdades democráticas. Os assalariados só não devem esquecer que essa proteção deve ficar nas mãos de homens e mulheres “de bem” que representam os interesses da burguesia. A “plebe” dos nossos tempos precisa se afastar das decisões políticas, visto que suas reivindicações se antagonizam com as da aristocracia.

Pois bem, quais são as causas econômicas que possibilitam a dissolução da “democracia” burguesa? Em Roma, o crescente poder econômico e político dos latifundiários os colocou muito acima da plebe e das estruturas de participação política popular. Já o sucesso da acumulação capitalista e da expansão do capitalismo por todo o planeta criou uma aristocracia financeira que se faz igualmente distante, que vê nos interesses dos assalariados uma gigantesca ameaça à ordem econômica. Uma pequena greve salarial, em um momento de penúria geral, pode ser o prelúdio de uma explosão insurrecional. Uma vitória dos assalariados em uma empresa pode incentivar os de outras a se levantarem. Contudo, não há como retroceder no tempo ou a uma época de uma burguesia “não-parasitária”. É preciso avançar de maneira decidida, sabendo para onde.

O aparelho de Estado, principalmente os bancos centrais, como vimos a partir da crise de 2008 através das medidas de “estímulo econômico”, é servil aos interesses dos grandes conglomerados empresariais nas bolsas de valores. No caso do imperialismo, esse aparelho precisa esmagar nos países atrasados qualquer sinal de insubmissão ao seu interesse. A esquerda reformista grita em defesa da democracia burguesa pois percebe que em momentos de agudização da luta de classes e de fissuras entre as classes dominantes ela se tornou instável demais para representar os anseios políticos da classe dominante. O problema é que ao invés de ligar a instabilidade ao modo de produção, cai na ladainha burguesa de que a causa do problema é a administração política do Estado.

Defender as instituições burguesas, então, parece para os reformistas ser a melhor maneira de evitar retrocessos democráticos. Entretanto, para a burguesia, as liberdades democráticas só são úteis quando têm como objetivo garantir ou ampliar seu poder político. A própria classe capitalista não vê problema algum em apoiar o fechamento do regime caso essa seja a melhor maneira de alcançar seus objetivos. Neste momento, os reformistas cumprem a clássica função de pelego entre as reivindicações democráticas da classe trabalhadora como um todo e o sistema político em ruínas.

Se a República Romana acabou, dando lugar ao Império Romano, foi exatamente para preservar o poder político da classe proprietária, que não viu outra saída que não apoiar “césares” para estancar a sangria do sistema. Atualmente há até mesmo setores da poderosa burguesia dos Estados Unidos que bradam por “lei e ordem” para lidar com a insatisfação popular, mesmo que isso vá contra a sacrossanta democracia norte-americana. E fazem isso não por insanidade, mas porque acham que essa é a melhor maneira de manterem as massas sob controle diante dos protestos que tomaram o país em 2020. Quando o pelego não mais conseguir evitar o conflito das massas trabalhadoras com o capital, ou quando a crise empurrar as massas para as ruas e para as greves de maneira mais intensa, os setores mais reacionários da burguesia, que hoje são minoritários, poderão ganhar força. Para os reformistas, a solução para evitar o fechamento do regime é convencer os trabalhadores a se comportarem como cordeiros que caminham pacificamente para o abate. Afinal, se não existir agitação, a burguesia poderá dormir tranquila.

A história de Roma findou, a nossa não. Entretanto, as coisas por aqui parecem caminhar no mesmo sentido: a República se corrói através de cada medida tentada para salvá-la. A formação de uma liderança comunista mundial ainda está em fase embrionária. O que é evidente é que no contexto da desintegração internacional das Repúblicas Burguesas, os que se agarrarem a elas serão tragados para debaixo da terra. Nossa luta pelo direito por um futuro que não seja uma ida mais ou menos direta para a barbárie, como ocorreu em Roma, começa agora. Começa por dar consciência às reivindicações dos assalariados, construindo um partido capaz de ser a parte mais decidida do seu movimento.

Através do impulso desse partido será soldada uma frente única capaz de levar adiante as reivindicações mais imediatas dos trabalhadores ao mesmo tempo que os arma com um programa político que os guie para a vitória definitivo sob seus inimigos de classe. No choque revolucionário do trabalho contra o capital nascerá a República dos Trabalhadores, uma nova democracia que só pode ser “nova” se a burguesia e os representantes dos interesses do capital forem excluídos dela. Essa República será, inicialmente, a herdeira de tudo que o modo de produção capitalista fez nascer, mas que se mostra incapaz de desenvolver devido a suas próprias contradições. Roma não teve uma classe capaz de construir um novo mundo sob sua liderança. Nós temos, os trabalhadores.

Referências:

Goldsworthy, Adrian. César: a vida de um soberano. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011.