Síria: em que etapa está a guerra?

Ainda antes de começarem, as chamadas negociações de paz sobre o futuro da Síria vieram abaixo. O enviado especial das ONU à Síria, Steffan de Mistura, pediu uma “pausa” nas conversações e sua retomada em 25 de fevereiro. Enquanto isto, o Exército Sírio Árabe e seus aliados deram um golpe demolidor nos Jihadistas apoiados pelo Ocidente no Norte de Aleppo. Como o equilíbrio de forças está sendo desfeito na guerra, nenhuma das partes envolvidas no terreno têm qualquer motivo para adotar medidas sérias nas conversações.

Ainda antes de começarem, as chamadas negociações de paz sobre o futuro da Síria vieram abaixo. O enviado especial das ONU à Síria, Steffan de Mistura, pediu uma “pausa” nas conversações e sua retomada em 25 de fevereiro. Enquanto isto, o Exército Sírio Árabe e seus aliados deram um golpe demolidor nos Jihadistas apoiados pelo Ocidente no Norte de Aleppo. Como o equilíbrio de forças está sendo desfeito na guerra, nenhuma das partes envolvidas no terreno têm qualquer motivo para adotar medidas sérias nas conversações.

Enquanto os EUA e a União Europeia gostariam de ver uma resolução rápida para o conflito que está produzindo efeito desestabilizador sobre ambos, as partes em conflito no terreno não têm nenhum interesse em deixar o campo de batalha como se encontra no momento. A Rússia, Assad e seus aliados estão fazendo constantes progressos e os chamados rebeldes moderados, apoiados pela Turquia e Arábia Saudita, estão perdendo terreno.

Estes tradicionais “aliados” dos EUA agora querem que a superpotência intervenha e salve as forças que apoiava, mas, para os EUA, estes aliados estão se transformando cada vez mais em um maior estorvo que o suposto “inimigo”. O imperialismo EUA se encontra em sua crise mais profunda desde que perdeu completamente o controle da situação no Oriente Médio. Havendo perdido a oportunidade de derrubar Assad, sua única esperança de evitar um novo Iraque ou Afeganistão é salvar o regime no médio prazo e lutar contra as tendências reacionárias que ele próprio desencadeou.

Vladimir Putin e o Aiatolá Khamenei resolveram de repente “ajudar os caras” na Síria, e os estadunidenses devem dançar ao ritmo de sua música. Enquanto isto, acumula-se o ressentimento no campo dos EUA, enquanto Erdogan e o Rei Salman mergulham profundamente em sua luta pela sobrevivência.

Avanços do Regime

A entrada da Rússia na guerra mudou completamente o equilíbrio de forças no terreno. O regime de Assad, que há apenas poucos meses parecia se encontrar à beira do colapso, foi revigorado pelo apoio russo.

Em 3 de fevereiro, o exército, apoiado pelas milícias controladas pelos iranianos, chegou aos enclaves (Nota da tradução: enclave refere-se a um território de um país completamente cercado por outro) xiitas de Nubl e Zahraa, que estavam parcialmente isolados e cercados durante os últimos três anos. O regime vinha tentando fazer isto sem qualquer êxito durante os últimos três anos. Com o apoio aéreo russo, este objetivo foi alcançado em apenas dois dias.

Foi uma vitória importante e levantou o moral dos partidários do regime que tinha vindo abaixo pela falta de apoio governamental efetivo aos numerosos enclaves cercados das comunidades anti-islâmicas. O maior ganho, contudo, foi o bloqueio do Corredor de Azaz, que era a mais importante e a última rota logística que liga os Jihadistas aos seus amos na Turquia.

Hoje as forças em avanço continuaram para o Norte em conjunto com as Forças Democráticas Sírias (SDF) controladas pelos Curdos, que estão se movendo para o Leste a partir do vizinho Cantão de Afrin. Há informes de que o SDF já chegou aos subúrbios de Azaz. Com a ofensiva simultânea contra as forças do Estado Islâmico (Nota da tradução: ISIS, na sigla em inglês) a partir do Leste, parece que as linhas de defesa dos rebeldes islâmicos no Corredor vão entrar em colapso.

Mais ao Sul, o avanço de ontem também abre a possibilidade de cercar e tomar aquelas partes da cidade de Aleppo sob o controle dos rebeldes durante os últimos três anos. Aqui, uma derrota dos rebeldes seria significativa, senão decisiva para o desfecho da guerra.

Esta significativa vitória vem como o mais recente de uma série de avanços das forças do regime. Além do Norte de Aleppo, grupos leais foram avançando contra os islâmicos nos fronts da zona rural ocidental de Aleppo, onde conseguiram cortar as principais linhas de suprimento à cidade, assim como na zona rural ao Sul de Aleppo, onde gradualmente ganharam terreno durante três meses. Em Latakia, o regime conseguiu, durante as últimas semanas, tomar a cidade de Rabia e a estrategicamente importante cidade de Salma, deixando Kinsabba como a única cidade importante a ser tomada em toda a governadoria. Se Kinsabba cair, o caminho estará aberto às duas cidades-chave da governadoria de Idlib, Jisr al-Shughur e a própria cidade de Idlib. Ao lançar ofensivas em fronts de transposição rápida em Idlib, Aleppo e Latakia, as linhas logísticas e de comunicações dos rebeldes ficaram estiradas ao extremo, obrigando-os a movimentar reforços constantemente.

Enquanto isto, os rebeldes do Sul, apoiados pela Arábia Saudita, Jordânia e pela CIA, também se viram mergulhados em contratempos. Depois de uma série de ofensivas altamente propagandeadas, mas abismalmente fracassadas, no ano passado, estão mostrando significativos sinais de debilidade em face do lento avanço das forças do regime. Além de várias derrotas na cidade de Daraa, perderam a estrategicamente importante cidade de Sheikh Miskeen na semana passada. A queda de Sheikh Miskeen libera forças para o início de uma ofensiva em direção à cidade de Nawa. Um passo nesta direção foi a queda de Atman hoje. Uma derrota em Nawa cortaria a logística e as comunicações dos rebeldes por toda a região e limparia o caminho para a tomada do restante da cidade de Daraa, bem como do cruzamento da fronteira com a Jordânia.

Também é cada vez mais evidente que os rebeldes do Sul perderam o apoio do regime jordaniano. Além da falta de confiança na competência dos rebeldes, a Jordânia se encontra em sérios riscos de desestabilização sob o peso de 600 mil refugiados sírios. Isto poderia levar inclusive a um acordo com Assad para a volta de alguns dos refugiados em troca do fim do apoio aos grupos rebeldes.

O regime sírio também obteve alguns ganhos contra o Estado Islâmico, em particular na zona rural, a Leste de Aleppo. Embora, na cidade de Deir Ezzor, o governo tenha marcado passo no combate contra o Estado Islâmico o mês passado.      

A intervenção russa, em geral, conseguiu reverter a situação. O regime fortaleceu suas rotas de suprimento e consolidou seu domínio sobre áreas estratégicas. Isto, por sua vez, permitiu-lhe avançar gradualmente sobre vários fronts. Enquanto isto, todas as tentativas de contra-ataques dos grupos islâmicos apoiados pelo Ocidente foram repelidas com relativa facilidade.

Há um ano a situação era completamente diferente. Depois da desintegração sectária do movimento revolucionário inicial, a opinião pública síria se voltou em favor do regime de Assad, visto por muitos sírios como preferível à bárbara alternativa oferecida pelos islâmicos. Nas eleições de 2014, vimos uma maior participação de massas, não obstante sua natureza fraudada. Contudo, apesar do apoio à campanha anti-islâmica, o exército não estava ganhando terreno significativamente.

A situação se aprofundou há cerca de um ano, quando o exército foi expulso de toda a governadoria de Idlib, deixando para trás enormes quantidades de armas, artilharia e veículos blindados. Pouco depois perdeu a pequena cidade de Palmira durante o avanço das forças do ISIS. As humilhantes derrotas, claramente o resultado da incompetência do corpo de oficiais, aceleraram o colapso do moral do exército e entre os apoiadores do regime. Apesar de ter pleno domínio do espaço aéreo, de ter uma maior quantidade de tanques e um exército tecnicamente superior, o regime não foi capaz de fazer retroceder os islâmicos ligeiramente armados.

Anos de corrupção e nepotismo e a arrogância de uma ditadura corroeram as forças armadas sírias, particularmente no topo. A incompetência dos quadros de comando, cujas nomeações se baseavam mais no parentesco e nos conchavos do que em qualquer tipo de mérito, significou a perda de vitórias fáceis e as retiradas se transformaram em norma. Em cima de parcos salários e maus tratos, as deserções se tornaram endêmicas e os planos de fuga acelerados. A desesperada tentativa de caçar os desertores e puni-los somente piorou o assunto.

Os oficiais iranianos e de Hezbollah engajados no exército tampouco ajudaram, uma vez que provêm de exércitos afeitos à defesa com pequena experiência de combate em um entorno como o da Síria. A intervenção russa, ao colocar estrategistas russos em posições-chave da cadeia de comando, transformou o exército. Ofensivas sem perspectiva com altos níveis de perdas foram substituídas por avanços pacientes e inteligentes, e o bombardeio sem nexo de áreas urbanas foi substituído pelo apoio próximo no terreno e pelo bombardeio de rotas logísticas fundamentais e de pontos centrais. O moral, sem dúvida, também se elevou em consequência.

Embora mais lentamente do que os russos provavelmente esperavam, o regime gradualmente recuperou a maioria das posições estratégicas e agora está começando a apertar seriamente os rebeldes.    

Por último, o equipamento militar russo de alta tecnologia também impediu qualquer outra potência de intervir em maior escala sem o consentimento russo. Ao mover uma série de novos sistemas de interferência e de radar, bem como os sistemas de defesa aérea – incluindo os S-400 que são o sistema mais avançado do mundo – os russos de fato asseguraram supremacia aérea sobre a Síria, algo que mesmo os militares estadunidenses não podem mudar. Assim, os planos de intervenção direta dos EUA e de criação de zonas de exclusão aérea tiveram que ser arquivados.

Naturalmente, este é ainda o mesmo velho exército sírio. Sem uma enorme quantidade de ataques aéreos e o apoio de milhares de milicianos respaldados pelos iranianos, ele teria muitas dificuldades para avançar contra os rebeldes. A ofensiva de ontem no Norte de Aleppo teve 200 ataques aéreos para assegurar a ofensiva em uma área muito pequena. Apesar disso, a Rússia logrou mudar fundamentalmente o equilíbrio de forças. Do ponto de vista da Rússia, de Assad e dos iranianos, não há necessidade de se negociar nesta etapa em que ainda têm muita força para pressionar os rebeldes. Qualquer cessar fogo importante nesta etapa somente daria mais espaço para respirar aos rebeldes e lhes permitiria fortalecer novas posições defensivas e preparar uma contraofensiva.

Os “moderados” e a crise do imperialismo EUA

Enquanto isto, a intervenção russa deu um duro golpe nos sempre evasivos rebeldes “moderados” e seus principais apoiadores no Ocidente, a Arábia Saudita e a Turquia. Em todos os fronts, eles agora estão sendo pressionados e não foram capazes de conquistar qualquer terreno desde outubro. Ao mesmo tempo, uma série de assassinatos de seus líderes os deixou em desordem e submetidos a lutas internas.

O bloqueio do Corredor de Azaz também fecha uma importante rota comercial que os rebeldes haviam estabelecido com o ISIS, e que os supria com muito combustível barato, necessário para os geradores de energia de que são fortemente dependentes. O preço dos alimentos e do combustível é provável que se eleve em Idlib e Aleppo, deixando os rebeldes em situação apertada.

Há quase 1.500 milícias dentro da oposição não-pertencente ao ISIS. No entanto, nos últimos dois anos, os dois maiores grupos (ligados a Al Qaeda), Jabhat al Nusra e Ahrar al Sham, andaram se chocando para formar grupos centrais em uma série de fronts unificados apoiados pela CIA e pelas agências de inteligência turca e da Arábia Saudita. O mais bem-sucedido destes projetos foi o Exército da Conquista no noroeste da Síria. Esta formação, coordenada e organizada pela inteligência turca e financiada pela Arábia Saudita, lançou com êxito uma enorme ofensiva em Idlib na última primavera.

No entanto, isto revelou o completo fracasso da estratégia dos EUA na Síria. Nenhum dos grupos apoiados pelos EUA tem algum interesse em lutar seriamente contra o ISIS com quem muitos deles simpatizam. O principal objetivo dos islâmicos cada vez mais radicalizados é a derrubada do regime de Assad. Esta é uma perspectiva com que os EUA estão cada vez mais em desacordo porque a remoção de Assad, que é a peça-chave que segura o conjunto do aparelho do estado, poderia significar o colapso da totalidade do estado e a invasão da Síria por islâmicos fanáticos.

Toda tentativa dos EUA de criar seus próprios representantes para lutar contra ISIS foi combatida pelos aliados “moderados”, bem como pela Turquia e Arábia Saudita. Com a entrada da Rússia no campo de batalha, o processo de desintegração das forças imperialistas por trás da insurgência se acelerou.

Por um lado, a Rússia efetivamente descartou qualquer possibilidade de ataques diretos dos EUA a Assad, bem como a criação de uma zona de exclusão aérea para dar aos rebeldes islâmicos um refúgio seguro no Norte da Síria. Por outro lado, forçou os EUA a intensificar sua campanha contra o  ISIS – uma campanha que vinha funcionando com baixa intensidade desde o seu lançamento – a fim de assegurar a melhor posição de negociação possível em relação à Rússia e a Assad, que estavam avançando. De fato, a Rússia ofereceu aos EUA a chance de se afastar da Síria – embora dentro dos termos russos.

Tudo isto, contudo, somente contribuiu para a crise da política dos EUA no Oriente Médio, ela própria, como já explicamos previamente, uma consequência da crise global do capitalismo EUA. Enquanto este era obrigado a aceitar sua debilidade no terreno e a se inclinar cada vez mais na direção do Irã para estabilizar a região, seus aliados tradicionais– Turquia, Arábia Saudita e Israel, todos eles enfrentando suas próprias e profundas crises internas – cada vez mais se converteram nas fontes dessa instabilidade.

Na Síria, isto ficou mais evidente na relutância dos EUA de apoiar com entusiasmo os islâmicos rebeldes que eles temem e não podem controlar. Em vez disso, vêm tentando arrastar os Estados do Golfo e a Turquia à campanha contra o ISIS, algo que se recusam a fazer e que só levaria a um Irã mais forte e que também reforçaria o regime de Assad. De fato, nos últimos seis meses, estes regimes quase não participaram dos ataques da coalizão contra o ISIS. Para a Turquia e para a Arábia Saudita em particular, o resultado da guerra civil síria teria um profundo impacto sobre o futuro de seus regimes. Erdogan, que está cambaleando entre uma crise e outra, fez a grande aposta de estabelecer o domínio turco sobre a Síria. No entanto, ele não está sofrendo apenas com a opinião pública contrária à participação na guerra, como também significativos setores da casta de oficiais do exército, que já estão frustrados por sua imprudência, estão se opondo a suas ambições expansionistas. Uma séria derrota na Síria poderia fazer escalar a desintegração de seu regime.    

Também na Arábia Saudita, o regime se encontra em profunda crise. Sob a pressão do poder ascendente do Irã, o regime também enfrenta uma profunda crise interna. A crise do capitalismo e a desaceleração da China trazendo o preço do petróleo a níveis recordes estão pondo forte pressão sobre o regime e sobre sua malha de proteção, que o mantém de pé. Isto está aumentando as divisões já profundas dentro da elite governante. Ao mesmo tempo, o regime está sendo pressionado entre a crescente oposição dos jovens, dos pobres e das minorias xiitas oprimidas, por um lado, e dos fanáticos Wahhabies, pelo outro. O novo rei Salman e seu filho Mohammed bin Salman – que parece ser quem de fato governa no momento – estão arremetendo desesperadamente na Síria e no Iémen para tentar deter esta espiral descendente. Pensaram que poderiam empantanar a Rússia como fizeram com a URSS no Afeganistão, mas agora são os únicos que estão se empantanando e com pouco espaço de manobra. Qualquer admissão de derrota, que parece inevitável, pode acelerar a crise. Contudo, aferrar-se é tornar piores as coisas. A guerra na Síria, como no Iémen, pode ser o início do fim do reino e da Casa de Saud.

Assim, embora os EUA não possam se dar ao luxo de apoiar seus aliados na Síria, por sua vez não podem se dar ao luxo de desistir de seus investimentos no campo jihadista. A derrubada do jato russo pela Turquia foi uma tentativa desesperada para forçar a mão dos EUA e parar sua distensão com a Rússia e o Irã. O resultado, contudo, foi só para colocar as divisões em exibição pública e acelerar o processo. Assim, o respaldo dos EUA aos rebeldes “moderados” vem sendo reduzido em detrimento dos aliados problemáticos dos EUA.

O fato de que os rebeldes interrompessem as conversações na ONU é um reflexo destas profundas divisões. Depois de serem encurralados internamente, bem como no campo de batalha, têm poucas fichas de barganha para a negociação. Isto pode levar a uma escalada desesperada da situação em certa etapa.

As Forças Democráticas Sírias

Entretanto, o exército mais forte na Síria nem mesmo foi convidado às conversações. As Forças Democráticas Sírias, compreendendo uns 80 mil combatentes, foi estabelecido pelo YPG, uma milícia curda de esquerda e organização irmã do PKK. É uma ironia da história e um testemunho da crise do imperialismo EUA que seus principais aliados na região sejam uma milícia curda de esquerda, cuja organização irmã está na lista de terroristas dos EUA, o Hezbollah e o regime dos mulás iranianos.

Nos primeiros dias do movimento revolucionário o regime teve que se retirar das áreas curdas, deixando, assim, um vácuo de poder que foi preenchido pelo PYD – a ala política do movimento – e pelo YPG, que eram as organizações tradicionais dos Curdos na Síria. A partir de então, o YPG cresceu para se tornar uma das mais poderosas forças no país.

Isto se deve principalmente ao fato de ser uma milícia popular baseada em um programa democrático e não sectário. Com mais de 80 mil tropas, somente é superada pelo exército de Assad, que lhe é inferior em treinamento, moral e motivação. Com o estabelecimento do Congresso Democrático Sírio, de fato se transformou em um pequeno estado Curdo.

O PYD/YPG é, sem dúvida, o movimento mais progressista no Oriente Médio no presente momento. No entanto, está sendo usado pelos EUA por razões totalmente reacionárias. Ao ver suas opções cortadas na Síria, o imperialismo EUA encontrou um modelo útil no governo Curdo “autônomo”, o que lhe permite romper a Síria em pequenos estados dirigidos por distintas milícias e senhores da guerra que eles podem jogar uns contra os outros para manter o controle. Isto pode se tornar uma situação como a do Líbano depois da guerra civil. Para os imperialistas, a palavra de ordem de autodeterminação para pequenas nações sempre é um engodo e uma armadilha. No momento, estão sendo obrigados a utilizar os Curdos para lutar em seu nome. Contudo, em certa etapa, os imperialistas inevitavelmente tentarão usar esta tática de divide et impera contra os próprios Curdos. No momento, contudo, os Curdos são as únicas forças dispostas a lutar contra o ISIS e, por isso, os imperialistas estão se apoiando neles.

Desde o Verão o resultado de tudo isto foram enormes ganhos na governadoria de Hassakah, onde os Curdos expulsaram o ISIS de todas as principais cidades e bloquearam suas principais linhas de suprimento no Norte do Iraque, onde se encontra Mosul. Além disso, se movimentaram ao Sul do Cantão de Kobane e tomaram a represa de Tishrin, a 30 km da cidade de Raqqa.

Este foi o primeiro passo na preparação para a tomada da área entre o rio Eufrates e o Cantão Curdo de Afrin, a Oeste. Hoje, uma conferência em Afrin preparou a criação de um novo Cantão na área de Shaba entre o Eufrates e Afrin. Isto significaria um pequeno estado Curdo cobrindo a vasta maioria da fronteira turca com a Síria. Esta ideia seria provavelmente um apelo a Assad e à Rússia uma vez que lhes daria um tampão na fronteira com a Turquia e, dessa forma, obstaculizando que esta intervenha na Síria.

Para a Turquia, isto é visto como uma grande ameaça, particularmente pelo impacto que poderia produzir sobre as regiões Curdas na própria Turquia. Aqui, a ascensão da luta de classes está intimamente conectada ao movimento Curdo, que, por sua vez, também se reforçou enormemente pelo avanço dos Curdos na Síria. Dessa forma, para o governo crescentemente Bonapartista de Erdogan, os Curdos colocam uma grande ameaça.

A mudança na política dos EUA em relação aos Curdos aprofundou as divisões entre Washington e Ancara. Isto levou à irônica situação de uma guerra de baixa intensidade entre o SDF, apoiado pelos EUA, e os títeres islâmicos apoiados pelos sauditas e turcos.

Com o bloqueio do Corredor de Azas, estas tensões parecem estar se movendo em direção a uma guerra aberta entre os títeres destes dois aliados da OTAN. Já há informes de forças Curdas se movendo para o Oeste de Afrin sob apoio aéreo russo e possivelmente ainda tomem Azaz hoje. Isto está preparando o colapso completo das forças rebeldes que estão sendo espremidas por três lados. Isto seria um duro golpe para o presidente Erdogan que está vendo desmoronar todas as suas intrigas na Síria.

Isto levaria a Turquia e a Arábia Saudita a escalar a situação e entrar na Síria – um movimento, contudo, que muito provavelmente levaria a outra derrota e a um desenlace das tensões reprimidas dentro desses dois países.

Etapa final

A guerra civil síria está se movimentando para sua etapa final. Os campos opostos estão se consolidando e as contradições de cada lado estão vindo à tona. O regime de Assad poderia não ter sobrevivido sem o apoio da Rússia e do Irã, mas seu front comum agora está avançando enquanto os rebeldes estão ficando cada vez mais isolados. Se Assad vai permanecer ou não no poder não é a questão fundamental. Putin não está particularmente ligado ao indivíduo Assad, do qual necessita agora para manter unido o aparato de estado sírio. Putin está mais interessado no restabelecimento da esfera de influência da Rússia na Síria e em sua posição na escala internacional. Nesta etapa ele percebe que se livrar de Assad levaria o caos à Síria. Portanto, sem outra alternativa, Assad permanecerá no lugar – pelo menos por enquanto.

Enquanto isto, os chamados “moderados” não têm nada para barganhar com ninguém, e, portanto, não há nenhuma necessidade de eles participarem em quaisquer negociações, até que atinjam uma melhor posição.

Finalmente, há os Curdos, que têm a segunda maior força no terreno, mas que sequer foram convidados às negociações. Sem eles, não pode haver nenhuma negociação de paz nesta etapa. Ao contrário do que muitas vezes é dado como assentado, a diplomacia burguesa, em última instância, é a expressão concreta do equilíbrio de forças no terreno. Embora às vezes ela possa desempenhar um papel independente, este é sempre restrito aos limites colocados pela situação econômica e militar. Temos aqui a continuação da guerra por outros meios. No entanto, como a guerra ainda não se esgotou completamente, não pode haver negociações significativas. Portanto, a guerra ainda pode se prolongar por um tempo antes que se alcance algum tipo de acordo de paz.

Contudo, esta será uma espécie muito diferente do equilíbrio que a Síria conhecia antes da guerra. A insurgência jihadista, ainda que perca todo o seu território, continuará durante anos, uma vez que as potências regionais continuarão a utilizá-la para intervir dentro da Síria. Os recém-habilitados senhores da guerra e líderes tribais, em particular no Norte e no Centro da Síria, desempenharão papel similar, enquanto o regime de Assad se romperá internamente. Anos de instabilidade, como os experimentados pelo Líbano, assombrarão o povo sírio.

O movimento de massas foi empurrado muito para trás por estes acontecimentos. Uma geração inteira está em estado de choque e não há nenhuma perspectiva de um novo movimento no curto prazo. A única salvação para a Síria seria uma outra vaga revolucionária se desdobrando por toda a região.

Instabilidade

O que começou como um movimento revolucionário democrático foi sequestrado pelas forças imperialistas e por seus lacaios islâmicos. Os revolucionários sírios pensavam que podiam simplesmente repetir as experiências egípcia e tunisiana: sair às Praças e exigir a queda do regime. Quando fracassaram, olharam para a experiência da queda de Kaddafi na Líbia e, assim, pediram a intervenção imperialista para derrubar Assad. Ao se moverem nesta direção, contudo, somente se separaram da classe trabalhadora urbana. Ainda havia algumas conquistas do passado que permaneciam, em termos de padrões de vida. E, com o que tinham visto no Iraque e no restante da região, os trabalhadores não se sentiram atraídos pelos apelos vagos por democracia e intervenção externa. Eles viram que os únicos que se beneficiariam com a queda de Assad nas condições dadas seriam os mais bárbaros grupos islâmicos fundamentalistas. Para eles, o programa “liberal” do chamado Conselho Nacional Sírio e de outros grupos – isto é, privatização generalizada e destruição do que ainda permanecia dos ganhos sociais do passado – apenas representava a aceleração da deriva reacionária do regime de Assad.

Havendo se estancado no front político, o movimento virou na direção da “luta armada”, mas em uma revolução se esta não estiver vinculada à classe trabalhadora organizada, pode chegar a ser fatal. Em um confronto unicamente militar, sem o pleno apoio da classe trabalhadora urbana, a revolução sempre será a parte mais débil. Tendo ido por este caminho, o movimento se tornou vulnerável e derivou para o controle das potências imperialistas externas que podiam financiar e organizar o levante. Somente a CIA bombeou 1 bilhão de dólares ao ano na guerra e os Estados do Golfo e a Turquia a acompanharam com muito mais.

O desvio reacionário, por sua vez, fortaleceu Assad, uma vez que muitos oscilaram para o seu lado para lutar contra o ISIS, Jabhat al Nusra e outras criações monstruosas do imperialismo ocidental e seus aliados. Para estes, a intervenção teve um duplo propósito: romper a revolução árabe em seu elo mais fraco e dominar a Síria, a fim de fazer retroceder a crescente influência iraniana.

Embora as potências regionais pensassem que poderiam terminar o trabalho rapidamente, elas puseram em marcha forças incontroláveis que somente deram lugar à exposição de suas próprias debilidades internas. Para a Turquia e Arábia Saudita, a guerra está produzindo profundas consequências internas. A União Europeia, que, liderada pela França e pelo Reino Unido, esteve pressionando por uma maior intervenção, teve que enfiar o rabo entre as pernas com a desastrosa crise dos refugiados ameaçando minar os alicerces da própria União Europeia. Um a um, os estados europeus estão agora caindo na realidade e aceitando que Assad deva permanecer no poder.

Para o imperialismo EUA, a guerra teve consequências desastrosas. A superpotência foi deixada com muito pouco espaço para manobrar. Preso entre sua própria crise e a de seus aliados, seus limites ficaram publicamente expostos. Na Síria, os estadunidenses são forçados a aceitar o status quo, uma vez que não querem criar outro Iraque, Afeganistão ou Líbia. Portanto, estão forçados a se retirar. Para se salvarem, estão crescentemente confrontando seus aliados para fazê-los recuar. Mas as nações não têm amigos ou inimigos permanentes, somente têm interesses permanentes. Todos os apelos para uma intervenção dos EUA não mudarão o fato fundamental de que não é do interesse da classe dominante dos EUA fazer isto.

Os EUA querem o fim do desastre sírio tão cedo quanto possível. Mas os russos não estão com a mesma pressa e avançam lentamente todos os dias. Os EUA foram completamente superados pela tática das sanções montadas e pelo suposto primitivismo do exército iraniano, para não falar do suposto “exército enferrujado” da Rússia, que os arrogantes generais estadunidenses não levaram em consideração como uma força séria. Em seu lugar, estão sendo forçados a confiar na misericórdia da Rússia na Síria e Putin explorará isto para tirar o máximo de proveito da situação.

Em escala mundial, o evidente declínio do imperialismo EUA vai abrir um período de instabilidade com cada vez mais regimes, aliados ou não, tentando desempenhar um papel mais independente. Impressionado com o poder de fogo da Rússia na Síria, o Ocidente está lutando para circunscrevê-lo na Europa Oriental e em outros lugares. A China também está nos bastidores, esperando para entrar em cena em certa etapa. Tudo isto, sem dúvida, leva a maiores tensões e conflitos entre as nações, mas também a revoluções e contrarrevoluções, exatamente como a decadência do imperialismo britânico serviu para animar os movimentos revolucionários de massa em todo o mundo.

A crise do capitalismo se impõe em todos os níveis, econômico, social e político, mas também nos níveis militares e diplomáticos que, por sua vez, realimentam a situação geral. A guerra civil síria incorpora esta crise em todos os níveis. As contradições do capitalismo mundial estão todas concentradas dentro das fronteiras da Síria. A situação síria coloca de forma muito acentuada a opção diante da humanidade: Socialismo ou Barbárie.

No entanto, embora a reação esteja montada no cavalo na Síria neste momento, contracorrentes revolucionárias estão sendo preparadas em toda a região e além. A resposta à confusão criada no Oriente Médio pelas intervenções imperialistas está nas mãos dos trabalhadores da região, em particular das poderosas classes trabalhadoras egípcia, turca e iraniana. Um poderoso movimento destes trabalhadores pode mudar todo este conjunto de coisas, e tivemos uma amostra do que pode ser uma volta a 2011 no movimento de derrubada de Mubarak, no movimento de 2009 no Irã e nos gigantescos protestos na Turquia em torno dos acontecimentos do Parque Gezi.

Esses movimentos inevitavelmente vão se repetir no futuro. A chave é construir as forças que conduzam estes movimentos a sua conclusão lógica, a derrubada deste sistema enfermo e de toda a barbárie que ele implica.

4 de fevereiro de 2016