Forças armadas alemãs avançam para dentro da Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial / Imagem: Hulton Archive

Sobre a questão ucraniana

O artigo a seguir foi publicado originalmente na revista “América Socialista – Em Defesa do Marxismo” número 20, de abril de 2022.

A questão ucraniana1, que muitos governos e tantos “socialistas” e mesmo “comunistas” têm tratado de esquecer ou relegar às profundidades da história, acha-se novamente na ordem do dia, desta vez com força redobrada. O recente agravamento da questão ucraniana relaciona-se intimamente com a degeneração da União Soviética e da Comintern, os êxitos do fascismo e a iminência de uma nova guerra imperialista. Crucificada por quatro Estados, a Ucrânia ocupa agora no destino da Europa a mesma posição que uma vez ocupou a Polônia, com a diferença de que as relações mundiais atualmente são realmente muito mais tensas e os ritmos do processo muito mais acelerados. No futuro imediato, a questão ucraniana está destinada a jogar um papel importante na vida europeia. Por alguma razão Hitler propôs tão ruidosamente a criação de uma “Grande Ucrânia”; e foi também por algo que deixou de lado esta questão com tão cauta rapidez.

A Segunda International, exprimindo os interesses da burocracia e da aristocracia operária dos Estados imperialistas, ignorou completamente a questão ucraniana. Inclusive a sua ala esquerda não lhe dedicou a necessário atenção. Basta lembrar que Rosa Luxemburgo, apesar de seu intelecto brilhante e do seu espírito genuinamente revolucionário, julgou admissível afirmar que a questão ucraniana era invenção de um punhado de intelectuais. Esta posição deixou uma profunda marca até no próprio Partido Comunista Polonês. Os dirigentes oficiais da seção polaca da Comintern viram a questão ucraniana mais como um empecilho do que como um problema revolucionário. Daí vêm as constantes tentativas oportunistas de desviar esta questão, suprimi-la, passá-la silenciosamente por alto ou postergá-la para um futuro indefinido.

O Partido Bolchevique, não sem dificuldade e apenas gradualmente sob a pressão constante de Lênin, pôde adquirir um enfoque correto da questão ucraniana. O direito à autodeterminação, ou seja, à separação, foi estendido igualmente por Lênin tanto para os poloneses quanto para os ucranianos. Ele não reconhecia nações aristocráticas. Ele considerava toda tentativa de evadir ou postergar o problema de uma nacionalidade oprimida a expressão do chauvinismo grão-russo.

Após a tomada do poder, teve lugar no partido uma séria luta pela solução dos numerosos problemas nacionais herdados da velha Rússia czarista. No seu carácter de comissário do povo para as nacionalidades, Stalin representou invariavelmente a tendência mais burocrática e centralista. Isto tornou-se especialmente evidente na questão da Geórgia e na da Ucrânia2. Até hoje, a correspondência sobre estas questões não foi publicada. Esperamos poder editar a pequena parte do que temos. Cada linha das cartas e propostas de Lênin vibram com a urgência de conformar na medida do possível aquelas nacionalidades que foram oprimidas no passado. Em troca, nas propostas e declarações de Stalin, destacava-se invariavelmente a tendência para o centralismo burocrático. Com o fim de garantir “necessidades administrativas”, quer dizer, os interesses da burocracia, as mais legítimas reclamações das nacionalidades oprimidas foram declaradas manifestações de nacionalismo pequeno-burguês. Estes sintomas já podiam ser percebidos bem cedo, em 1922-1923. Desde essa altura, tiveram um monstruoso crescimento, levando a uma completa asfixia qualquer tipo de desenvolvimento nacional independente dos povos da URSS.

Na concepção do velho Partido Bolchevique, a Ucrânia Soviética foi destinada a se converter no poderoso eixo à volta do qual se uniriam as outras seções do povo ucraniano. Durante o primeiro período da sua existência, é indiscutível que a Ucrânia Soviética foi uma poderosa força de atração a respeito das nacionalidades, além de estimular a luta dos operários, dos camponeses e da intelectualidade revolucionária da Ucrânia Ocidental escravizada pela Polônia. Mas, durante os anos da reação termidoriana, a posição da Ucrânia Soviética e, com ela, a colocação da questão ucraniana em seu conjunto, mudou bruscamente. Quanto mais profundas foram as esperanças despertadas, mais tremendas foram as desilusões.

A burocracia também estrangulou e saqueou o povo da Grande Rússia. Mas, nas questões ucranianas as coisas complicaram-se ainda mais pelo massacre das esperanças nacionais. Em nenhuma outra parte, as restrições, purgas, repressões e, em geral, todas as formas de palhaçadas burocráticas assumiram dimensões tão assassinas como na Ucrânia, ao tentar esmagar os poderosos anseios de maior liberdade e independência profundamente arreigados nas massas. Para a burocracia totalitária, a Ucrânia Soviética tornou-se uma divisão administrativa da unidade econômica e de uma base militar da URSS. Que não fique qualquer dúvida: a burocracia de Stalin erige estátuas à memória de Shevchenko, mas o faz apenas como fim de esmagar mais minuciosamente o povo ucraniano sob o seu peso e obrigá-lo a cantar hinos à camarilha violadora do Kremlin no idioma do Kobzarii.

A respeito das partes da Ucrânia que hoje estão fora das suas fronteiras, a atitude atual do Kremlin é a mesma que para com todas as nacionalidades oprimidas, colônias e semicolônias: são moedas de troca nas suas combinações internacionais com os governos imperialistas. No recente 18º Congresso do “Partido Comunista”, Manuilski, um dos mais repugnantes renegados do comunismo ucraniano, explicou com bastante franqueza que não só a URSS, como também a Comintern (a “falsa-união”, segundo Stalin), se negavam a lutar pela emancipação dos povos oprimidos desde que seus opressores não fossem inimigos da camarilha moscovita no poder. Stalin, Dimitrov e Manuilski atualmente defendem a Índia contra o Japão, mas não contra a Inglaterra. Os burocratas do Kremlin estão prontos a ceder definitivamente a Ucrânia Ocidental à Polônia em troca de um acordo diplomático que lhes pareça proveitoso. Estamos longe dos dias em que não se atreviam mais que a episódicas combinações.

Não sobra rastro da confiança anterior e simpatia das massas ucranianas pelo Kremlin. Desde a última “purga” assassina na Ucrânia, ninguém no Ocidente quer passar a fazer parte da satrapia do Kremlin, que continua levando o nome de Ucrânia Soviética. Como massas operárias e camponesas da Ucrânia Ocidental, da Bucovina, dos Cárpatos ucranianos, estão confundidas: a quem recorrer? O que pedir? Esta situação desvia naturalmente a liderança para as camarilhas ucranianas mais reacionárias, que exprimem o seu “nacionalismo” tentando vender o povo ucraniano a um ou outro imperialismo em pagamento de uma promessa de independência fictícia. Nesta trágica confusão, Hitler baseia sua política na questão ucraniana. Já dissemos uma vez: se não fosse por Stalin (por exemplo, a política fatal da Comintern na Alemanha), não haveria Hitler. A isso pode acrescentar-se agora: se não fosse pela violação da Ucrânia Soviética por parte da burocracia stalinista, não haveria política hitlerista na Ucrânia.

Aqui não vamos demorar analisando os motivos que levam Hitler a descartar, ao menos por um tempo, a palavra de ordem da “Grande Ucrânia”. Estes motivos devem ser procurados, por um lado, nas combinações fraudulentas do imperialismo germânico e, por outro, no medo de evocar um espírito maligno que poderia ser difícil de exorcizar. Hitler presenteou os sanguinários húngaros com os Cárpatos ucranianos. Embora não o fizesse com a aprovação expressa de Moscou, ao menos o fez com a segurança de que esta aprovação haveria de chegar no futuro. É como se Hitler tivesse dito a Stalin: “Se eu estivesse me preparando para atacar a Ucrânia soviética amanhã, teria mantido os Cárpatos nas minhas mãos”. Em resposta, Stalin, no 18º Congresso, saiu abertamente em defesa de Hitler contra as calúnias das “democracias ocidentais”: Hitler tenta atacar Ucrânia? Nada disso! Lutar contra Hitler? Não há um menor razão para fazer tal. Obviamente, Stalin interpreta como um ato de paz a entrega dos Cárpatos ucranianos à Hungria.

Isto significa que parte do povo ucraniano se tornou moeda de troca para os cálculos internacionais do Kremlin. A Quarta Internacional deve compreender com clareza a enorme importância da questão ucraniana, não apenas no destino do Leste e Sudeste europeus, mas da Europa em seu conjunto. Trata-se de um povo que demonstrou a sua viabilidade, numericamente igual à população da França e que ocupa um território excepcionalmente rico e, aliás, da maior importação estratégica. A questão da sorte da Ucrânia está colocada em todo o seu alcance. Falta uma palavra de ordem clara e definida que corresponda à nova situação. Em minha opinião há na atualidade uma única palavra de ordem: por uma Ucrânia Soviética de operários e camponeses, unida, livre e independente.

Este programa está, acima de tudo, em irreconciliável contradição com os interesses das três potências imperialistas: Polônia, Roménia e Hungria. Só pacifistas irrecuperavelmente imbecis são capazes de julgar que a emancipação e unificação da Ucrânia pode levar-se a termo por meio de pacíficas conversas diplomáticas, referendos ou decisões da Liga das Nações etc. Com certeza, não são melhores as soluções propostas pelos “nacionalistas”, que consistem em se colocar em serviço de um imperialismo contra o outro. A tais aventureiros, Hitler deu-lhes uma impagável lição entregando (por quanto tempo?) os Cárpatos aos húngaros, que imediatamente exterminaram não poucos ucranianos leais. Enquanto a questão dependa do poderio militar dos estados imperialistas, a vitória de um bando ou outro só pode significar um novo desmembramento e uma vassalagem ainda mais brutal do povo ucraniano. O programa de independência da Ucrânia na época do imperialismo está direta e indissoluvelmente ligado ao programa da revolução proletária. Seria criminoso alimentar qualquer ilusão sobre outra possibilidade.

Mas, gritarão em coro os “amigos” do Kremlin: “a independência da Ucrânia Soviética significaria sua separação da URSS?”. Ao que respondemos: “O que isso tem de terrível?”. Nos é alheio o culto apaixonado pelas fronteiras estatais. Não sustentamos a posição de uma totalidade “una e indivisível”. Depois de tudo, inclusive a Constituição da URSS reconhece o direito dos seus povos federados à autodeterminação, quer dizer, à separação.

Assim, nem mesmo a própria oligarquia do Kremlin ousa negar tal princípio, embora só tenha vigência no papel. A mínima tentativa de apresentar abertamente a questão de uma Ucrânia independente significaria a imediata execução sob a acusação de traição. Mas é precisamente este desprezível equívoco, esta desapiedada perseguição de todo pensamento nacional livre, o que tem levado as massas trabalhadoras da Ucrânia, em grau muito maior do que como da Grande Rússia, a considerar monstruosamente opressivo o domínio do Kremlin. Diante de tal situação interna, é naturalmente impossível falar sobre a união voluntária da Ucrânia Ocidental à URSS, do modo como esta é atualmente. Em consequência, a unificação da Ucrânia pressupõe a libertação da Ucrânia Soviética da bota stalinista. Também nesta questão a camarilha bonapartista colherá o que tem semeado.

“Mas, isto não significaria o debilitamento militar da URSS?”, uivarão com horror os “amigos” do Kremlin. Respondemos que o debilitamento da União Soviética se deve às tendências centrífugas em crescimento permanente geradas pela ditadura bonapartista. Em caso de guerra, o ódio das massas à camarilha governante pode levar ao colapso das conquistas de Outubro. A fonte dos sentimentos derrotistas acha-se no Kremlin. Em troca, uma Ucrânia Soviética independente se converteria, embora fosse apenas por interesse próprio, num poderoso baluarte sul ocidental da URSS. Quanto mais rápido seja socavada, derrubada, esmagada e varrida a atual casta bonapartista, mais firme se tornará a defesa da República Soviética e mais seguro estará o seu futuro socialista.

Naturalmente, uma Ucrânia de operários e camponeses independente poderia logo unir-se a Federação Soviética; mas voluntariamente, sob condições que ela mesma julgasse aceitáveis, o que por sua vez pressupõe uma regeneração revolucionária da URSS. A autêntica emancipação do povo ucraniano é inconcebível sem uma revolução ou uma série de revoluções no Oeste, que possam conduzir, em última instância, à criação dos Estados Unidos Soviéticos da Europa. Uma Ucrânia independente poderia unir-se a esta federação como membro igualitário e indubitavelmente o faria. A revolução proletária na Europa, por seu turno, não deixaria em pé nem uma pedra da repugnante estrutura do bonapartismo estalinista. Nesse caso, seria inevitável a estreita união dos Estados Unidos Soviéticos da Europa e a URSS regenerada, e isto representaria infinitas vantagens para os continentes europeus e asiáticos, incluindo, obviamente, a Ucrânia. Mas, aqui já estamos nos desviando para questões de segunda ou terceira ordem. A questão de primeira ordem é a garantia revolucionária da unidade e independência da Ucrânia dos operários e camponeses na luta contra o imperialismo, de uma parte, e contra o bonapartismo moscovita, de outra.

A Ucrânia é especialmente rica em experiências de falsos caminhos de luta para atingir o emancipação nacional. Ali todo foi testado: a Rada [governo] pequeno-burguesa e Skoropadskyi, Petliura, uma “aliança” com os Hohenzollern e combinações com a Entente3. Após estes experimentos, só cadáveres políticos podem continuar depositando esperanças em qualquer fracção da burguesia ucraniana como líder da luta nacional pela emancipação. Somente o proletariado ucraniano pode realizar essa tarefa revolucionária em essência, mas também tomar a iniciativa para conquistar esta solução. O proletariado e só o proletariado pode congregar à sua volta as massas camponesas e a intelectualidade nacional genuinamente revolucionária.

No começo da última guerra imperialista, Melenevski (“Basok”) e Skoropis-Yeltujovski tentaram colocar o movimento de libertação ucraniano sob a ala de Ludendorff, general dos Hohenzollern. Para isso, disfarçaram-se de esquerdistas. Os marxistas revolucionários os expulsaram com um pontapé. Eis a forma como devem agir os revolucionários no futuro.

A iminente guerra criará uma atmosfera favorável a todo o tipo de aventureiros, caçadores de milagres e buscadores do Velocino de Ouro. Estes cavalheiros, que têm especial preferência por aquecer as mãos no fogo da questão nacional, não devem ser admitidos nas fileiras do movimento operário. Nem o mais mínimo compromisso com o imperialismo, seja fascista ou democrático! Nem a mais mínima concessão aos nacionalistas ucranianos, sejam clerical-reacionários ou liberal-pacifistas! Não à “Frente Popular”! Completa independência do partido proletário como vanguarda dos trabalhadores!

Penso que esta é a política correta para a questão ucraniana. Falo aqui pessoalmente e em meu próprio nome. Há que abrir a discussão internacional sobre o tema. O primeiro lugar nesta discussão corresponderá aos marxistas revolucionários ucranianos. Nós os escutaremos com grande atenção. Mas, convém se apressar! Resta pouco tempo para os preparativos.

22 de abril de 1939

  1. Uma questão ucraniana. Apelo Socialista, 9 de maio de 1939, onde é intitulado “O problema da Ucrânia”. A política que propõe é muito mais explicada em Escritos, Tomo XI (1939-1940). ↩︎
  2. No verão de 1922 surgiram desacordos sobre a maneira com que a Rússia controlava as repúblicas não russas da Federação Soviética. Stalin defendia apresentar uma nova Constituição, muito mais centralista que a sua antecessora de 1918, que restringia os direitos das nacionalidades não russas transformando a Federação de Repúblicas Soviéticas numa União Soviética, ao qual se opunham com toda a força os georgianos e os ucranianos. Lênin, desta vez, apoiou Stalin. Mas, em dezembro de 1922, depois de receber o relatório de uma comissão de inquérito independente que tinha enviado à Geórgia, mudou de opinião sobre os acontecimentos nesse região. Propôs então que os direitos dos georgianos, ucranianos e outras nacionalidades não russas eram mais importantes que as necessidades de centralização administrativa que propunha Stalin. Lênin exprimiu esta opinião no seu artigo “Sobre a questão nacional e a ‘autonomização’” (Obras Completas, T. 36). ↩︎
  3. Taras Shevchenko (1814-1861): poeta ucraniano que chegou a ser considerado o pai da literatura nacionalista do seu país. Fundou uma organização para promover a igualdade social, a abolição da escravatura etc. Continua a ser o símbolo das aspirações e objetivos do povo ucraniano. Kobzar foi seu primeiro livro de poesias (publicado em 1840), considerado como uma das maiores obras da literatura ucraniana. O título foi tomado de um antigo instrumento de cordas e simboliza a variada herança ucraniana. ↩︎