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10 anos depois: lições da Revolução Egípcia (parte 1)

Entre os países cujas massas participaram do que ficou conhecido como a Primavera Árabe, a Revolução Egípcia é, talvez, a mais rica em lições, como também em perspectivas para o futuro imediato. Esse artigo fornece um balanço da revolução e suas consequências, dez anos depois, e explica as perspectivas revolucionárias para o Egito hoje.

“Se o povo um dia decidir viver, então o destino deve obedecer.” – Abul Qasem Al-Shabi

“E, definitivamente, haverá uma geração “Diferente das outras”, que entende quando vê e não teme quando entende…” – Abdul Rahman El-Abnudi

Em 25 de janeiro de 2011, centenas de milhares de egípcios saíram às ruas em um protesto sem precedentes contra o regime tirânico de Hosni Mubarak. A data do protesto foi escolhida para coincidir com um dia nacional de celebração em homenagem à força policial egípcia – como um sinal de desafio contra o odiado estado policial de Mubarak.

Na verdade, ele foi inspirado pelos eventos notáveis ocorridos ao longo da costa norte-africana, na Tunísia, no mês anterior. Lá, um movimento revolucionário de massa derrubou a ditadura de Zine El-Abidine Ben Ali, depois de apenas três semanas de enormes protestos, com o governante que liderou o país por 23 anos e acabou fugindo  para o exílio na Arábia Saudita.

O que se seguiu no Egito foi uma revolução em escala ainda maior. Dezoito dias de luta de massas levaram à queda a ditadura de Mubarak de 29 anos que, para muitos, nunca teria fim. Este foi um golpe sísmico desferido contra a classe dominante egípcia, que colocou todo o aparato estatal de joelhos, e levou dezenas de milhões de trabalhadores e jovens à atividade política pela primeira vez.

A onda de revolução se espalhou da Tunísia e Egito para todo o Oriente Médio – da Líbia à Síria, do Iêmen ao Bahrein, da Palestina ao Líbano, a um Iraque ainda devastado pela guerra imperialista. Entre os países cujas massas participaram do que ficou conhecido como a Primavera Árabe, a Revolução Egípcia é talvez a mais rica em lições, bem como em perspectivas para o futuro imediato. Os movimentos na Líbia e na Síria não conseguiram mobilizar uma onda de apoio da classe trabalhadora antes que a intromissão imperialista ocorresse em uma direção totalmente reacionária. As massas iemenitas estão agora em uma situação terrível, com a Arábia Saudita travando guerra no país, apoiada por várias potências imperialistas – e o envolvimento direto do Exército egípcio, entre outros. Trabalhadores e jovens no Bahrein certamente desenvolveram novas tradições revolucionárias que não desapareceram. Trabalhadores e jovens tunisianos elevaram suas orgulhosas tradições de luta a um nível mais alto por meio da experiência de 2011, e a última crise econômica os trouxe às ruas mais uma vez. O Iraque e a Palestina são países com problemas complexos, criados pelo imperialismo, mas ambos viram os movimentos de protesto em massa retornarem, ao longo dos anos, desde a Primavera Árabe. O Líbano, por sua vez, experimentou movimentos revolucionários nos últimos anos.

O Egito, porém, é um país, cujo processo de três anos de revolução e contrarrevolução (entre 2011 e 2014), tem um significado especial. O país sempre foi estratégico para o mundo árabe. Tem a maior população de língua árabe do mundo e a maior classe trabalhadora do Oriente Médio. Foi o Egito que liderou o projeto de pan-arabismo por meio do presidente Gamal Abdel Nasser, em meados do século 20. Nasser era um nacionalista de esquerda, cuja retórica revolucionária e socialista fez dele o homem mais popular na maioria dos países árabes e do Oriente Médio. Sua enorme popularidade demonstrou o potencial para políticas internacionalistas em mais de 20 países unidos por uma língua comum. Uma revolução socialista bem-sucedida no Egito transformaria a situação em toda a região.

Mas a Revolução Egípcia ainda não foi realizada até o fim. Embora as massas tenham lutado repetidamente para acabar com a velha ordem de repressão e exploração de classe, uma nova ditadura se entrincheirou no poder por enquanto, apoiada no mesmo antigo regime militar-burocrático. No entanto, as condições que criaram os eventos explosivos de 2011 não foram embora. No mínimo, as crises econômicas, sociais e políticas enfrentadas pela classe dominante egípcia hoje são muito maiores do que há uma década.

Então, como nós chegamos aqui? Como foi que, em menos de dois anos, após a derrubada de Mubarak – durante os quais o Egito viu greves e protestos de rua em uma escala nunca antes vista – as massas egípcias ficaram presas a um novo presidente que exercia os mesmos poderes ditatoriais de seu antecessor? Na verdade, Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, chegou ao ponto de remover os últimos resquícios formais das políticas pró-trabalhador de Nasser da Constituição egípcia e da lei eleitoral. E como, após uma nova onda de revolução (talvez o movimento de massa mais popular da história em relação ao tamanho do país), que derrubou Morsi e a Irmandade Muçulmana e foi virtualmente varrida do mapa político, as massas agora parecem estar de volta de onde haviam começado?

Muito se escreveu sobre a superficialidade da Revolução Egípcia. O que é essencial é que tiremos as principais lições dos processos e eventos dentro da revolução, que podem ser aplicadas à situação no Egito hoje – e, de forma mais vital, ao retorno do movimento revolucionário nos próximos anos.

A revolução não conhece fronteiras

Não é por acaso que a onda de revolução se espalhou tão rapidamente da Tunísia ao Egito. Além dos aspectos de cultura compartilhados pelos dois países, ambos tinham as mesmas condições socioeconômicas fundamentais e condições políticas que criaram suas respectivas revoluções. Uma vez que as massas tunisianas mostraram aos egípcios que era possível, não havia como voltar atrás. Como disse um manifestante de rua no Cairo em 25 de janeiro: “Os tunisianos não costumavam protestar. Eles eram ainda mais controlados do que nós. Agora olhe para eles.1 Ativistas tunisianos aprovaram técnicas para tratar queimaduras provocadas por gás lacrimogêneo infligidas pela polícia a jovens e trabalhadores egípcios; mais significativamente, eles também transmitiram o slogan que ecoaria em todo o Oriente Médio nos próximos meses: “O povo quer a queda do regime”.

A luta no Egito foi inspirada por movimentos revolucionários em todo o mundo Foto: Kodak Agfa
Afirma-se que o movimento anti-austeridade na Grécia, centrado na Praça Syntagma, em Atenas, ajudou a inspirar a tomada da Praça Tahrir (a praça central no Cairo adjacente ao Ministério do Interior) pela revolução. As táticas adotadas por jovens e trabalhadores egípcios levaram então a movimentos ao redor do mundo, da Nigéria à América Latina, fazendo seus próprios ‘Tahrirs’. Ainda em outubro de 2020, Bagdá viu um protesto ocupando sua própria Praça Tahrir para apresentar demandas sociais, com várias tendas hospedando reuniões políticas, fornecendo suprimentos e tratando os feridos de batalhas de rua com a polícia, assim como no Cairo durante a revolução.

Mas o despertar político das camadas avançadas da juventude, envolvidas nos primeiros dias da Revolução Egípcia veio, na verdade, da segunda Intifada Palestina, em 2000, que gerou consideráveis protestos de solidariedade no Egito. Esta foi a primeira vez que muitos jovens e trabalhadores puderam testar sua força contra as medidas repressivas do regime. Foi também um protesto de solidariedade contra a invasão do Iraque, em 2003 (e a recusa de Mubarak em condená-la) que levou à tomada da Praça Tahrir por ativistas políticos pela primeira vez, desde 1972. Esses eventos, embora pequenos e relativamente sem importância em si mesmos, marcaram o redespertar político da juventude egípcia.

Além disso, o ímpeto de uma revolução bem-sucedida no Egito poderia catalisar uma mudança radical para os vizinhos Israel/Palestina e Líbia, cujas próprias classes trabalhadoras estão atualmente sob o domínio da reação social e política. Uma nova fase da Revolução Egípcia também poderia reviver os movimentos recentes na Argélia, Tunísia e Sudão, em um nível superior. Também não é coincidência que o movimento Gezi Park, na Turquia, tenha se desenvolvido na época de um aumento da luta de classes no Egito, culminando no movimento para derrubar a Irmandade Muçulmana no final de junho de 2013.

Assim como a Revolução Russa desencadeou uma onda de revoluções em toda a Europa no final da Primeira Guerra Mundial, a revolução no Egito ilustra os instintos internacionalistas das classes trabalhadoras do mundo. A Primavera Árabe (incluindo sua “nova onda” nos últimos dois anos) mostrou como a revolução social pode se espalhar facilmente de um país para outro. Além disso, os bolcheviques na Rússia contavam com o sucesso da Revolução Alemã para realimentar seus ganhos para a jovem União Soviética, a fim de tirar os trabalhadores e camponeses russos de condições de atraso assustadoras. Da mesma forma, a vitória da Revolução Egípcia acabaria por depender de revoluções bem-sucedidas nos países capitalistas avançados. Mas em um cenário em que a classe trabalhadora egípcia fosse capaz de tomar o poder, a propagação da revolução pelo mundo estaria muito marcada. Do jeito que foi, a Revolução Egípcia emitiu ondas de choque ao redor do mundo, e é avidamente estudada por trabalhadores e jovens em todos os lugares. Se ela tivesse alcançado os objetivos finais dos egípcios oprimidos e explorados, imagine o farol de inspiração que forneceria para o mundo!

O papel da classe trabalhadora

A Revolução Egípcia, assim como a Primavera Árabe em geral, quase sempre é  apresentada, principalmente, como um movimento liderado pela juventude, que reuniu todos os setores da sociedade egípcia através da divisão de classes. Como na maioria das outras revoluções árabes, esta é uma distorção dos eventos a fim de minimizar o conteúdo de classe subjacente à luta. É  verdade que o movimento, como outros na Primavera Árabe e em todo o mundo na última década, teve uma composição muito jovem. Mais de 60% dos egípcios têm menos de 30 anos. Também é importante ressaltar que, dada a grande proporção de egípcios envolvidos na revolução e a composição de classe da sociedade egípcia, a maioria desses jovens teria vindo da classe trabalhadora, e muitos estão desempregados e procurando trabalho.

Embora 25 de janeiro de 2011 seja corretamente celebrado como o dia histórico em que as massas egípcias assumiram o controle de seus próprios destinos, o evento que deu início ao processo da Revolução Egípcia realmente ocorreu alguns anos antes. Em 6 de abril de 2008, houve uma greve em massa na cidade industrial de Mahalla – iniciada por uma disputa industrial em curso na Misr Spinning and Weaving Company (uma das maiores fábricas da África, com mais de 25 mil trabalhadores) – que adquiriu um caráter de insurreição. Apesar da forte repressão policial, grevistas, em várias fábricas, ocuparam efetivamente a cidade por vários dias, com grandes protestos de solidariedade ocorrendo em todo o país.

Foi a partir dessa greve que um dos principais grupos organizadores dos protestos de rua de janeiro de 2011 (Movimento 6 de Abril) assumiu o seu nome. Eles também adotaram uma reivindicação fundamental daquele movimento de greve – um salário-mínimo nacional de 1.200 EGP (US$ 200, aproximadamente) – como uma das reivindicações iniciais dos protestos. Antes de 25 de janeiro, as demandas eram:

  • Dissolução do parlamento e realização de novas eleições legítimas;
  • Um limite de dois mandatos para a presidência;
  • Cancelamento das Leis de Emergência (que dão cobertura legal para a repressão estatal) e demissão do ministro do Interior Habib Al-Adly;
  • Por um salário-mínimo mensal de 1.200 EGP e seguro-desemprego.

Claro, a força do movimento superou essas demandas antes mesmo de 25 de janeiro chegar, indo além das reformas para a revolução total.

A inclusão de uma demanda dos trabalhadores, ao lado das demandas democráticas básicas dos primeiros protestos, aponta para o papel dos trabalhadores dentro do movimento revolucionário. Os trabalhadores organizados estiveram envolvidos nos protestos de rua e na praça desde o início. Ao mesmo tempo, esses protestos envolveram várias camadas da sociedade – foi uma revolução popular, afinal. No entanto, foi a entrada em cena da classe trabalhadora como um todo, afirmando seu papel de classe, que levou o movimento dos 18 dias à sua conclusão revolucionária.

A greve de massas em Mahalla foi, na verdade, o culminar de um crescimento do movimento operário no Egito que começou no final de 2006. O movimento cresceu para incluir, pelo menos em parte, todos os principais setores da economia e a maioria das áreas industriais do país – através do Delta do Nilo, a região do canal, Alexandria e Cairo. Tudo começou organicamente com protestos violentos e greves contra o impacto das privatizações em massa do início dos anos 2000 em diante, sobre os salários e as condições dos trabalhadores. Entre 2007 e 2010, ocorreram mais de 2.100 incidentes separados de greves e protestos de trabalhadores – mais do que o dobro do número em todos os dez anos anteriores.

Essas ações ocorreram fora das estruturas da Federação Sindical do Egito (ETUF), controlada pelo regime. As ações dos trabalhadores da Fiação e Tecelagem Misr, antes de 6 de abril de 2008, incluíram uma campanha de demissões em massa da ETUF, que havia se envolvido na tentativa de reprimir as greves. Na maioria dos locais de trabalho onde ocorreram greves e protestos, os trabalhadores organizaram seus próprios comitês de greve independentes – eleitos por grevistas com direito de revogação – e muitos deles se uniram para formar comitês distritais. Alguns dos comitês de greve, como os comitês de coletores de impostos de propriedade e professores, desenvolveram-se em sindicatos de pleno direito, independentes do estado antes da revolução. Para a maioria dos grupos de trabalhadores, entretanto, não foi possível estabelecer estruturas sindicais formais, além da própria greve, até depois da revolução.

Em 6 de fevereiro de 2011, com Mubarak ainda agarrado ao poder, uma onda de greves começou em todo o Egito, paralisando setores estratégicos da economia. Trabalhadores das empresas de telecomunicações, fábricas de petróleo, hospitais, fábricas militares, universidades, gráficas e até mesmo do canal de Suez, responderam ao apelo da revolução em massa. Nesse ponto, o epicentro revolucionário no Cairo havia chegado a uma espécie de impasse, já tendo derrotado a segurança do Estado nas ruas, mas sem mais influência para estrangular a classe dominante até a submissão. As greves de massa, não apenas permitiram que a classe trabalhadora assumisse o controle da situação e quebrasse o controle do regime sobre a sociedade em termos práticos, como também ajudaram a generalizar a revolução, espalhando o apoio a ela por todos os subúrbios e centros industriais do país. O fato dos trabalhadores do transporte público entrarem em greve em 9 de fevereiro,  sinalizou o fim do regime de Mubarak. Ele se foi em três dias. Uma média de 60 novas greves por dia ocorreram após sua remoção.

Os trabalhadores continuaram a ter a chave para o progresso da revolução a partir de então. Quando uma seção da juventude revolucionária voltou à Praça Tahrir em julho de 2011 para um protesto de um mês, eles acabaram sendo superados em número pelos islâmicos, sem nenhuma base real de apoio para se sustentar, nenhuma demanda real e nenhum direcionamento. Seu objetivo inicial de remover Mubarak havia sido alcançado, mas seus companheiros ainda estavam administrando a transição de poder e, agora, a questão de sua demanda por democracia foi colocada diretamente a eles, que não tinham uma resposta. Eles acabaram exaustos, não tendo conseguido nada de concreto durante aquele mês. Em contraste, nos subúrbios e províncias, outra onda de greves chegou em setembro, da qual 500 mil trabalhadores participaram. Na maioria dos casos, eles conquistaram com facilidade a aceitação de suas demandas, não apenas de salários mais altos, mas também da eliminação da gestão do local de trabalho. Na verdade, muitas vezes não se tratava de demandas sendo aceitas, mas de pegar o que era deles por direito.

Da mesma forma, enquanto os protestos anti-Morsi superaram em número os protestos pró-Irmandade Muçulmana no final de 2012, foram novamente os trabalhadores que quebraram o impasse da luta com uma onda sem precedentes de ações grevistas e protestos sociais no primeiro semestre de 2013. Esse foi o maior nível de participação na luta de classes que o Egito já viu. O aumento no movimento dos trabalhadores foi o verdadeiro segredo para a remoção de Morsi e da Irmandade do poder. É uma tragédia que aqueles que poderiam ter liderado este movimento em uma base de classe independente, em vez disso, entregaram sua autoridade revolucionária aos militares à frente da classe dominante, representada pela pessoa do ministro da Defesa, Abdel Fattah El-Sisi.

Após este episódio da revolução, o potencial para sindicatos independentes de massa, que começou a se cristalizar em 2011, desapareceu. Movimentos de greve e protestos de trabalhadores, embora ainda ocorrendo, começaram a diminuir em número e tamanho. A maioria das organizações de trabalhadores independentes que já se formaram, permaneceu pequena, sem um movimento real para crescer. Alguns sindicatos isolados foram reprimidos antes mesmo de serem efetivamente proibidos em 2017.

Mesmo assim, vários exemplos nos últimos anos mostraram a posição de força que a classe trabalhadora conquistou para si mesma. O equilíbrio de poder criado pela revolução significa que o regime é incapaz de enfrentá-la de frente. Greves de profissionais de saúde ocorreram em intervalos bastante regulares; o tratamento desastroso do regime em relação à pandemia irá apenas adicionar combustível a este fogo. Enquanto isso, os protestos de 2019, após as revelações sobre Sisi pelo magnata do setor imobiliário Mohamed Ali, reviveram os métodos de auto-organização nos centros industriais e a prontidão dos trabalhadores para apelar diretamente ao regime. Greves pela segurança dos trabalhadores, durante a pandemia, em canteiros de obras na nova capital administrativa do Egito no início deste ano, mostram o caminho a seguir para outros trabalhadores.

As massas podem governar a sociedade por si mesmas – melhor do que os capitalistas!

O tipo de esnobismo de classe que aparece em muitas análises pequeno-burguesas da Revolução Egípcia é tipificado por esta citação do acadêmico palestino Rashid Khalidi: “O que é óbvio é que o tipo de forças que organizaram a revolução não tem as habilidades para concorrer nas eleições. …2 Nem pensar! Muito longe disso! A experiência da Revolução Egípcia mostra que as massas egípcias são muito mais hábeis em realizar eleições democráticas, e concorrer nelas, do que os fantoches do regime burguês. De muitas maneiras, a revolução exemplificou o tipo de organização e gestão democrática que os trabalhadores e jovens egípcios precisariam para administrar a sociedade sem a classe dominante, e muito melhor do que a classe dominante!

A experiência da revolução mostrou que a classe trabalhadora é muito mais hábil em dirigir a sociedade do que a classe dominante Foto: Muhammad Ghafari
A Praça Tahrir foi um vislumbre microcósmico de uma sociedade dirigida por trabalhadores. Enquanto, em geral, as ruas das cidades egípcias estão cobertas de poeira e lixo, a praça ocupada estava invariavelmente imaculada, apesar de receber até dois milhões de manifestantes ao mesmo tempo. Isso porque, ao contrário das ruas em tempos normais,  as massas sentiam propriedade e controle sobre o espaço, e investiram em mantê-lo nas melhores condições possíveis. Clínicas móveis e unidades de triagem eram administradas por médicos e enfermeiras que haviam aderido à revolução, enquanto alimentos e outros suprimentos eram distribuídos com eficiência especializada. As unidades de saneamento foram administradas com a máxima higiene, enquanto as áreas eram montadas para exibição de filmes, discussões políticas, e palcos realizavam comícios e shows improvisados.

Depois que as forças de segurança do Estado foram derrotadas no “Dia da Fúria” de 28 de janeiro e deixaram as ruas, os revolucionários instalaram seus próprios postos de controle de segurança ao redor da praça, com rodízio de turnos. Todos os que puderam se empenharam na guarda da fortaleza da revolução. Comitês de bairro surgiram em todo o Egito para guardar prédios de apartamentos à noite, principalmente para garantir que os bairros não fossem infiltrados por forças de segurança à paisana, ou por bandidos contratados pelo regime. O assédio nas ruas era inexistente dentro do movimento revolucionário – um contraste marcante da vida cotidiana para a maioria das mulheres egípcias, que descobrem que a polícia, geralmente, vem em auxílio dos assediadores, quando eles são denunciados.

No movimento dos trabalhadores, os comitês de greve eram controlados pelos próprios trabalhadores em greve, normalmente, sem qualquer envolvimento da ETUF – cuja burocracia era impotente para atuar como um freio nas enormes ondas de greves e protestos que impulsionavam a revolução. A demissão em massa de gerentes e patrões opressores em todo o Egito foi conseguida exclusivamente pela organização de baixo, e os patrões foram substituídos em alguns locais de trabalho por versões embrionárias de controle operário.

Em nível local, as massas estavam tomando as rédeas da sociedade em suas próprias mãos, mas nunca tiveram a oportunidade de realizar esse poder em um nível superior durante o curso da Revolução Egípcia. No entanto, eles agora são tradições pertencentes à classe trabalhadora egípcia que não desaparecerão simplesmente – eles retornarão junto ao próximo movimento de massa.

A questão das mulheres transformada por uma situação revolucionária

Uma característica especialmente notável da Revolução Egípcia foi o papel proeminente desempenhado pelas mulheres. As mulheres no Egito são extremamente oprimidas. Muitos dificilmente têm permissão para sair de casa, exceto para trabalhar, enquanto outras podem esperar assédio ou abuso nas ruas e / ou em casa regularmente. Poucas mulheres têm controle total sobre seus próprios corpos, pois estão sujeitas a um alto grau de repressão sexual.

Foi notável, então, que quase 50% das pessoas nas ruas durante a revolução eram mulheres. Quase o mesmo percentual se refletiu especificamente no movimento operário. Na primeira greve dos trabalhadores têxteis em Mahalla, em dezembro de 2006 – que provavelmente deu início à cadeia de eventos que levou à revolução – as trabalhadoras deixaram seus postos de trabalho e começaram a gritar: “Aqui estão as mulheres! Onde estão os homens?3Da mesma forma, de toda a cobertura de mídia social da revolução, a postagem que mais capturou a imaginação das massas foi um vídeo do YouTube de uma jovem mulher com véu chamada Asmaa Mahfouz, na véspera do levante de 25 de janeiro. Nele, ela exortou outros egípcios – especialmente homens – a saírem às ruas com ela em uma explosão de retórica sincera. Ela sugeriu que as massas egípcias poderiam “ter liberdade, justiça, honra e dignidade humana, não viver como animais”.4

A razão de não haver assédio dentro do movimento revolucionário não foi porque os homens, condicionados por uma sociedade, na qual a horrenda opressão das mulheres é ativamente encorajada, de repente, se tornaram feministas militantes. Foi porque as necessidades objetivas do movimento ditavam que poderia haver tolerância zero para tal comportamento. Os assédios e agressões sexuais foram armas da contrarrevolução organizada, perpetrados por pequenos bandos de marginais lumpen, que apareceram nas ruas a partir de fevereiro de 2011. Combater o assédio tornou-se um ato revolucionário.

As mulheres foram essenciais para o sucesso da revolução. Sem elas se sentindo fortalecidas como parte igual das manifestações de rua e movimentos de greve, não teria havido revolução. Os homens também aprenderam, com a experiência de lutar ao lado das mulheres na revolução, a tratá-las como iguais, enquanto milhares de mulheres adquiriam consciência política revolucionária. Foi dentro da atmosfera da revolução que muitas mulheres superaram um tabu social de longa data ao decidir remover o hijab que usavam em público desde a infância.

Claro, não devemos mitificar a Revolução Egípcia como uma utopia dos direitos das mulheres. Mesmo durante a revolução, o papel das mulheres na sociedade ainda era limitado por um atraso terrível. Em um relatório de 2013 sobre violência sexual contra mulheres, o Egito foi classificado como o pior, entre 22 países árabes, incluindo a Arábia Saudita, por número de atos de violência sexual relatados.

É notável, porém, que, à medida que o movimento revolucionário recuou, o papel das mulheres retrocedeu ainda mais. Tem havido uma repressão à “obscenidade” desde 2016, com várias dançarinas do ventre, atrizes e estrelas pop presas, após serem acusadas de usar roupas sexualmente sugestivas, ou fazer gestos sexuais em apresentações. Em muitos casos, as mulheres acabam na prisão.

Isso vale para os LGBT. Prisões em massa foram realizadas no Rainbow Concert, em 2017, onde uma banda libanesa, conhecida por seu público LGBT, estava se apresentando. Muitos dos presos foram torturados pela polícia, inclusive por sondagem anal.

Nenhum desses atos repressivos é um fenômeno particularmente novo no Egito, embora a frequência com que ocorrem aos olhos do público tenha aumentado nos últimos quatro anos da presidência de Sisi.

Tem havido uma contraofensiva por parte das mulheres – um movimento do tipo #MeToo, em grande parte, online),  que expõe estupradores e assediadores, especialmente entre os ricos e poderosos. Esse movimento ganhou uma concessão duvidosa do regime: uma força-tarefa policial liderada por mulheres foi criada para patrulhar as ruas, visando os assediadores. Sem uma base de classe, porém, não terá impacto sobre as mulheres pobres e da classe trabalhadora, que têm muito mais probabilidade de sofrer abusos sexuais dentro e fora de casa, sem meios para falar sobre isso. Para essas mulheres, foi a revolução que mostrou o caminho para a saída da opressão sistêmica. Sua libertação depende de sua vitória futura.

CONCLUI NA PARTE 2.

1 Liberation Square, Ashraf Khalil, St Martin’s Press (2011), p. 146

2 The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising, Gilbert Achcar, Saqi (2013), p. 286

3 Bread, Freedom, Social Justice: Workers and the Egyptian Revolution, Anne Alexander & Mostafa Bassiouny, Zed Books (2014), p. 102

4 Liberation Square, Ashraf Khalil, St Martin’s Press (2011), p. 131

TRADUÇÃO DE LUCIANA LEAL.
PUBLICADO EM MARXIST.COM