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30 anos depois: relembrando a cumplicidade do imperialismo francês no genocídio de Ruanda

Há três décadas, entre abril e julho de 1994, o governo de Ruanda organizou o extermínio de quase 1 milhão de pessoas pertencentes ao grupo étnico tutsi. Esse genocídio foi auxiliado e incentivado pelo governo francês, que financiou e armou os responsáveis, muitas vezes referidos como génocidaires. Mas, ainda hoje, a classe dominante francesa não reconheceu de forma plena e aberta sua responsabilidade por um dos crimes mais monstruosos do imperialismo francês.

A distinção entre hutus e tutsis estava originalmente enraizada nas relações de produção da Ruanda pré-colonial. Parece que esses termos designavam mais categorias sociais distintas do que grupos étnicos. Os hutus, que formavam a maioria da população, tendiam a ser cultivadores da terra, enquanto os tutsis eram principalmente criadores de gado, constituindo também a maior parte da classe dominante.

Quando o imperialismo alemão, e mais tarde o belga, assumiu o controle da região, os colonizadores se apoiaram no poder local pré-existente, dominado pelos tutsis. Conformando-se ao velho princípio de “dividir para governar”, apresentaram os tutsis como uma “raça” originária do Norte da África, superior aos “indígenas hutus”. Essa hierarquia racista foi ensinada nas escolas dirigidas por missionários católicos, onde as crianças hutus aprendiam que eram inferiores aos tutsis. Em 1931, a administração colonial introduziu um sistema de passes de identidade, que indicava a identidade do portador. Esse sistema, que permaneceu em vigor até 2003, facilitou o trabalho dos génocidaires em 1994.

Na década de 1950, um movimento de independência começou a se desenvolver em Ruanda. Como na maioria dos países colonizados, esse movimento de libertação se expressou mais notavelmente entre a pequena burguesia e as camadas educadas, compostas principalmente por tutsis. Em reação a esse movimento, o imperialismo belga mudou de tática e começou a favorecer o desenvolvimento de uma nova elite hutu.

Em novembro de 1959, a população hutu se levantou contra o poder dos tutsis com o apoio do poder colonial, a Bélgica, que acusou cinicamente os tutsis de oprimir os hutus. Ruanda foi então mergulhada em uma breve guerra civil, que culminou na ascensão ao poder de Grégoire Kayibanda, um hutu. Fugindo da perseguição, centenas de milhares de tutsis emigraram, principalmente para Uganda. Apoiado pela Bélgica e pela Igreja Católica, Kayibanda estabeleceu uma ditadura brutal, que manteve a divisão étnica instaurada pelo imperialismo belga.

Após a independência em 1962, Ruanda caiu progressivamente sob a dominação do imperialismo francês. Isso não alterou em nada a política racista do regime. No início dos anos 1970, para desviar a raiva das massas que se acumulava contra seu regime, Kayibanda lançou uma nova onda de perseguição contra os tutsis, que fugiram do país aos milhares.

Em julho de 1973, um golpe de Estado colocou Juvénal Habyarimana no poder com o apoio do imperialismo francês. Habyarimana continuou a usar os tutsis como bodes expiatórios, enquanto o país enfrentava cada vez mais problemas econômicos e sociais a partir da década de 1980, quando as quedas nos preços do café e do estanho atingiram a economia ruandesa.

Em 1987, os tutsis, vivendo no exílio, e os hutus. opositores ao regime de Habyarimana, fundaram a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) em Uganda, exigindo o fim da discriminação contra os tutsis. Confrontada por um regime cada vez mais desacreditado, a FPR estabeleceu uma ala armada e, em 1º de outubro de 1990, seus combatentes cruzaram para Ruanda a partir de Uganda e tomaram o controle de várias regiões na fronteira. Tomado pelo pânico, o regime ruandês imediatamente pediu ajuda ao imperialismo francês.

Para Paris, Ruanda tinha grande importância, em parte devido aos seus recursos naturais, mas sobretudo por causa de sua posição estratégica em uma região dominada pelo imperialismo dos EUA. A FPR, cujos líderes foram educados nos Estados Unidos e estabeleceram suas bases de retaguarda na Uganda anglófona, era percebida pelo governo francês como um peão de Washington e uma ameaça aos interesses franceses na África Central. Os imperialistas franceses também precisavam mostrar que estavam preparados para defender os regimes que permaneciam leais a eles, para dissuadi-los de procurar outros protetores. François Mitterrand, o presidente francês e amigo pessoal de Habyarimana, era um dos defensores mais fervorosos do apoio incondicional aos nacionalistas hutus.

O imperialismo francês precisava mostrar que estava preparado para defender aqueles regimes que permaneciam leais a ele / Imagem: domínio público

O governo francês, portanto, respondeu favoravelmente ao apelo dos líderes ruandeses por ajuda: enviou-lhes armas e instrutores militares. Um contingente de várias centenas de soldados franceses foi enviado a Kigali (a capital ruandesa), oficialmente para “proteger os cidadãos ocidentais”. Na realidade, os soldados franceses foram integrados em todos os níveis do exército ruandês e participaram diretamente dos combates contra a FPR. Eles também foram testemunhas – e às vezes cúmplices – do massacre de civis tutsis.

Para mobilizar a população hutu em seu favor, o governo ruandês acusou a FPR e os tutsis de quererem matar os hutus para tomar suas terras. Os excessos cometidos pelos guerrilheiros da FPR durante sua ofensiva apenas ajudaram a propaganda governamental. Fiel aos métodos de contraguerrilha ensinados pelos instrutores franceses, o exército ruandês distribuiu rádios em vilarejos por todo o país para garantir a disseminação de sua propaganda.

Uma avalanche interminável de ódio foi transmitida pelas ondas de rádio, chamando os tutsis de “baratas” e “o inimigo interno”. O regime também organizou a formação de milícias, que percorriam os vilarejos, realizando uma campanha de assassinatos. Segundo alguns testemunhos, essas milícias receberam treinamento de instrutores franceses. Durante toda a guerra, os serviços de inteligência franceses mantinham o governo regularmente informado sobre os massacres realizados pelo regime de Habyarimana.

Em agosto de 1993, os Acordos de Paz de Arusha foram assinados pela FPR e pelo governo ruandês em Arusha, Tanzânia, com a aprovação do imperialismo francês, que se esforçava para manter o controle do país enquanto encerrava uma guerra custosa. Esses acordos previam a saída das tropas francesas, o retorno dos exilados tutsis, a formação de um governo composto por hutus e tutsis, bem como a fusão das tropas pró-governo e da FPR em um único exército ruandês. Esse compromisso provocou a ira dos extremistas hutus, que acusaram Habyarimana de ter capitulado à FPR e clamaram abertamente por uma solução final para o “problema tutsi”. A maioria das tropas francesas deixou Ruanda em dezembro de 1993, mas os pontos restantes dos acordos não foram respeitados pelo governo ruandês.

Em 6 de abril de 1994, o avião que levava Habyarimana de volta à capital, Kigali, foi atingido por um míssil. Não houve sobreviventes e a localização exata de onde o míssil foi lançado nunca foi claramente estabelecida. Nacionalistas hutus, bem como o juiz francês Bruguière, alegaram que a FPR foi a responsável. Mas, com o tempo, mais e mais provas – especialmente documentos desclassificados pelos serviços secretos franceses – apontaram na direção dos extremistas hutus, que queriam matar Habyarimana para torpedear de uma vez por todas os Acordos de Arusha.

Minutos após o ataque, o exército ruandês e as milícias hutus ocuparam as ruas de Kigali. Líderes hutus “moderados”, como a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana, foram assassinados. Um novo governo, composto por extremistas hutus, foi proclamado a partir da embaixada francesa. Chamados para o massacre dos tutsis foram lançados pelo rádio. O genocídio começou na mesma noite.

Empurrados para estádios, igrejas e escolas, os tutsis foram sistematicamente massacrados. O exército e as milícias bloquearam as estradas para interceptar qualquer um que tentasse fugir. Nos vilarejos, a população, bombardeada por anos com propaganda antitutsi, foi mobilizada para participar ativamente do genocídio. Aqueles hutus que se recusavam a participar da caça aos tutsis – muitas vezes seus vizinhos ou membros da família – eram assassinados. Mas, apesar de tudo, muitos hutus se recusaram a participar do genocídio e fizeram o que podiam para ajudar os tutsis a escapar.

À medida que o genocídio se desenrolava diante dos olhos dos diplomatas e soldados franceses ainda presentes em Ruanda, François Mitterrand e seu primeiro-ministro de direita, Edouard Balladur, continuaram a apoiar o regime hutu, notadamente fornecendo-lhe armas. Em 15 de junho de 1994, enquanto imagens do genocídio circulavam pelo mundo, Mitterrand anunciou que quase 2.500 soldados franceses seriam enviados a Ruanda, oficialmente para “proteger a população civil”. Na realidade, essa intervenção tinha como principal objetivo conter a FPR, que havia retomado sua ofensiva e estava ganhando terreno.

O governo de Ruanda e a França estavam perfeitamente cientes dos acontecimentos / Imagem: domínio público

O governo e o estado-maior francês estavam perfeitamente cientes dos acontecimentos, mas minimizaram a sua gravidade, reduzindo esse genocídio a “violência recíproca” entre as duas comunidades. Quando soldados franceses exigiram autorização para intervir e acabar com a matança de civis, seus oficiais proibiram, e apenas alguns ousaram desobedecer.

Apesar da intervenção direta das tropas francesas, a FPR acabou por tomar Kigali em 4 de julho. Enquanto isso, os remanescentes do exército ruandês e das milícias hutus que escaparam do avanço da FPR fugiram para o Zaire (agora República Democrática do Congo), sob a proteção das tropas francesas. Com pleno conhecimento dos fatos, o governo francês ajudou os organizadores do genocídio a escaparem para o exterior.

Ao longo do caminho, o exército ruandês forçou muitos civis hutus a se juntarem à sua fuga. Quase 2 milhões de pessoas acabaram em campos de refugiados no Zaire. Lá, os líderes hutus organizaram novas milícias para preparar uma hipotética “reconquista de Ruanda”. Escandalosamente, esses criminosos genocidas receberam mais uma vez assistência da França, que lhes forneceu armas. E embora o plano de reconquistar Ruanda nunca tenha se concretizado, essas milícias ainda desempenharam um papel importante nas guerras que devastaram o Congo a partir de 1996.

Depois de negar por tanto tempo sua responsabilidade esmagadora pelo genocídio dos tutsis, o estado francês finalmente aceitou-a apenas de maneira tímida. Mas, ao contrário da história contada pelos políticos hoje, o comportamento criminoso do estado francês durante o genocídio em Ruanda não foi um acidente, nem fruto da ignorância de alguns líderes. Ao apoiar um regime genocida e, em seguida, tentar esconder todos os traços de seus crimes, o imperialismo francês estava defendendo seus interesses fundamentais. Queria preservar seu controle sobre Ruanda a qualquer custo.

Desde então, os métodos do imperialismo francês não mudaram. Na República Centro-Africana e no Mali durante a década de 2010, soldados franceses supervisionaram e treinaram exércitos ou milícias que realizaram massacres étnicos. Em 2018, no Mali, centenas de membros do grupo étnico Peul foram massacrados por milícias treinadas pelo regime pró-francês, então liderado por Ibrahim Boubacar Keïta, e protegidas por soldados franceses como parte da Operação ‘Barkhane’.

Enquanto o capitalismo e o imperialismo continuarem a dominar o planeta, os trabalhadores e os pobres dos países oprimidos terão que pagar em sangue e sofrimento pelos lucros de uma minoria de bilionários.

TRADUÇÃO DE JESSICA STOLFI.