A pandemia e “o negócio das vacinas”

Nos últimos dias, no Brasil, voltou a ser ultrapassada a marca de mil mortes diárias causadas pela Covid-19. Em um único dia nos Estados Unidos esse número chegou a 3.600 óbitos; no conjunto da Europa passou de cinco mil. Em menos de três meses, a soma global da contagem oficial de mortes cresceu 68%. E esses números não retratam o curso real da pandemia em razão da enorme subnotificação de óbitos, particularmente nos países mais pobres, onde está a maior parte da população mundial.

Tal como uma pessoa que está doente e precisa repousar, para enfrentar a pandemia a sociedade teria que limitar a produção ao que é essencial e concentrar parte da sua energia nas medidas sanitárias. Mas a quarentena e a mobilização eficiente dos recursos, para dar conta dessa necessidade elementar, contradiz a circulação de mercadorias e a realização dos lucros.

Sendo a pandemia um fenômeno global, deveria existir uma coordenação entre as medidas sanitárias de todos os países. Mas essa necessidade é também completamente distorcida pelas relações internacionais de antagonismo e subordinação, que formam uma estrutura imperialista essencial para manter a exploração do trabalho assalariado.

A consequência foi — e ainda será por muito tempo — o aprofundamento de uma crise econômica global que já estava em curso antes da pandemia, mais desemprego e miséria para os trabalhadores, e milhões de mortes que poderiam ter sido evitadas. Nesse contexto, as vacinas são anunciadas como a luz no fim do túnel.

Historicamente, os estudos para aprovação de novas vacinas demoravam de dez a vinte anos, em média. A descoberta, em menos de um ano, de diversas vacinas contra o novo coronavírus, sendo realmente eficazes e seguras — como afirmam os órgãos responsáveis pela validação dos testes realizados — deve ser aplaudida como um triunfo da ciência, uma conquista das forças produtivas da humanidade.

No entanto, apesar da esperança que ela desperta, essa conquista torna ainda mais visível a contradição entre o nível de desenvolvimento das forças produtivas e a incapacidade global da burguesia para dirigir esse desenvolvimento ao encontro das necessidades sociais.

A corrida pela vacina: do investimento público para o lucro privado

Há poucos dias, em um artigo publicado no site do jornal britânico The Guardian, pudemos ler o seguinte: “Como foi possível desenvolver vacinas contra a Covid-19 em menos de um ano? Uma consideração importante é o financiamento — dinheiro público e privado foi despejado na corrida por uma vacina da Covid, deixando de lado as preocupações financeiras usuais que as empresas farmacêuticas enfrentam. Além do mais, a demanda e a urgência são altas.”

Esse artigo dá a impressão de que, devido à gravidade da pandemia, as empresas privadas abriram mão de suas “preocupações financeiras usuais”. Contudo, os fatos mostram exatamente o oposto disso. As vacinas que foram objeto de compras antecipadas, em grandes quantidades e antes de serem desenvolvidas, pelos governos dos Estados Unidos, Japão, Canadá, Reino Unido e outros países europeus, tiveram suas pesquisas e os testes financiados com verbas públicas na proporção de mais de 90% no caso da Moderna, e entre 60% e 70% nos casos da Pfizer/BioNTech e da Oxford-AstraZeneca. (https://www.bbc.com/news/business-55170756)

Além disso, essas empresas tornaram-se integralmente proprietárias dessas instalações e da “plataforma tecnológica” desenvolvida. Esta estrutura pode ser utilizada posteriormente para a fabricação de outros produtos, ou para continuar fabricando a mesma vacina a ser vendida futuramente para outros países, ou ainda no caso muito provável de ser necessária uma vacina anual para manter o novo coronavírus sob controle. Um negócio privilegiado, aparentemente temporário, gerando um negócio permanente com lucros bilionários.

Esse vínculo entre a atuação do Estado e os negócios das grandes corporações é uma consequência inevitável da concentração do capital, que levou o capitalismo ao seu estágio monopolista. Também é esse vínculo que explica a importância, para a reprodução do grande capital, da hegemonia no mercado mundial e, portanto, da estrutura imperialista nas relações internacionais.

No contexto da pandemia, a aquisição antecipada da maior parte da produção de vacinas, e não somente das empresas acima mencionadas, pelos governos dos países mais ricos, está aumentando o preço dos insumos – em larga medida produzidos na China – e criando situações de escassez e de monopólio que vão, no mínimo, retardar a vacinação nos países atrasados. Para muitos, esse retardo será fatal.

A corrida pela vacina: pandemias para muitos, vacinas para poucos

No jogo das forças de mercado, qualquer necessidade humana só é contabilizada como demanda efetiva se puder gerar poder de compra para ampliar ou, no mínimo, sustentar a margem de lucro “normal” do capital. Como vimos acima, mesmo nos países ricos, a necessidade de vacinas para controlar a pandemia — ou para “salvar a economia”, como falam alguns economistas — só foi transformada em demanda efetiva por meio da injeção massiva de recursos públicos.

Marx começa a análise das contradições do capitalismo explicando a diferença entre valor de uso e valor de troca, que aparece também como a contradição entre necessidade (valor de uso) e demanda efetiva (valor de troca) de vacinas que já existem há várias décadas, antes da pandemia:

O acesso inadequado a vacinas em países de baixa e média renda resulta em mais de dois milhões de mortes a cada ano. Dois terços dessas mortes ocorrem em crianças menores de 5 anos. As vacinas do vírus da hepatite B e Haemophilus influenzae tipo b estão agora começando a serem usadas em países de baixa e média renda, mas foram licenciadas para uso no mundo industrializado há mais de duas décadas.” (ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2287260/).

E mesmo nos países mais ricos o acesso às vacinas está longe de ser universal. A Gardasil 9 (para HPV), da Merck, custa US$ 227 por dose, e a ProQuad (sarampo, caxumba, rubéola e varicela), também da Merck, custa US$ 225 por dose. A Prevnar 13 (para a bactéria pneumocócica), da Pfizer, custa US$ 202 por dose, e se tornou o produto mais lucrativo da Pfizer depois que a patente do Viagra expirou.

Assim como não houve uma efetiva coordenação entre os países para implementar as medidas sanitárias, a corrida para as vacinas é ainda mais fragmentada. As informações dão conta de mais de 200 vacinas sendo desenvolvidas contra o novo coronavírus, mas todas podem ser agrupadas em quatro ou cinco tipos de “plataformas tecnológicas” diferentes. Essa fragmentação desperdiça recursos e tempo. E mesmo que todas sejam aprovadas, existem razões para prever que só uma fração delas será produzida em escala significativa.

Uma vez desenvolvidas e testadas, a produção de vacinas apresenta exigências técnicas que distinguem este setor de outros ramos da indústria farmacêutica. Os princípios ativos das vacinas são moléculas (ou o vírus inativado) com estrutura química bem mais complexa do que os remédios comuns. Especialmente a questão do controle de qualidade, em cada uma das várias etapas da fabricação, e inclusive de cada lote produzido, assim como as condições para a conservação dos lotes no armazenamento e transporte, elevam o custo de produção e distribuição.

Por essas razões, ao contrário dos remédios comuns, não há vacinas genéricas mesmo depois que a validade das patentes termina, e cada marca é uma vacina que deve ter a sua qualidade constantemente verificada. Isso, a princípio, atrai o grande capital porque torna mais difícil a multiplicação de competidores. A redução, pelo aumento da escala de produção, do custo de cada unidade produzida, não somente é um aspecto decisivo na competição em quase todos os setores da produção industrial (e mesmo em serviços e no comércio), como também determina a tendência geral para a concentração do capital.

No negócio de vacinas esse aspecto é particularmente relevante. Apenas 4 grandes empresas (GlaxoSmithKline, Merck, Sanofi e Pfizer) controlam mais de 90% do faturamento global com a venda de vacinas, embora isso não inclua a produção estatal na Rússia (Gamaleya e Vector) e na China (Sinopharma), e inclusive no Brasil (Fio Cruz e Butantan).

Ao contrário do que ocorre com a indústria farmacêutica em geral, na qual o ritmo de inovações decaiu muito nas décadas recentes, o aparecimento de novas biotecnologias tem favorecido a emergência de empresas novas neste setor (é o caso da Moderna e da BioNTech). A principal barreira de entrada, no entanto, não é o monopólio da tecnologia, mas sim o volume de capital para bancar os custos fixos com produção e distribuição. O destino das empresas inovadoras de pequeno ou médio porte é a sua absorção pelas gigantes do setor.

A tecnologia em geral depende essencialmente de toda a estrutura social para a formação de trabalho qualificado e realização de pesquisas, e o negócio de vacinas é reconhecidamente um dos ramos da produção que mais se apropria gratuitamente da produção científica realizada em centros de ensino e pesquisa estatais. Mas o negócio de vacinas representa apenas cerca de 4% do faturamento da indústria farmacêutica privada, e como disse um comentarista burguês, da S&P Global Ratings (em 3/8/20), com o típico ar de inocência hipócrita:

O mercado de vacinas não é apenas caracterizado por poucos vendedores, mas também por poucos compradores. A grande escala e concentração de compradores governamentais e filantrópicos prejudica o poder de precificação mais notável dos vendedores e leva a preços de vacinas relativamente baixos. Assim, apesar do número limitado de concorrentes, o mercado continua a funcionar de forma relativamente eficiente, inspirando inovação e servindo ao bem comum a preços razoáveis que proporcionam um retorno aceitável para os fabricantes ”.

A realidade é cristalina. Uma grande parte do imenso valor de uso (necessidade) das vacinas — muito maior que a maioria dos remédios comuns — é desperdiçado porque tem que passar pelo gargalo capitalista do valor de troca (demanda efetiva).

A concentração do capital, o monopólio e o imperialismo são resultados históricos inevitáveis do desenvolvimento das forças produtivas com base na propriedade privada dos meios de produção. Essa base tornou-se um gargalo cada vez mais estreito. Alguns imaginam que isso pode ser resolvido com um novo “marco regulatório” para quebrar os monopólios e, desse modo, restaurar um “ambiente competitivo” para reduzir os preços. Mas isso não seria um avanço, e sim um retrocesso que levaria a uma queda na produtividade do trabalho pela diminuição da escala de produção. A solução não é a maior igualdade com uma sociedade mais pobre. A única solução real e efetiva – para a qual o próprio capitalismo criou as condições materiais – é uma economia planejada com os meios de produção sob controle coletivo e democrático dos trabalhadores.

Na pandemia, a guerra do capital contra as medidas sanitárias, a ausência de coordenação internacional dessas medidas em razão do antagonismo entre os estados nacionais, e, com ou sem pandemia, a morte de milhões de pessoas causadas pela escassez artificial de vacinas, somam-se a muitas outras misérias decorrentes da submissão da sociedade aos interesses privados do capital. Numa base capitalista, não há luz no fim do túnel.