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A pandemia silenciosa: Covid-19 e a crise da saúde mental

Milhões de trabalhadores tiveram suas vidas radicalmente alteradas pela Covid-19. Mas agora os especialistas em saúde estão alertando que uma nova crise está se formando: uma pandemia de saúde mental.

Na década seguinte à recessão de 2008, a taxa de problemas relacionados à saúde mental disparou, enquanto, ao mesmo tempo, os governos cortavam os serviços de saúde mental. Esta situação está agora a ser exacerbada pelos níveis sem precedentes de desemprego, de aumento da exploração dos que ainda estão empregados e pelas perspectivas sombrias de recuperação. A verdade é fácil de se ver: o capitalismo está causando uma pandemia de saúde mental.

Covid-19, capitalismo e saúde mental

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a depressão como uma das principais causas de morte e incapacidade em todo o mundo. As doenças mentais agora afetam mais de 250 milhões de pessoas em todo o mundo, e as taxas de depressão e ansiedade aumentaram 18% somente na última década. As taxas de suicídio entre jovens atingiram níveis sem precedentes com um aumento de 56% nos suicídios entre jovens em apenas uma década, tornando o suicídio uma das principais causas de morte entre jovens, perdendo apenas para as mortes acidentais.

Esta crise foi agravada pela pandemia da Covid-19 e também pela crise econômica. A Associação Canadense de Saúde Mental declarou que 50% dos canadenses relatam declínio da saúde mental desde o início da pandemia. Uma pesquisa conduzida por Morneau Shepell relatou que 80% dos trabalhadores canadenses relataram piora da saúde mental. A Universidade de Toronto estima que os números de suicídios para 2020-2021 somariam 2.114 suicídios adicionais ao índice atual. As chamadas telefônicas relativas à crise de suicídio tiveram um aumento entre 30-50% nas ligações durante os primeiros meses da pandemia.

Esses aumentos nos números do sofrimento mental e dos riscos de suicídio podem ser atribuídos a uma série de fatores decorrentes da pandemia: aumento do isolamento social durante o confinamento, desemprego em massa e incerteza econômica, exploração intensificada e pressão dos trabalhadores essenciais, o aumento potencial do medo que muitos da classe trabalhadora e das famílias pobres têm de perder tudo o que têm, a ameaça de despejos, o medo dos impactos devastadores de contrair o vírus e da perda potencial de entes queridos, e a desesperança e o desespero que tudo isso dá origem. Com o tratamento adequado da pandemia desde o início, as consequências sociais, médicas e de saúde mental que estamos vendo poderiam ter sido evitadas e minimizadas. Em vez disso, os governos em todo o mundo complicaram o manejo da pandemia, em grande parte como resultado do período anterior de cortes e privatizações.

No Bell Let’s Talk Day este ano, o Primeiro-Ministro de Ontário, Doug Ford, lançou um vídeo, reconhecendo que “aproximadamente 30% dos moradores de Ontario terão problemas de saúde mental e dependência em algum momento de suas vidas” e concluindo que ele tornaria a saúde mental uma prioridade para seu governo.[1] Em certo sentido, isso é verdade – ele deu uma grande prioridade ao corte de 2,1 bilhões de dólares em 4 anos nos gastos planejados com saúde mental, ao assumir o cargo. Desde esses cortes, o tempo de espera pelos serviços de saúde mental mais do que dobrou em Ontário, com 28.000 jovens esperando por ajuda entre 67 e 92 dias. Custaria apenas 150 milhões de dólares para contratar cerca de 1.400 trabalhadores, o que reduziria o tempo de espera pela metade. Embora um em cada cinco jovens em Ontário tenha problemas de saúde mental, apenas 18% deles têm acesso à ajuda.

Há uma clara divisão de classes em relação a quem sofre mais com a crise de saúde mental. Por exemplo, estar desempregado provavelmente aumentará sua chance de desenvolver um problema de saúde mental em 15%. A insegurança habitacional aumenta em quase 20%. Esses problemas só vão se intensificar para os trabalhadores no próximo período. Em uma pesquisa conduzida pela Canadian Psychological Association, descobriram que 80% dos entrevistados declararam ter uma renda muito baixa. Daqueles que ganham 40.000 dólares ou menos, 86% disseram que pagar por tratamento de saúde mental não é uma opção. Se o seu trabalho não cobrir serviços psicológicos, o que é o caso de muitos trabalhadores, o custo de apenas uma hora de sessão de terapia pode ser algo entre 125 e 240 dólares, e o custo da medicação em Ontário, por exemplo, pode variar entre 30 e 200 dólares ao mês.

A crise atual está expondo todas as falhas do sistema capitalista, que há anos vem minando toda a infraestrutura necessária para enfrentar a crise por meio de cortes e privatizações. A classe dominante está agora tentando colocar o fardo desta crise inteiramente sobre os ombros da classe trabalhadora. Esse fardo pesa mais sobre os trabalhadores essenciais, que estão sendo sacrificados pelos lucros dos capitalistas. Em meio à pandemia, esses trabalhadores enfrentam outra sombra pandêmica de problemas de saúde mental.

O assassinato silencioso dos trabalhadores da linha de frente

Os trabalhadores da linha de frente são frequentemente comparados a soldados na batalha contra a Covid-19. Se for esse o caso, é uma guerra muito peculiar, onde as tropas são enviadas para a linha de frente sem o equipamento necessário para vencer. Os capitalistas tratam os trabalhadores da linha de frente como bucha de canhão, enviando milhões para ambientes de trabalho inseguros, sem se importar com quem vive ou morre. Fornecer às suas “tropas” o equipamento de que precisam seria um investimento caro e não lucrativo para os capitalistas. Como um atendente de emergência em Nova York disse: “Ninguém realmente se preocupa com nossa segurança, ninguém realmente se importa se ficarmos doentes ou não”.

De acordo com a ONU, 47% dos profissionais de saúde no Canadá relataram que precisam de apoio psicológico. Profissionais de saúde da Itália, Espanha, China e Irã estão relatando níveis igualmente altos, ou até mais altos, de angústia. Especialistas em saúde preveem que aqueles que trabalham em pontos críticos da Covid-19, como hospitais e instalações de cuidados de longo prazo, têm um risco entre 20-25% de desenvolver PTSD (Transtornos de Estresse Pós-Traumático].

Por décadas, as classes dominantes têm apertado os orçamentos para os serviços de saúde, deixando os hospitais mal equipados, com falta de pessoal e sem fundos, mesmo antes da pandemia. Hospitais no Canadá já tinham problemas crônicos de capacidade. A pandemia está adicionando ainda mais pressão a um já fraco sistema de saúde, e são os profissionais de saúde que têm que suportar o impacto disso.

Uma história em particular que chamou a atenção do público foi o suicídio de Carolina Breen no Hospital Presbiteriano Allen de Nova York, onde sua morte ocorreu dias após o suicídio de outro colega no hospital que não conseguia lidar com o estresse de ser um atendente de emergência. Breen não tinha histórico de doença mental, mas, depois de semanas vendo tantas mortes, trabalhando longas horas sem compensação e incapaz de lidar com as condições de pesadelo do hospital, ela tirou a própria vida.

Anna Podolanczuk, uma colega de Breen, que trabalhou ao lado dela no pronto-socorro, afirmou depois da morte de Breen que “O pronto-socorro parecia um campo de batalha. Um pesadelo vivo. Vamos lembrar que muitos trabalhadores da linha de frente continuarão revivendo esse pesadelo muito depois que isso acabar”, e finalizou dizendo, “a Covid-19 mata de várias maneiras”.

Sua história é a mesma de tantas outras enfermeiras que se suicidaram nos últimos meses devido à crise nos hospitais. Seth Norrholm, professor associado de psiquiatria de uma universidade em Michigan, explica que a falta de equipamentos para a equipe médica enfrentar a crise é responsável pelo aumento dos suicídios,

“Se eles soubessem que fizeram tudo que podiam, tudo que precisava ser feito, isso ajudaria a mitigar a culpa e os ajudaria a processar a situação de maneira adequada … mas se você está roubando deles essa confiança e competência por não fornecer [EPIs] e suporte adequados, isso abre a porta para a culpa e abre a porta para dúvidas e questionamentos”.

Por motivos semelhantes, uma enfermeira da Flórida também cometeu o que se suspeita ser suicídio por overdose de drogas na semana passada. Em algumas de suas últimas mensagens de texto para amigos ela escreveu:

“Estamos ficando sem vestimentas. Estamos fazendo com que as pessoas façam protetores faciais improvisados ​​que acabam quebrando…”.

Essas condições eram totalmente evitáveis, mas o ataque capitalista contra a classe trabalhadora no período passado e sua gestão criminosa da pandemia as tornaram inevitáveis. Em uma sociedade racional, os enfermeiros nunca teriam sido forçados a usar EPIs improvisados ​​ou que estes fossem racionados, tendo que escolher entre proteger a si próprios, outros funcionários ou pacientes. Não seria necessário fazer a escolha entre quem vive e quem morre por falta de respiradores. Os trabalhadores de longa permanência não teriam de ficar sentados observando os pacientes morrerem devido à falta de recursos. Em uma sociedade racional, todos os recursos teriam sido mobilizados na linha de frente contra a doença e garantido que os serviços essenciais fossem fortes o suficiente para enfrentar a pandemia. Mas não vivemos em uma sociedade racional onde os recursos são planejados de acordo com as necessidades, mas em uma sociedade profundamente irracional e anárquica, onde os lucros de alguns vêm antes das necessidades de muitos.

Os trabalhadores de saúde experimentavam taxas mais altas de problemas de saúde mental e suicídio mesmo antes da Covid-19. As condições de pesadelo dentro dos hospitais estão despejando gasolina sobre esse incêndio já existente, e essa pandemia sombria alcançará novos patamares. O Center for Addiction and Mental Health estima, com base nos dados do surto de SARS, que o trauma psicológico sofrido durante a pandemia pode durar por mais de 3 anos. Como a escala dessa pandemia é muito maior do que a da SARS, o resultado psicológico para os profissionais de saúde provavelmente será ainda mais profundo.

Como em uma guerra real, as tropas na linha de frente estão atualmente sendo sustentadas pelos capitalistas como heróis cumprindo seu dever. Eles receberão elogios, aplausos e palavras de apoio durante a guerra. Mas no momento em que a guerra acabar e os capitalistas não tiverem mais uso para eles, eles serão colocados de lado e deixados sem apoio ou assistência para lidar com o tributo físico e psicológico da guerra, em uma condição ainda pior do que antes.

Socialismo: a luta por nossas vidas

A mídia tem retratado o aumento dos problemas de saúde mental desde o início da pandemia puramente como um produto da Covid-19. No entanto, não foi a Covid-19 que criou esta crise. O Canadá já estava passando por uma crise de saúde mental muito antes da Covid-19, e foi o capitalismo que a criou.

Antes da pandemia, 85% dos canadenses concordavam que os serviços de saúde mental eram subfinanciados, com 53% concordando que estávamos em uma epidemia de saúde mental. Existe dinheiro para financiar e desenvolver totalmente nossos serviços de saúde mental e nosso sistema mais amplo de saúde: o governo está administrando um déficit de mais de 343 bilhões de dólares para fornecer suporte de vida aos capitalistas. Ainda mais, os capitalistas canadenses estão sentados em mais de 1 trilhão de dólares em dinheiro não investido. Isso é dinheiro mais do que suficiente para atender às necessidades da sociedade durante a pandemia. No entanto, o capitalismo em sua essência é um sistema baseado no lucro, não na necessidade. Os capitalistas devem obter retorno de cada centavo que investem e, se não puderem, o dinheiro ficará armazenado em bancos e acumulará poeira. Para eles, não importa se esses investimentos podem ou não salvar milhares de vidas: a única coisa sagrada para os capitalistas são seus próprios lucros.

Devemos exigir um serviço público de saúde mental totalmente financiado e integrado ao sistema de saúde mais amplo. A Covid-19 mostrou que catástrofe realmente é o capitalismo para o bem-estar público. Somente tirando nosso sistema de saúde das mãos dos capitalistas e colocando-o sob controle democrático podemos realmente assumir o controle de nosso bem-estar coletivo.

Um sistema de saúde mental totalmente financiado é um pré-requisito para resolver a crise da saúde mental, mas não é suficiente. Devemos entender o problema em seus fundamentos. A crise da saúde mental é, em última análise, um produto da crise do capitalismo. Uma sensação de segurança, o controle sobre a própria vida e atividades sociais significativas são condições vitais para o bem-estar mental. Um sistema baseado na exploração, alienação, precariedade e competição não pode fornecer essas condições para a grande maioria das pessoas.

O capitalismo é um sistema em decadência que não pode oferecer aos trabalhadores nenhuma esperança e nenhum futuro. Centenas de milhares de trabalhadores estão atualmente desempregados, com perspectivas de emprego muito sombrias pela frente. Aqueles que ainda estão empregados enfrentam aumento da exploração e piora das condições de trabalho. Enquanto empregos e salários estão diminuindo, aluguel, serviços públicos e dívidas permanecem os mesmos. Esta geração de jovens é a geração mais educada de todos os tempos, mas eles enfrentam uma montanha de dívidas e são forçados a assumir empregos cada vez piores. Não só não há futuro econômico para muitos trabalhadores, mas o próprio futuro do planeta está em jogo, o que é uma fonte de profunda desmoralização, depressão e ansiedade. Por que estudar e trabalhar por um futuro que você não terá? Enquanto o sofrimento e a miséria da classe trabalhadora ficam cada vez piores, os capitalistas ficam cada vez mais ricos. Uma pandemia de saúde mental é a resposta que se espera de um sistema profundamente irracional que se tornou uma barreira ativa para a satisfação das necessidades físicas e psicológicas mais básicas da humanidade. Um sistema doente produz naturalmente pessoas doentes.

Esta nova onda de problemas de saúde mental se tornou uma pandemia na sombra da Covid-19. Foi o capitalismo que, em última análise, deu origem a ambos e, para resolver essas duas pandemias complementares, é necessária uma revisão sistêmica. Somente com uma economia socialista planejada a classe trabalhadora pode assumir o controle de suas próprias vidas e administrar a economia para as necessidades de muitos, não para os lucros de alguns parasitas que lucram com nossa crescente miséria. Centenas de bilhões de dólares não teriam sido usados ​​para resgatar os capitalistas, e 1 trilhão de dólares não ficaria ocioso em bancos, mas poderia ser usado para combater a pandemia e prover as necessidades da sociedade. A riqueza e os recursos que os capitalistas possuem de forma privada poderiam ir para a transformação e melhoria da sociedade visando fornecer um futuro digno de vida para a classe trabalhadora e eliminar, pela raiz, a base material da crise de saúde mental.

O capitalismo está nos matando. Quer olhemos para a má gestão da pandemia, para crise climática ou para a crise econômica, que empurram as pessoas para condições miseráveis ​​e insuportáveis ​​que podem levar ao suicídio, o que estamos testemunhando é o que Engels chamou de “assassinato social“, não assassinatos cometidos por um indivíduo, mas assassinatos cometidos por um sistema tão irracional e cego para as necessidades humanas que faz com que milhares de trabalhadores morram de mortes evitáveis. Nossa saúde e nossas vidas são muito importantes para serem deixadas à mercê do mercado: a luta pelo socialismo é a luta por nossas vidas.

[1] O Bell Let’s Talk é uma campanha de conscientização criada pela empresa canadense de telecomunicações Bell Canada, para conscientizar e combater o estigma em torno das doenças mentais no Canadá (NDT)

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.

PUBLICADO EM MARXIST.CA