A derrubada de Mohammed Morsi abriu um período novo e turbulento na Revolução Egípcia. A Irmandade Muçulmana (IM) ainda tem uma base na sociedade egípcia, entre a pequena burguesia, as camadas mais atrasadas e ignorantes do campesinato e o lumpenproletariado. Ela está determinada a se agarrar ao poder, mas as massas em número de milhões que tomaram as ruas para derrubá-la estão igualmente determinadas a impedi-la de voltar. O futuro da Revolução Egípcia será determinado pelo resultado dessa luta.
A raiva das pessoas se expressou em ações como incendiar e saquear as sedes da Irmandade. Mas isto aconteceu em retaliação pela morte de manifestantes desarmados pela ação dos bandidos da IM que lançaram ácido e bombas incendiárias sobre a multidão. As tentativas da mídia de apresentar a Irmandade Muçulmana como pacífica estão em desacordo com os fatos.
As principais agências de notícias estão tentando pintar um quadro falso da situação dentro do Egito. As manifestações da contrarrevolucionária Irmandade são destacadas e mostradas repetidamente. Mas as contramanifestações das massas sequer são mencionadas.
Por um lado, a Irmandade vinha tentando provocar um confronto armado desde que Morsi foi deposto. Na sexta-feira, bandidos da Irmandade mataram duas crianças em Alexandria lançando-as do telhado de um prédio. No domingo, em Assiut, três jovens que participaram do protesto contra a Irmandade foram baleados por pistoleiros da Irmandade. Isto resultou em milhares de pessoas incendiando a sede da Irmandade na cidade. Sobre isso, nem uma única palavra nos meios de comunicação!
A realidade nas ruas do Egito está longe do que está sendo descrito no noticiário. Logo depois da deposição de Morsi, as massas, sentindo a ameaça de represálias por parte da Irmandade, foram às ruas para defender sua vitória. No fim de semana, centenas de milhares e talvez mesmo milhões foram às ruas de todo o Egito. Os maiores protestos aconteceram no domingo quando centenas de milhares se reuniram na Praça Tahrir.
As manifestações convergiram sobre a Praça Tahrir a partir das áreas da classe trabalhadora dos distritos de Shubra, Sayeda Zeinab e Darb Al-Ahmar e da Praça Mostafa Mahmoud, em Gizé. De Shubra, os cânticos entoavam: “Pão, liberdade e justiça social” e “A legitimidade é do povo, e não de Rabaa”, em referência à Praça Rabaa Al-Adawiya, na cidade de Nasr, onde os seguidores de Morsi se manifestavam.
Em Alexandria, a segunda maior cidade do Egito, massas de pessoas convergiram para as proximidades da estação ferroviária de Sidi Gaber para protestar contra a Irmandade Muçulmana e para defender a derrubada revolucionária de Mohamed Morsi. Dezenas de milhares de pessoas em Alexandria começaram a marchar em sete diferentes manifestações em torno das seis horas da tarde, convergindo finalmente sobre a Praça Sidi Gaber, onde milhares já se encontravam em manifestação.
Os manifestantes protestavam contra a noção de que a remoção de Morsi constituía um golpe militar. Também havia fortes sentimentos contra o imperialismo EUA que foi visto como um importante apoiador de Morsi e de seu governo. As mesmas cenas foram vistas em todo o Egito, especialmente no coração industrial do Delta, onde os protestos de massas levaram a confrontos em Tanta Mansoura, Mahalla, Port Said e Ismailia. Mesmo nas áreas atrasadas do Alto Egito, que têm sido um tradicional reduto da Irmandade Muçulmana, milhares marcharam contra a Irmandade.
Enquanto isto, a Irmandade não foi capaz de mobilizar qualquer força considerável fora do Cairo e Alexandria. No Cairo, seu comício reuniu algumas consideráveis dezenas de milhares, mas ficou restrito à zona de classe média da cidade de Nasr, onde profissionais liberais, médicos e pequenos lojistas vivem a anos-luz de distância da grande maioria dos egípcios.
Este é o verdadeiro equilíbrio de forças entre a Revolução e a contrarrevolução islâmica. Enquanto as massas tomavam as ruas em milhares e centenas de milhares por todo o país, as forças da Irmandade ficaram principalmente restritas às duas maiores cidades, e mesmo aqui não conseguiram mobilizar nada perto dos números reunidos por seus adversários.
Guerra civil?
Na manhã da segunda-feira, a situação tomou um novo rumo. O sit-in [sentada] da Irmandade em frente à sede da Guarda Republicana, onde se acreditava que Morsi se encontrava, de repente se transformou em um confronto armado entre o exército e a Irmandade, que deixou 54 mortos e centenas de feridos. Embora não esteja claro como começou o confronto, é claro que tinha sido preparado por vários dias.
No mesmo dia, a Irmandade também tentara provocar um confronto com o protesto anti-Irmandade no Cairo, bloqueando as principais vias de acesso ao palácio presidencial Itthadiya, onde um enorme comício tinha começado. Além disso, houve incontáveis ataques contra as manifestações anti-Morsi, deixando 40 mortos nos dias anteriores. O que a Irmandade visava era criar um confronto que pudesse galvanizar apoio em torno dela.
O clamor dos “democratas” burgueses sobre um golpe – que é vergonhosamente ecoado por alguns da suposta esquerda – também não é uma defesa da democracia, mas uma calúnia repugnante e um ataque à própria revolução. É uma tentativa hipócrita de negar o direito do povo a realizar mudanças na sociedade.
Que a mídia burguesa prostituta possa usar o argumento de um suposto golpe para tentar desacreditar o movimento revolucionário e desinflar sua confiança, é perfeitamente explicável. Que pessoas que se reivindicam de “esquerda” possam ecoar este miserável campanha burguesa, é simplesmente desprezível.
Em todas as ocasiões, esses “esquerdistas” se acotovelaram para anunciar a morte da revolução. Fizeram isto quando Morsi chegou ao poder. Agora, dizem a mesma coisa porque Morsi foi derrubado. Para estas pessoas, qualquer desculpa servirá, desde que arroje sobre a Revolução Egípcia uma luz negativa e pessimista.
A lenda do golpe
Desde a derrubada de Mohammed Morsi, vem sendo conduzida pelos meios de comunicação de massa por todo o mundo uma campanha para desacreditar a vaga revolucionária humana por trás de sua queda. A maioria da mídia burguesa proclamou o evento como nada mais do que um golpe militar contra um governo democraticamente eleito.
Isto é uma contradição em termos. Um golpe de Estado é, por definição, a tomada do poder por uma pequena e não representativa minoria que opera nas costas das massas. Mas, no Egito, a força motriz da mudança eram as próprias massas.
Os marxistas defendemos a democracia, mas não para a adoração servil dos mecanismos da democracia burguesa formal. Esse fetichismo das formas da democracia deixa inteiramente fora de consideração o seu conteúdo real. Adolf Hitler poderia argumentar com certa razão que foi elevado ao poder pela maioria dos eleitores alemães, embora, de fato, a maioria não votou por ele nem pelo Partido Nazista.
O que poderíamos dizer a alguém que argumentasse que os trabalhadores alemães deveriam ter mostrado respeito ao funcionamento da democracia parlamentar em 1933; que seria errado convocar uma greve geral para derrubá-la; que o único papel para o povo seria mostrar paciência e esperar pela próxima eleição geral (que nunca veio)?
O argumento de que o Egito estava a caminho de se tornar uma democracia sob o governo de Morsi é uma mentira descarada. Todos os que repetem isto esquecem convenientemente de mencionar as centenas de assassinatos e milhares de ativistas aprisionados. Esqueceram de mencionar os acordos que Morsi fez com o SCAF e com o aparato de segurança do velho regime e como ele deixou a maioria dos assassinos e torturadores da era de Mubarak em liberdade. Também esquecem de mencionar como ele enviou o exército contra a greve geral em Port Said. Também não mencionam sua tentativa de se conceder a si mesmo poderes quase ditatoriais com o decreto presidencial de novembro.
Morsi legislou de forma ditatorial através do senado que foi eleito por somente 10% dos eleitores. Encheu os cargos públicos com seus queridos Irmãos. Os promotores estrangeiros dos direitos humanos e da democracia foram perseguidos, julgados e condenados por acusações forjadas. Muitos jornalistas foram presos.
O partido de Morsi bloqueou a legislação que introduziria uma tributação mais progressiva. Rejeitaram o direito de se formar sindicatos independentes através de eleições livres nos locais de trabalho. Em vez disto, propuseram a “regulamentação” das greves e apoiaram os patrões. Isto revela claramente que classe social os Irmãos representam.
Mesmo contra suas próprias leis, procederam com os planos de privatização e com a venda no atacado da indústria nacionalizada egípcia a preços ilegalmente baixos. Em outras palavras, agiram como uma fachada para uma quadrilha de empresários vorazes saquearem o estado egípcio e o povo.
Depois há a pequena questão da religião. Em uma democracia verdadeira, a religião deve ser mantida separada do Estado. As crenças religiosas de um homem ou uma mulher (ou a falta delas) devem ser consideradas como uma questão puramente pessoal, do ponto de vista da lei e do Estado.
A Irmandade Muçulmana e outros grupos islâmicos são completamente reacionários em suas atitudes em relação às mulheres e minorias. Sob o governo de Morsi pogroms assassinos foram organizados contra cristãos e xiitas. As mesmas atitudes reacionárias e antidemocráticas permeiam o movimento islâmico, que busca impô-las ao restante da sociedade.
Morsi e sua gangue islâmica estavam determinados, por bem ou por mal, a islamizar todos os aspectos da sociedade. A grande minoria cristã do Egito enfrentou ataques brutais, assim como os muçulmanos xiitas. Ele ficou em silêncio quando fanáticos e bandidos ameaçaram e atacaram as minorias religiosas.
Quando comparado a tudo isto, o fato da maioria formal de Morsi se torna completamente irrelevante. E torna-se ainda mais irrelevante quando se considera que milhões de pessoas que votaram nele há um ano já se voltaram contra ele.
Analogias históricas
A história nos ensina que os direitos democráticos que temos, tiveram que ser conquistados na luta pelas massas. A própria democracia é apenas um subproduto da revolução. Na Inglaterra, a democracia foi conquistada na luta e envolveu o corte da cabeça de um rei.
Na França, ela se estabeleceu através da ditadura revolucionária dos Jacobinos que cortaram mais algumas cabeças, armaram o povo e derrotaram os exércitos de todas as monarquias da Europa. Na América, os pequenos fazendeiros e artesãos tomaram armas e expulsaram os britânicos pela força.
Em todas essas revoluções democráticas houve muito mais violência do que temos visto até agora no Egito. No entanto, poucas pessoas agora perguntam se aqueles acontecimentos se justificaram. Nenhuma pessoa sensata critica George Washington ou Abraham Lincoln por violar as regras constitucionais e a legalidade existentes. Pois, recusando-se a fazer isto, eles nunca teriam tido êxito.
A luta pela democracia no Egito somente pode ter êxito se as massas estiverem determinadas a lutar até o fim. Contra elas estão poderosos e raivosos inimigos, determinados a manter o poder nas mãos de uma minoria privilegiada. As massas terão que lutar duramente para desarmar seus inimigos, expulsá-los do poder, desarmá-los e forçá-los a aceitar a vontade da maioria. Não há outro caminho porque eles nunca deixarão o poder voluntariamente.
A Revolução Francesa do século XVIII teve que lutar contra inimigos internos e externos. Poderosas nações imperiais interferiram nos assuntos internos da França e enviaram exércitos contra a Revolução. Os franceses tiveram que lutar contra os exércitos da Áustria, Prússia e Inglaterra ao mesmo tempo. Lutando sob a bandeira da revolução, eles derrotaram todos eles.
Mas também havia muitos inimigos internos. Havia os políticos profissionais e os “moderados” que tentaram roubar a Revolução e usá-la para se enriquecerem. Para ter êxito, a Revolução foi obrigada a purgar-se repetidas vezes de traidores e elementos corruptos.
Entre os mais ferozes inimigos da Revolução estavam os camponeses da região da Vendéia, no sudoeste da França. Atrasados e ignorantes, essas massas sombrias foram manipuladas pelos padres católicos para lutar contra os Revolucionários “ateus” de Paris. E, por trás das batinas dos sacerdotes fanáticos estavam os ricos senhorios e aristocratas que tinham sido varridos pela Revolução.
A Irmandade Muçulmana representa a Vendéia da Revolução Egípcia. Sua derrota é a condição prévia para o avanço da Revolução. As derrotas sofridas pela Irmandade Muçulmana vão esvaziar o moral de seus ativistas predominantemente pequeno-burgueses. Em Alexandria, na última terça-feira, o comício pró-Morsi só atraiu alguns milhares.
Uma fonte de In Defence of Marxism disse-nos na terça-feira: “Ainda estamos nas ruas todos os dias para defender a revolução. Ainda somos milhões, embora não mais como em 30 de junho. A Irmandade reúne dezenas de milhares. Em Tanta, somos milhares nas ruas todos os dias, enquanto a Irmandade reúne somente uma centena”.
É possível que eles consigam reunir mais pessoas em grandes mobilizações, mas não tem mais vento soprando em suas velas. A tendência geral não é ascendente, mas descendente. Eles podem decidir passar à clandestinidade e recorrer a táticas terroristas, mas isso será um sinal de fraqueza, não de força. No entanto, a Revolução agora enfrenta os perigos vindos de um outro flanco.
A ameaça Bonapartista
Em cada verdadeira revolução é o movimento elementar das massas que proporciona a força motriz. Contudo, diferentemente dos anarquistas, os Marxistas não adoram a espontaneidade, que tem seus pontos fortes, mas também suas fragilidades. Devemos entender as limitações da espontaneidade.
As massas que ocuparam as ruas da cidades do Egito em 30 de junho poderiam ter tomado o poder. Nada poderia detê-las. Qualquer tentativa de usar o exército contra o povo teria causado uma profunda divisão nas forças armadas. O exército se desfaria nas mãos dos generais. É por esta razão que os chefes do exército decidiram acompanhar o povo. Eles decidiram nadar a favor da maré por medo de se verem afogados na enchente revolucionária.
Contudo, o perigo para a Revolução não vem somente da Irmandade Muçulmana, mas do próprio exército. Os contrarrevolucionários abertos da Irmandade Muçulmana foram expulsos do poder, mas, por causa dos limites de sua natureza puramente espontânea (isto é, desorganizada), a Revolução não foi capaz de tomar o poder.
O impasse entre as classes cria as condições para o exército se elevar acima da sociedade e se tornar o árbitro supremo dos destinos da Nação. No dia 03 de julho, o chefe do Estado-Maior do exército, General Fatah Al-Sisi, anunciou que a constituição estava suspensa. Por um lado, os reacionários islâmicos estão organizando uma rebelião contrarrevolucionária e ameaçando com uma guerra civil. Por outro lado, os elementos burgueses, os generais e os imperialistas estão manobrando para roubar a vitória das massas, que foi conquistada com o seu sangue.
Os generais, por outro lado, também tinham interesse em promover uma atmosfera de perigo e de guerra civil para desorientar o movimento revolucionário. Deslocando as forças armadas em toda a cidade, agitando a bandeira egípcia sobre as manifestações e com uma enorme campanha nacionalista empreendida em coordenação com os meios de comunicação de massa nacionais, eles estavam tentando jogar a carta nacionalista para bloquear a divisão de classes que era a base real da revolução. Desta forma, de fato, os generais e a Irmandade estavam tentando se apoiar mutuamente para marginalizar o movimento de massas.
Isto se comprova no fato de que à Irmandade Muçulmana foi oferecida a possibilidade de fazer parte do governo interino. No entanto, estas tentativas não tiveram êxito. A Irmandade sofreu uma derrota decisiva, não pelo exército, mas pelo povo revolucionário do Egito. A despeito de todas as tentativas da mídia burguesa de elevá-la, sua presença nas ruas caiu de forma significativa.
A classe dominante está envolvida no jogo cínico de como dividir o movimento revolucionário e manter as massas fora do poder. Isto ficou exposto durante os últimos dias, onde as demandas da revolução foram traídas uma a uma. Na última segunda-feira, o presidente interino Adly Mansour apresentou uma declaração constitucional que visa substituir a disputada constituição escrita pelo SCAF em 2011 e alterada marginalmente pela Irmandade Muçulmana em 2012.
Mas a constituição provisória é apenas uma repetição da velha e odiada constituição e em alguns aspectos ainda mais reacionária. Os poderes do presidente na constituição são mais ou menos ilimitados, dando-lhe poderes legislativos e executivos. Isto é similar aos poderes que Morsi se concedeu no decreto presidencial que foi derrotado pelo movimento de massas em dezembro de 2012. Ao mesmo tempo, o judiciário militar está previsto para ser completamente intocável e é-lhe dada a autoridade de julgar civis igualmente, um direito que não foi concedido na constituição anterior.
Outro artigo controverso mantém a ênfase na “lei da sharia derivada dos cânones sunitas como a principal fonte de todas as legislações”. A liberdade de formar associações não é restrita para aqueles “que não se opõem ao sistema da sociedade” – um artigo que poderia ver Tamarrod, o principal organizador do movimento de 30 de junho, como ilegal –, enquanto a liberdade de expressão foi garantida, mas apenas “dentro dos limites da lei”, o que novamente abre o caminho para reduzir esse mesmo direito.
O movimento Tamarrod disse que o decreto estava abrindo caminho para uma nova ditadura, ao dar ao presidente a autoridade de “tomar todas as medidas e ações necessárias para proteger o país”. Isto significa “poder absoluto e irrestrito”. Eles disseram: “Este é um roubo óbvio da revolução, levando-nos de volta a 25 de janeiro de 2011”, o dia em que começaram as manifestações anti-Mubarak, disse Khaled El-Kady, o porta-voz de Tamarrod em Alexandria.
Ao mesmo tempo, uma farsa foi montada nos corredores em torno do cargo de Primeiro Ministro. O principal candidato lançado pelo Tamarrod foi o burguês liberal Mohammed Al Baradei, mas sua nomeação foi vetada pelo partido Salafista ultraconservador Nour, que o via também como muito secular. Em vez disso, ele foi substituído por Hazem El Beblawi, de 76 anos de idade, descrito pelo Wall Street Journal como um campeão da economia liberal. Apesar de contestar a constituição provisória, Al Baradei pateticamente aceitou o posto de vice-presidente.
Quando The Guardian convidou a Hazem El Beblawi para obter sua opinião sobre sua nomeação, ele tinha acabado de chegar de suas férias na Suíça. Embora em seus currículos nada conste que tenham participado de roubos, nenhuma das pessoas acima têm nada a ver com as pessoas que tomaram as ruas e deixaram o regime de joelhos. O que têm em comum é apenas o desejo de manobrar para excluir as massas do poder. Seu cinismo ficou ainda mais exposto quando colocaram a ideia de que a Irmandade Muçulmana poderia ser incorporada no governo interino.
Os abutres já estão circulando no alto. O novo governo já recebeu 12 bilhões de dólares de empréstimo da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos para permitir um pouco mais de margem de manobra. E Washington se comprometeu a enviar dinheiro ao exército egípcio como uma forma de manter sua influência no Cairo.
Os líderes do movimento Tamarrod disseram que as propostas constitucionais eram uma tentativa de sequestrar a revolução. Está correto. Alguns cargos podem ser dados à liderança de Tamarrod, mas isto só acontecerá com o objetivo de desacreditá-los e de compartilhar a responsabilidade para os próximos ataques contra a Revolução, começando com a implementação do programa de cortes de subsídios do FMI que Morsi não pôde implementar.
Poderiam ter tomado o poder?
Poderiam as massas ter tomado o poder no final de junho? Esta pergunta está colocada de forma incorreta. De fato, as massas tinham o poder em suas mãos, mas não estavam cientes disso. A derrubada de Morsi veio no topo do maior movimento de massas que o Egito já conheceu. A força irresistível de milhões e milhões de pessoas enchendo cada rua principal do Egito paralisou o regime e as forças armadas. Não foi uma luta dos seculares contra os islâmicos.
Foi a explosão da raiva dos trabalhadores e pobres contra a pobreza, o desemprego e o sufocante controle antidemocrático da elite dominante. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da greve geral estava prestes a trazer todo o país a um impasse. Os comitês revolucionários, chamados de Comitês 30 de Junho, surgiram em todas as cidades e vizinhanças e efetivamente o poder estava nas mãos desses órgãos de luta popular, mas o movimento não sabia o que fazer com ele.
Mohammed Khamis, um dos principais ativistas do movimento Tamarrod, na verdade o principal centro do movimento de massas de 30 de junho, faz um relato muito claro desse processo:
“Não chamo o que aconteceu naquele dia de golpe de Estado. Sisi e o exército pegaram a deixa do povo. Eles tiveram muitas chances anteriores para fazer o que fizeram, mas não o fizeram. Mas, uma vez que milhões de pessoas saíram às ruas e começaram a convocar o exército a intervir, eles obedeceram as nossas ordens. O exército não assumiu o poder. Eles apenas foram um parceiro na mudança democrática que estávamos buscando”.
Não sabendo o que fazer com o poder que tinha nas mãos, os líderes da revolução o entregou ao seu “parceiro” do topo do exército. Mas o topo do exército não é “parceiro” ou amigo da revolução. Ele é constituído pelas mesmas pessoas que apoiaram Mubarak durante décadas e que até recentemente gozavam de um confortável relacionamento com Morsi. São as mesmas pessoas que ordenaram ataques sangrentos sobre a revolução em várias ocasiões desde 2011. São representantes da classe capitalista egípcia que não tem nenhum interesse em fazer qualquer concessão às massas.
A situação é de um impasse em que nenhum dos lados pode reivindicar a vitória total. É isto que permite ao exército se elevar acima da sociedade e se apresentar com o árbitro supremo da Nação, embora o poder real esteja nas ruas. A confiança expressada por algumas pessoas no papel do exército revela extrema ingenuidade. O Bonapartismo representa um risco sério para a Revolução Egípcia. Esta ingenuidade será extirpada da consciência das massas pela dura escola da vida.
Esta situação em muitos aspectos é similar à de fevereiro de 1917 na Rússia. Lênin destacou que a única razão dos trabalhadores não tomarem o poder imediatamente nada tinha a ver com as condições objetivas, mas se deveu inteiramente ao fator subjetivo. Falando sobre a Revolução de Fevereiro, Lênin colocou a questão da seguinte forma:
“Por que não tomam o poder? Steklov diz: por esta ou aquela razão. Isto é um absurdo. O fato é que o proletariado não está organizado e não tem consciência de classe suficiente. Deve-se admitir isto: a força material está nas mãos do proletariado, mas a burguesia acabou revelando estar preparada e com consciência de classe. É um fato monstruoso e deve ser franca e abertamente admitido e deve-se dizer às pessoas que elas não tomaram o poder porque estavam desorganizadas e não conscientes de forma suficiente” (Lênin, Obras, vol. 36, página 437, grifo nosso).
Os trabalhadores e a juventude egípcia estão aprendendo rapidamente na escola da Revolução. É por isso que a revolta de junho foi muito mais ampla, mais profunda e mais consciente que a Primeira Revolução que ocorreu há dois anos e meio. Mas eles ainda não têm a necessária experiência e a teoria revolucionária que permita à Revolução alcançar uma vitória rápida e relativamente indolor.
A Revolução foi suficientemente forte para alcançar o objetivo imediato: derrubar Morsi e a Irmandade Muçulmana. Mas não foi suficientemente forte para evitar que os frutos de sua vitória fossem roubados pelos generais e pela burguesia. Terá que passar através de outra dura escola para se elevar ao nível necessário para mudar o curso da história.
Se há dois anos existisse no Egito o equivalente ao Partido Bolchevique de Lênin e Trotsky, mesmo com apenas os oito mil membros que tinha em fevereiro de 1917, toda a situação seria inteiramente diferente. Mas este partido não existe. Ele terá que ser construído no calor dos acontecimentos.
A ameaça de catástrofe
As massas revolucionárias devem permanecer alertas e vigilantes. As coisas no Egito estão tão ruins, ou mesmo piores, do que antes de Hosni Mubarak ser deposto. Por todos os lados, abundam a injustiça, a desigualdade e a corrupção. Dois anos e meio depois da Revolução Egípcia, nada foi resolvido. Os elementos mais conscientes sabem que a alta hierarquia do exército e os políticos burgueses estão manobrando nas suas costas. Mas as massas ainda têm algumas ilusões ingênuas no papel dos militares. Estas ilusões serão destroçadas pelos acontecimentos, como o foram as ilusões na Irmandade Muçulmana.
A causa subjacente da Revolução Egípcia é a situação desesperada das massas. Dois anos depois da derrubada da ditadura de Mubarak o crescimento do PIB é o mais fraco em duas décadas, os números oficiais do desemprego chegaram ao recorde de 13,2% (a partir dos 9% em 2011). E estes números oficiais escondem a situação real, que é infinitamente pior.
A queda de 30% no valor da libra egípcia significa que a inflação aumentou em montante igual. Ela é particularmente alta nos gêneros alimentícios, a maioria dos quais é importada. O Egito é o maior importador de grãos no mundo. A elevação dos preços da comida é um problema crítico atualmente para a maioria dos egípcios. Algumas mercadorias dobraram de preço desde o último outono – isto é uma catástrofe para as famílias que já gastam 50% de sua renda familiar em alimentação.
A fome e a pobreza são abundantes e aumentam em ritmo assustador. Um relatório das Nações Unidas em maio informou que a pobreza e a insegurança alimentar se avantajaram entre 2009 e 2011. Em 2011, 17% da população esforçaram-se por garantir suficiente alimentação (contra 14% em 2009). A taxa de desnutrição para as crianças com menos de cinco anos elevou-se a 31% (era de 23% em 2005). Todas estas críticas estatísticas não levam em conta o aumento vertiginoso da pobreza desde 2011.
Um economista, Radwian, disse a The Guardian: “Você está falando de quase a metade da população se encontrar em estado de pobreza. Ou em situação de pobreza absoluta ou quase, o que significa que qualquer choque [econômico], como a inflação, eles cairão abaixo da linha de pobreza”. Atualmente, 25,2% dos egípcios estão abaixo da linha de pobreza, com 23,7% pairando muito próxima dela, de acordo com os números fornecidos pelo governo egípcio.
Goma, uma arquiteta no Cairo, explicou a The Guardian que ela não pode se dar ao luxo de dar aos seus filhos o que necessitam para se alimentar. Há seis meses ela gastava metade de seu salário em alimentação. Agora ela diz que gasta perto de quatro quintos do salário para isto – não porque esteja ganhando menos, mas porque os preços da alimentação não mostram nenhum sinal de abrandamento. Em consequência, ela explicou que seus filhos não estão indo bem na escola e apresentam sombras negras abaixo dos olhos.
São estas as verdadeiras razões por trás da revolta contra Morsi. De fato, são as mesmas razões da revolta contra Mubarak. A única diferença é que a crise é mais aguda agora. Dois anos e meio depois da primeira revolução a única mudança na sociedade egípcia foi a fina camada de “democracia”, que não pode ter êxito em disfarçar os sempre crescentes horrores do capitalismo egípcio.
A economia egípcia está enfrentando o colapso. O valor da libra egípcia e as reservas cambiais diminuíram, a inflação está se elevando e o desemprego entre os menores de 24 anos é de mais de 40%. O Egito está se encaminhando para uma catástrofe econômica e social. O FMI está retendo um grande empréstimo que poderia abrir o caminho para outros empréstimos. No meio do escaldante verão, o povo sofre repetidos cortes de energia. O suprimento de combustível está acabando e há longas filas para obtenção de gasolina. Os agricultores não estão sendo pagos por seu trigo. Há uma epidemia de crimes e não se vê a polícia.
A única forma da Revolução Egípcia ter êxito é resolvendo os problemas pela raiz. Isso significa derrubar, não um governante particular, seja ditador ou “democrata”, mas a ditadura da corrupta e degenerada classe dominante egípcia. Esta tarefa não pode ser delegada aos políticos profissionais e aos generais, porque eles são parte da classe de parasitas e exploradores.
Somente o povo revolucionário pode resolver os problemas tomando o poder em suas próprias mãos. Para conseguir isto, a classe trabalhadora egípcia – a única classe genuinamente revolucionária da sociedade – deve se colocar à cabeça da Nação. Os que produzem toda a riqueza da sociedade devem tomar o controle das forças produtivas, da terra, dos bancos, das indústrias e dos serviços, e geri-las no interesse do povo e não no interesse de um punhado de sanguessugas ricos.
“Um perigoso precedente”
“Este precedente é muito perigoso”, continua a se lamentar a mídia ocidental. Sim, caros amigos! É um precedente muito perigoso para todos vocês que foram eleitos a cargos sob pretextos falsos, proferindo promessas de uma vida melhor para todos e que acabaram se transformando em um pacote de mentiras cínicas. E uma vez que vocês foram eleitos para altos cargos de forma segura (e “democraticamente”), vocês convenientemente esquecem de tudo que prometeram e fazem exatamente o oposto.
Que alternativa resta para o povo, visto que ele tem uma corda apertando em torno de seu pescoço? A única alternativa, se acreditamos na democracia, é tomar as ruas para protestar e para se manifestar. “Sim, isso é muito bom”, dizem os políticos “democráticos”, “mas os protestos não devem ir longe demais”.
O que se entende precisamente por “longe demais”? O que isto significa é que o povo não deve ter êxito. Em uma pseudodemocracia burguesa, a função real do protesto é permitir que as massas “dissipem sua energia”. O protesto seria uma válvula de segurança não destinada a dar um fim a governos corruptos, injustos e impopulares, mas, pelo contrário, a dar um espaço para respirar, para desviar a ira das massas. Em uma palavra: para manter governos impopulares no poder.
Mas quando as massas protestam a sério, quando elas vão às ruas aos milhões e levam o seu protesto até o ponto de derrubar o governo, então todos os supostos democratas botam as mãos na cabeça com sagrado horror: isto é anarquia! É o caos! Gritam a uma só voz. Nós dizemos: não, não é nem anarquia nem caos, é o povo se movendo para tirar suas vidas e destinos das mãos dos políticos profissionais corruptos e dos burocratas e tomá-las em suas próprias mãos. E isto é exatamente a essência de uma Revolução.
No distante passado, quando a burguesia ainda era uma classe revolucionária, ela costumava levar a democracia mais a sério. Nesses dias, a Segunda Emenda da Constituição Americana defende o direito dos cidadãos de derrubar um governo tirânico que viole os direitos e a dignidade do povo.
Ou seja, em teoria. Mas quando o povo realmente tenta colocar este direito democrático na prática, há gritos de protesto da burguesia e de sua mídia contratada. Como todos os outros direitos sob o capitalismo, é uma mentira hipócrita. A democracia formal da burguesia é apenas uma folha de parreira concebida para cobrir a realidade da ditadura dos grandes bancos e monopólios.
Morsi foi derrubado pelas massas – que algumas pessoas chamam de poder das ruas. The Economist descreveu isto como um “terrível precedente para a região”. Aqui está o que The Economist escreveu:
“O precedente que a derrubada de Morsi abre para outras democracias é terrível. Encorajará a insatisfação para tentar derrubar os governos não pelo voto contra eles, mas através da ruptura de seu controle. Isto criará um incentivo para as oposições em todo o mundo árabe a perseguir suas agendas nas ruas, e não nos parlamentos. Portanto, reduzirá a possibilidade de paz e prosperidade em toda a região”.
Esta é a voz da burguesia assustada. Está com medo de que o exemplo dado pelas massas egípcias se espalhe não apenas para os outros países da região, mas também para a Europa. As manifestações de massa e a greve geral que recentemente colocaram o governo português de joelhos é um aviso do que vai acontecer em um país após outro no próximo período.
Os estrategistas do Capital estão seriamente alarmados com estes desenvolvimentos. Deixando de lado todos os elementos não essenciais e acidentais, estes movimentos se inspiram e são dirigidos pelas mesmas coisas. O que temos aqui é um fenômeno internacional: a tendência para um movimento revolucionário mundial. Vemos evolução semelhante começando na Europa.
A “democrática” burguesia quer fazer a classe trabalhadora pagar pela crise através da imposição de uma política selvagem de austeridade (“desvalorização interna”) que está empurrando a Europa cada vez mais fundo na recessão. Como resultado, o desemprego aumenta, a economia adoece, o retorno fiscal vem abaixo e os déficits aumentam inexoravelmente.
Mas a disposição das massas de aceitar novas reduções no padrão de vida tem limites definidos, e estes estão sendo alcançados. Em Portugal, a pressão constante sobre os padrões de vida provocou crescentes tensões sociais e políticas. O risco de levantamentos espontâneos das massas contra a austeridade toma uma forma muito concreta nos acontecimentos no Egito. Isso explica o horror com que a burguesia mundial se refere à Revolução Egípcia.
Há uns vinte anos as ditaduras estalinistas da Europa Oriental foram derrubadas por movimentos de massas nas ruas. Esses movimentos explodiram com força elementar, repentinamente, sem aviso prévio. E, no momento da verdade, aqueles regimes aparentemente todo-poderosos vieram abaixo, um após outro, como pedras de um dominó.
Naquele momento, a burguesia ficou eufórica. Mas agora, só duas décadas depois, ela está assombrada com o espectro dos movimentos revolucionários de massa que parecem surgir do nada, em um país após outro. Estados aparentemente poderosos, exércitos, polícia e polícia secreta, encontram-se subitamente sem poder, pendurados no ar sem nenhum apoio.
Será que o mesmo destino que se abateu sobre os regimes estalinistas aparentemente poderosos, que varreu Mubarak e Morsi de seus palácios presidenciais, também aguarda a burguesia? Ela reclama energicamente que Morsi foi “democraticamente eleito” – “assim como nós”. E, se o “democraticamente eleito” Morsi pôde ser varrido por uma torrente revolucionária, não poderia acontecer a mesma coisa aqui? Esta é a questão que está causando noites de insônia não só em Riad e Lisboa, como também em Paris, Londres e mesmo Washington.
Tradução: Fabiano Adalberto