A última reviravolta na saga de implantação de vacinas expôs as contradições dentro da União Europeia e os limites do mercado capitalista para lidar com uma crise. Nos últimos dias, assistimos ao início de um conflito tanto entre a UE e o Reino Unido, como dentro da UE, algo que nos lembra a crise da dívida de 2011 e 2012.
Conforme publicamos há quase um mês:
Com a vacina Oxford/AstraZeneca Covid-19, recentemente aprovada para uso no Reino Unido; e produtos da Pfizer/BioNTech, Moderna e outros já administrados em todo o mundo, poderíamos pensar que estamos nos aproximando do fim desta pandemia. No entanto, especuladores farmacêuticos e representantes políticos da classe dominante estão atrapalhando a implementação em alguns dos países mais afetados. Na pressa de voltar ao “normal” e colocar a economia em movimento novamente, eles estão ignorando a ciência e tomando atalhos, colocando vidas em risco.
As grandes empresas farmacêuticas estão “aparando as arestas” de uma forma particularmente escandalosa, mostrando que o seu papel na sociedade não é fornecer medicamentos ou qualquer outro fim filantrópico, mas obter lucros e pagar dividendos, como têm demonstrado desde o início da crise. É para isso que existem as multinacionais privadas!
Deixado para as forças do mercado
No final de 2020, o Der Spiegel informou que a Pfizer estava negociando a possibilidade de extrair uma sexta dose de cada frasco produzido, com a Agência Europeia de Medicamentos (EMA). Isso poderia significar um aumento na velocidade de implementação em 20%. Em uma economia planejada, isso teria sido uma excelente notícia, mas embora, inicialmente, a Pfizer tenha anunciado que isso não afetaria seus lucros e seria feito para aumentar a capacidade de vacinação, a realidade é que a Pfizer rapidamente modificou suas entregas para a União Europeia.
A Pfizer revisou suas entregas para baixo, tendo por base de cálculo que o acordo era por dose e não por frasco. Isso de imediato aumentou seus lucros em 17%. Pouco importa as queixas dos trabalhadores de saúde de que extrair a sexta dose é um processo difícil e demorado, que coloca toda a carga nos ombros dos trabalhadores de saúde nos sistemas públicos de saúde já sobrecarregados. A Pfizer anunciou que produziria 100 milhões de frascos em seu primeiro lote, em vez dos 120 milhões acordados. O que aconteceria com os 20 milhões de doses a 12 euros por dose? A Pfizer iria vendê-los ao lance mais alto no mercado internacional. Os acordos secretos entre a Pfizer e a Comissão Europeia, relativos aos preços das vacinas, só foram divulgados publicamente por conta de um tuíte eliminado posteriormente pela ministra belga Eva de Bleeker.
Por enquanto, apenas a Itália, sob a pressão de associações de consumidores, planeja levar a Pfizer aos tribunais. A Bélgica, onde a vacina é produzida, prefere não litigar, provavelmente por medo de que a Pfizer decida realocar a produção. O governo francês negociou um acordo pelo qual a Sanofi produzirá e distribuirá a vacina Pfizer, porém a administração Macron tem pouco interesse em defender os interesses de seus cidadãos e um interesse significativo em defender sua “campeã nacional”, a Sanofi.
A AstraZeneca também compartilhou dos holofotes. Na véspera da aprovação pela Agência Médica Europeia, seu CEO, Pascal Soriot, deu uma entrevista escandalosa à Reppublica, onde, além de criticar a União Europeia por estar atrasada em comparação ao Reino Unido, que assinou o contrato 3 meses antes, ele também disse que “as pessoas estão ficando muito sentimentais”, ao dizer que a vacina é produzida para a “humanidade” e sem fins lucrativos.
Isso levou funcionários da Comissão e representantes dos estados da UE a especular que a AstraZeneca pode ter enviado doses fabricadas na Bélgica para outros clientes, percebendo que a produção não estava progredindo rápido o suficiente. A AstraZeneca tentou evitar o cumprimento das obrigações contratuais com a UE, que havia feito um pré-pagamento de centenas de milhões de euros. Ou seja, a AstraZeneca estaria especulando com sua vacina e se valendo do dinheiro público oferecido pela UE.
Uma controversa reunião, realizada em 25 de janeiro, entre funcionários dos estados membros e da União Europeia com representantes do conglomerado farmacêutico britânico-sueco AstraZeneca, informou a Bruxelas, na sexta-feira, que a produção de vacinas ficaria muito aquém de suas obrigações contratuais. A AstraZeneca está brincando de gato e rato com a União Europeia e se mantém firme dizendo que o contrato apenas pede que ela forneça “o melhor possível”. Isso gerou outra disputa pública entre funcionários da UE e a empresa.
Dado que os contratos negociados permanecem secretos ou publicados com metade do texto redigido, só se pode especular se ele está falando a verdade. Por que ele mentiria quando o risco é só a publicação de um contrato? A questão é que a Comissão Europeia mostrou a sua incapacidade de negociar contratos levando em conta a saúde pública, e só parece capaz de negociar quando isso é benéfico para as grandes farmacêuticas, algo que a UE tem feito nas últimas sete décadas! A questão é que os interesses de algumas empresas farmacêuticas entram em contradição com os interesses nacionais de alguns membros da União Europeia; este é o nó górdio com que a Comissão se depara continuamente.
Ao mesmo tempo, a Hungria já anunciou que vai comprar as vacinas da Rússia e da China, apesar da falta de aprovação (ou mesmo de pedido de aprovação, no caso chinês) por parte da Autoridade Europeia. Sandra Gallina, a negociadora dos contratos entre a UE e a Big Pharma, anunciou em 12 de janeiro que não tinha conhecimento de quaisquer outros contratos para além dos negociados pela Comissão e que, se existissem, disse ela, seriam contra o Tratado. A Hungria até agora não parece estar preocupada com as sanções da UE.
A situação se tornou “cada um na sua”, que é precisamente o que acontece na União Europeia sempre que surge um problema. A elite governante alemã conta com sua influência nacional e com o fato de a vacina Pfizer ter sido feita com uma sacudidela alemã para a implantar o mais rápido possível. Eles não parecem interessados em qualquer tipo de “solidariedade europeia”. O governo húngaro parece ter entendido isso e, portanto, age de forma independente, evidentemente sem compreender as consequências duradouras de tal fato.
Está ficando cada vez mais claro que a chamada “unidade europeia” se rompe assim que há uma crise, e com a pandemia da Covid-19 não foi diferente. Nesta fase da implantação da vacina, vemos como cada Estado-Membro significativo está tratando a questão de uma forma individual e reduzem a Comissão Europeia a uma caixa de correio das suas necessidades individuais.
Quase um ano depois que a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou a Covid-19 uma pandemia global, a Comissão Europeia começou a propor regulamentos europeus de viagens para cidadãos da UE. Até agora, todas as medidas foram tomadas no nível nacional, sem qualquer consulta ou coordenação entre os Estados-Membros.
E agora, os controles!
A União Europeia é, antes de mais, uma zona de livre comércio e um mercado. 70 anos de integração europeia criaram um clube cujos membros são forçados a chegar a acordos para poderem desempenhar um papel nos mercados globais. Mas a história está cheia de desenvolvimentos estranhos. A crise atual levou a União Europeia a propor controles de exportação para garantir que a Pfizer, AstraZeneca, etc., não exportassem parte da vacina para o exterior.
Isso criou imediatamente uma crise entre a União Europeia e o Reino Unido, apenas 3 semanas após a saída deste último da UE.
Ainda que os controles do comércio exterior sejam a antítese de tudo o que a Comissão Europeia defende, a teimosa realidade é que, para manter a pretensão de controle, foi necessário propor um mecanismo de orientação da produção de vacinas. O mecanismo foi anunciado pela Comissária Europeia para a Saúde e Segurança Alimentar, Stella Kyriakides, na sexta-feira, 29 de janeiro, e, dentro de 48 horas, ela teve que recuar devido a reclamações do governo irlandês, ameaças de retaliação do Reino Unido e críticas dentro da Comissão Europeia daqueles que viam isso, com razão, como um fardo para o mercado livre.
O TD irlandês (primeiro-ministro) ligou rapidamente para Ursula Von der Leyen [presidente da Comissão Europeia) para reclamar do uso do Artigo 16 do acordo Brexit UE-Reino Unido, que deveria impor controles na fronteira Reino Unido-Irlanda. Essa resposta veio muito mais rápido do que há dez anos, quando a economia irlandesa faliu, expondo o quão delicada será a questão da fronteira nos próximos meses, uma vez que o acordo do Brexit seja totalmente implementado. Como disse Micheál Martin [membro do parlamento irlandês], a questão tem “implicações políticas explosivas”.
Como já dissemos, a Comissão Europeia enfrenta o problema insolúvel de representar os interesses da Big Pharma, apaziguar as diferenças entre os diferentes membros do bloco e manter a pretensão pública de se preocupar com os milhões de europeus infectados pela Covid-19. Isto é impossível; não se pode servir a dois amos. Ou eles defendem os lucros das grandes empresas farmacêuticas multinacionais ou criam um plano para implantar a vacina em grande escala em todo o continente. É claro que a escolha foi feita desde o início, e os leitores saberão o que foi escolhido, e para tal crise o fato de a UE ser um mercado e não ter instrumentos diretos de influência, torna suas grandes declarações ridículas em comparação com o realidade viva.
A esquerda e a nacionalização
Essa situação é feita sob medida para a esquerda. A necessidade de nacionalização da indústria farmacêutica nunca se levantou de forma tão clara. O fato de a imprensa burguesa ter defendido preventivamente um caso contra tal movimento abriu o debate. O Libération, que já foi um jornal de esquerda na França, hoje a voz da burguesia liberal, publicou há poucos dias um artigo perguntando se havia a necessidade de nacionalizar.
O correspondente de Bruxelas que escreve o artigo acaba defendendo o modo de produção atual, bem como a austeridade. Como era de se esperar, o artigo afirma: “A única maneira de atender à imensa necessidade de vacinas é, portanto, aumentar as linhas de produção com empresas que tenham capacidade. Esse é o caminho escolhido pela francesa Sanofi, que vai produzir a partir deste verão a vacina BioNTech-Pfizer, e pela Recipharm, que fechou acordo com a Moderna”. O fato de o jornal ter se manifestado dessa forma é significativo.
O que faltou até agora são os apelos à nacionalização por parte dos representantes eleitos dos chamados partidos comunistas, tanto no nível do Parlamento nacional como do Parlamento Europeu. Pode-se supor que os partidos socialistas continentais há muito se esqueceram de tais demandas, mas, após a crise econômica de 2008, vimos alguma radicalização e a criação de novos partidos “radicais”, cujo silêncio é notável. Poucos estão levantando a demanda pela nacionalização. A direção sindical também é extremamente tímida em fazer reivindicações, lamentando-se tristemente da falta de transparência e da necessidade de uma abordagem diferenciada, como se esse sistema permitisse isso.
Na França, a gigante multinacional Sanofi anunciou 400 perdas de empregos no departamento de pesquisa ao mesmo tempo em que o governo está negociando um acordo para produzir a vacina Pfizer, mas a CGT ainda não saiu com um pedido de nacionalização!
Até agora, a maior parte da esquerda e dos sindicatos têm exigido pressão sobre a OMC para impor a suspensão do TRIPS (o acordo da OMC que protege os direitos das vacinas) para a vacina e medicamentos da COVID e para assinar uma Iniciativa de Cidadãos Europeus para legislar sobre os direitos das vacinas. Um histórico bastante pobre da pior pandemia de que há memória.
O Membro do Parlamento Europeu (MEP), o comunista Sira Riga e o PTB/PVDA (uma organização comunista belga) e o MEP Marc Botenga escreveram um artigo de opinião no fim da semana passada em que sua principal demanda é a seguinte:
“Apesar do que possa parecer, não estamos desprotegidos ante a indústria farmacêutica. Basta agir com os mecanismos de que dispomos. Precisamos da produção da Pfizer e da AstraZeneca, entre outras, e os custos reais dessa produção podem ser compensados. Mas já pagamos quatro vezes pela vacina. Ao quebrar seu monopólio, poderíamos aumentar rapidamente a produção. Isso significaria menos dividendos para os acionistas das empresas farmacêuticas, sim, mas mais vacinas para todos e a salvação de vidas na Europa e no resto do mundo. As ferramentas técnicas e políticas estão sobre a mesa. É hora de usá-los”.
Vamos nos lembrar aqui do que Trotsky apontou no Programa de Transição:
“O programa socialista de expropriação, isto é, de derrubada política da burguesia e liquidação de seu domínio econômico, em nenhum caso durante o presente período de transição nos impediria de fazer avançar, quando a ocasião o justifique, a demanda pela expropriação de vários ramos importantes da indústria vitais para a existência nacional ou do grupo mais parasitário da burguesia”.
“A necessidade de avançar a palavra de ordem da expropriação no curso da agitação cotidiana de forma parcial, e não apenas na nossa propaganda em seus aspectos mais abrangentes, é ditada pelo fato de que diferentes ramos da indústria estão em níveis diferentes de desenvolvimento, ocupam um lugar diferente na vida da sociedade e atravessam diferentes fases da luta de classes. Só uma ascensão revolucionária geral do proletariado pode colocar a expropriação total da burguesia na ordem do dia. A tarefa das demandas transitórias é preparar o proletariado para resolver este problema”.
A atual crise da União Europeia e a pandemia da Covid-19 devem ser uma oportunidade de ouro para apresentar uma alternativa ao sistema económico atual e não criar ilusões sobre os “instrumentos existentes no sistema”.
Em vez disso, o que se deve fazer é destacar a verdadeira origem desta crise: o sistema capitalista e seus infelizes representantes políticos. E levantar a demanda de nacionalização da indústria farmacêutica sem indenização, a fim de nos dar uma solução real para a pandemia.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM